Polo turístico de João Pessoa acumula histórico de danos ambientais desde 1988
Mongabay, Adriana Amâncio e July Portioli, Ecoa
O Polo Turístico de Cabo Branco, no litoral da Paraíba, é tido como o maior complexo turístico planejado do Nordeste; a obra vem acumulando um histórico de danos ambientais desde 1988.
Inserido no Corredor de Biodiversidade da Mata Atlântica do Nordeste, o polo está cercado de Unidades de Conservação, que, mesmo protegidas por lei, serão impactadas pelas obras e pela fragmentação da floresta.
Ao menos 47 hectares de Mata Atlântica já foram desmatados desde o início das obras; espécies animais vêm desaparecendo da região ou morrendo por atropelamento.
“Aqui a gente via muito tatu, tamanduá, preguiça. Tinha uma ave que está em extinção, que é o jacu, agora desapareceu. Os maracanãs também sumiram, eles faziam ninhos nos coqueiros. E agora cortaram os coqueiros. Outra ave rara que tinha por aqui era a Alma-de-Gato. Aqui tinha uma diversidade enorme de bichos e de frutas nativas também”.
A lista de animais que sumiram da mata é relatada por seu Celestino da Silva, 70 anos, policial ambiental aposentado, que desde 2006 mora em uma comunidade pesqueira da Área de Proteção Ambiental de Jacarapé, ao lado das obras do Polo Turístico do Cabo Branco, em João Pessoa, tido como o maior complexo turístico planejado do Nordeste.
O polo turístico é um projeto antigo do governo da Paraíba que teve sua primeira etapa finalizada em 2012, com a construção do Centro de Convenções de João Pessoa — e seu primeiro embargo em 1988.
As obras recomeçaram em 2023 após um longo processo de manobras jurídicas e políticas que resultaram em um acordo em relação às compensações e condicionantes necessárias para o licenciamento ambiental e a supressão da vegetação (tanto do dano ambiental consolidado pelo Centro de Convenções, quanto dos danos atuais).
Porém, a área desmatada já soma ao menos 47 hectares e o acordo não está sendo cumprido. O relato de seu Celestino, que vive na área desde antes mesmo do início da primeira etapa da obra, é uma evidência do impacto da supressão desta porção preservada da Mata Atlântica.
O anúncio da retomada das obras pela Cinep (Companhia Paraibana de Desenvolvimento), em 2021, levou ambientalistas e pesquisadores da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) a denunciarem em uma Carta Aberta os danos irreversíveis que a construção iria causar ao ecossistema daquela região e as irregularidades referentes ao licenciamento ambiental.
Renan Félix, procurador ligado ao Ministério Público Federal da Paraíba, que atua em questões ambientais em João Pessoa, afirma que existe um inquérito civil em andamento desde 2021, “avaliando se as compensações que foram acordadas são suficientes ou não para a supressão da vegetação que foi realizada”.
Degradação da Mata Atlântica
A área escolhida para a construção faz parte do Corredor de Biodiversidade da Mata Atlântica do Nordeste, que está inserido no rol das Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade por ser considerado de importância biológica extrema.
Os empreendimentos do polo turístico estão cercados por reservas ambientais. A maior delas é o Parque Estadual das Trilhas dos Cinco Rios, maior Unidade de Conservação urbana de João Pessoa, com uma área de 575 hectares, que abriga mais de 150 espécies da flora e 70 espécies da fauna.
Dentro dele está a APA (Área de Proteção Ambiental) de Jacarapé, área de remanescentes de manguezal que abriga uma comunidade pesqueira tradicional. Na parte marítima, está a APA Naufrágio Queimado, que tem aproximadamente 422 km² e foi criada para proteção dos corais e tubarões.
Mesmo sendo protegido por lei, o Parque Estadual das Trilhas sofrerá impactos pelas obras e pela fragmentação da mata. É o que argumenta Paula Frassinete, especialista em Ecologia e fundadora da Apan (Associação Paraibana Amigos da Natureza), entidade que denunciou a supressão da Mata Atlântica na construção do Centro de Convenções em 2009.
“A supressão da flora desta maneira destrói inúmeros nichos ecológicos em cada uma das árvores cortadas. E destrói habitats de várias espécies da fauna, como aves e seus ninhos, répteis, insetos, roedores…”, afirma a ecologista. Moradores e ambientalistas denunciam que o resgate da fauna, que é uma das ações obrigatórias da obra, não foi feito.
“Os bichos estão desorientados, querem correr para longe. Muitos morreram atropelados ou de calor. Os pássaros voavam sem rumo. É doído de ver”, conta seu Celestino ao mostrar a foto de um tamanduá-mirim morto.
O coordenador-geral da RMA (Rede de ONGs da Mata Atlântica), João de Deus Medeiros, explica que a fragmentação e o isolamento de remanescentes são um dos maiores problemas para a preservação da Mata Atlântica atualmente. “Não faz o menor sentido que, neste momento, em que temos toda uma campanha para restabelecer a conexão entre esses fragmentos, sejam autorizados empreendimentos que ampliem a fragmentação da Mata Atlântica”.
Os corredores ecológicos são áreas onde os animais podem transitar livremente e também dispersar sementes, o que é essencial para a preservação da biodiversidade. A preservação ou construção desses corredores era uma das condições para as obras e foi cumprida parcialmente com a implantação do Parque das Trilhas, porém seu cercamento e plano de manejo também fazem parte do acordo e não foram feitos.
A Mongabay tentou contato direto com o superintendente da Sudema (Superintendência de Administração do Meio Ambiente), mas só foi permitido com a assessoria de comunicação. De acordo com a assessoria, “foi realizado o cercamento nos pontos mais críticos do Parque das Trilhas e a Sudema está avaliando a necessidade de ampliá-lo” e que “o plano de manejo deverá ser apresentado ao público em fevereiro”.
João Medeiros explica que a Lei da Mata Atlântica é objetiva em relação à supressão de vegetação. “As autorizações devem ser de acordo com a tipificação do remanescente — primário ou secundário”. Ele explica que, nas áreas litorâneas, é comum ver estudos com a classificação errada da vegetação.
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“A vegetação litorânea pode ter porte pequeno, ser herbácea ou subarbustiva. Se aproveitam da aparência rala da vegetação e reduzem a vegetação primária à secundária em estágio inicial de regeneração para enquadrar no que é mais flexível de acordo com a lei”, diz o coordenador da RMA.
O último estudo foi feito em 2017 e classifica a vegetação da área do polo turístico como secundária em estágios inicial e secundário de regeneração. Félix afirma que, para a supressão da vegetação, “existe a necessidade da anuência do Ibama, órgão que não apresentou oposição ao empreendimento. Por isso nós solicitamos uma perícia própria do MPF para entendermos se a supressão está adequada”.
A reportagem tentou contato com o Ibama por telefone e e-mail e não obteve retorno. No sistema do instituto, disponível para consulta, não consta nenhuma autorização para o polo.
Condicionantes descumpridas
Além das regras para supressão da vegetação, manutenção dos corredores ecológicos e resgate da fauna, é prevista na Resolução nº 303/02 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiental) e no art. 4º do Código Florestal a obrigatoriedade de se preservar no mínimo 100 metros a partir da borda da falésia em zonas que apresentem essa formação.
Em uma vistoria realizada às obras em dezembro do ano passado, o procurador Renan verificou o descumprimento dessa regra. “Existe uma rua, onde será um boulevard com acesso aos empreendimentos, em que as intervenções foram feitas até o limite da barreira”, relata.
Outra condicionante exigida é a necessidade de a obra ser enquadrada na condição de utilidade pública e/ou interesse social. Para Maria Carmem Cavalcanti, especialista em Direito Ambiental e promotora da justiça aposentada, “o rol de atividades que se enquadram como sendo de utilidade pública e interesse social é muito específico e um complexo turístico não se enquadra”. O enquadramento do Polo de Cabo Branco nessa categoria foi feito através do Decreto Estadual Nº 33.743/2013.
Carmem lembra ainda que é obrigatório um estudo que comprove a ausência de local alternativo para o empreendimento, mas, de acordo com o MPF, não foi apresentado esse estudo e tampouco sobre os possíveis impactos nas Unidades de Conservação no entorno do polo.
A reportagem tentou contato com o gestor do Parque das Trilhas, mas a entrevista não foi permitida pela assessoria de comunicação da Semam (Secretaria do Estado do Meio Ambiente). Da mesma forma, não tivemos acesso às licenças ambientais dos empreendimentos em tempo hábil em função da burocracia exigida.
João Medeiros explica que há um movimento político muito forte com projetos de lei para flexibilizar a Lei da Mata Atlântica e que muitos empreendimentos confiam que os danos ambientais causados serão esquentados a partir dessas mudanças.
Essa pressão é sentida pelo MPF também. O procurador Renan Félix relata que “muitas vezes, a nossa posição é contrária ao poder político e econômico que usam a narrativa do desenvolvimento para justificar [o dano ambiental], então acabamos não encontrando respaldo em algumas decisões do Judiciário”.
Histórico de danos ambientais
A obra foi embargada em 1988 já na implantação das vias de acesso em função do desmatamento em Área de Proteção Permanente, aterro de mangue e desmonte de falésias sem autorização prévia. A obra foi desembargada em 2006 após a assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta que previa a recuperação das áreas degradadas.
Após alguns anos parada por instabilidade política no estado, em 2009 as obras do Centro de Convenções foram iniciadas com uma nova licença de instalação. Porém, no mesmo ano, o MPF instaurou um procedimento investigativo. Nesse processo, o órgão identificou que “nas manifestações da Sudema, Ibama e da prefeitura de João Pessoa, foram reveladas diversas obscuridades e ilegalidades para fins de supressão de vegetação da Mata Atlântica”. A lista de irregularidades está disponível no site do MPF.
Após tentativas feitas pelo MPF para que o governo estadual da Paraíba se posicionasse, em março de 2010, o órgão recomendou à Caixa Econômica Federal que suspendesse novos repasses de recursos federais para a execução das obras, até que fossem sanadas as irregularidades do licenciamento ambiental. O MPF aponta que o estado da Paraíba apenas demonstrou interesse em regularizar a situação após a medida da suspensão de repasses, que resultou no desbloqueio dos recursos pelo STF.
Diante da omissão do governo estadual na regularização da Licença Ambiental, em 2017, o MPF ajuizou uma ação contra o estado e a Sudema pedindo a anulação da licença de instalação do Centro de Convenções enquanto não fosse regularizado o licenciamento. Além disso, o MPF condenou o estado da Paraíba ao pagamento de R$ 1 milhão de indenização por danos ambientais e morais. Já em 2023, o Tribunal de Justiça da 5° Região decidiu em favor do polo e julgou desnecessária a multa. Em novembro de 2023, o MPF entrou com um recurso especial para recorrer da decisão.
Ambientalistas denunciam que não houve debate público e nem consulta prévia com moradores de comunidades tradicionais pesqueiras de Jacarapé e Penha, obrigação internacional estabelecida pela Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e aprovada através do Decreto Legislativo nº 143/2002, para qualquer decisão que afete povos tradicionais.
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