Márcia Bechara, RFI
Já considerado histórico, o pleito português deste domingo (10) coloca em xeque os oito anos de governo da coalização de esquerda, liderada pelo Partido Socialista de Portugal, abalado por denúncias de corrupção, e traz como tema-chave a imigração, assunto que está longe de ser consenso entre a comunidade brasileira em Lisboa, e que deve se impor também durante o debate que antecede as eleições para o Parlamento Europeu, em junho.
Nove milhões de eleitores – alguns deles brasileiros, binacionais ou autorizados a votar depois do Acordo de Porto Seguro, que prevê uma equalização bilateral de direitos eleitorais que pode ser requerida após três anos de residência comprovada – estão habilitados a votar neste turno legislativo único que vai decidir o futuro de Portugal, país que pode passar a integrar a lista de nações europeias governadas por uma coalizão que inclui a extrema direita, e que conta atualmente com Itália, Eslováquia, Hungria e Finlândia (e possivelmente os Países Baixos do populista Geert Wilders, vencedor das legislativas de novembro).
Imigrantes são os “outros”?
Desconfiado, o motorista de aplicativo abordado pela reportagem da RFI em Lisboa afirma que não “gosta de política”, mas à medida que seu carro serpenteia pelas avenidas da capital portuguesa, uma certa cumplicidade “brazuca” se instala e este imigrante de 34 anos decide conversar (“Zuca” é, aliás, o apelido pejorativo que alguns portugueses usam para se referir aos brasileiros, num contexto eleitoral onde a imigração é fortemente instrumentalizada).
Caio é natural de Marabá, no Pará, onde trabalhou “os últimos 10 anos na área de segurança pública”, ainda no Brasil. Policial e investigador “com pós-graduação”, ele no entanto conta que pediu “exoneração sem possibilidade de retorno”, desiludido com os problemas da corporação. Fez as malas e se mandou para Lisboa, onde, no entanto, não “encontrou o que procurava”.
“Ganho muito menos dinheiro do que imaginava”, relata o brasileiro, que manifesta desejo de voltar para o Brasil e “prestar concurso público”. Perguntado sobre as eleições de domingo, Caio hesita mas acaba admitindo que se sente “atraído” pelas ideias de “um candidato”, um certo André Ventura, ex-comentarista esportivo de 41 anos que lidera hoje o principal partido da extrema direita portuguesa, o “Chega”, fundado em 2019.
Mas o “Chega” não tem um discurso antimigrante? Como um imigrante poderia votar em um candidato que, a priori, se posiciona contra ele? “Gosto das ideias e do papo reto dele. Ele quer controlar a imigração, o que é muito bom, porque, veja bem, o caso desse monte de paquistaneses e indianos que se amontoam dentro das casas e fazem as ‘rendas’ (aluguéis) aumentarem”, diz, reproduzindo a propaganda da extrema direita local sobre migrantes, especialmente aqueles vindos do sudeste asiático.
“Nenhum paquistanês ou indiano quer viver em bando dentro de um apartamento em Lisboa”, rebate a historiadora e mestranda Thaís Galindo. “É realmente assustador que as pessoas não se deem conta disso e que não saibam que o enorme problema da moradia em Lisboa e a alta gigantesca dos alugueis – hoje é quase impossível alugar algo dentro de Lisboa – se deve à altíssima especulação do mercado imobiliário. Americanos e europeus do Norte chegam aqui e compram imóveis históricos, repartem os apartamentos em cinco moradas, cobrando valores abusivos por quarto”, aponta, sentada num café do Cais do Sodré, no centro histórico de Lisboa, depois de um dia de trabalho no multicultural Palácio do Grilo, onde ganha a vida como gerente de eventos.
“Vira-latas caramelos de Portugal”
“Penso que os brasileiros têm que prestar atenção, porque não é só porque eles são os ‘vira-latas caramelos’ dos imigrantes de Portugal, que eles valem alguma coisa para toda essa política fascista do [partido] Chega”, martela Galindo. “O que esse [candidato de extrema direita, André] Ventura viu agora é que existem quase um milhão de brasileiros chegando aqui, isso vai dar quase 10% da população de Portugal, e ele não quer perder essa massa de manobra. E historicamente isso faz sentido, o Brasil teve, durante a Segunda Guerra, o maior partido fascista fora da Europa (o Ação Integralista Brasileira, de Plínio Salgado)”, lembra.
“Se existe algum tipo de violência acontecendo aqui em Portugal neste momento, são violências contra imigrantes”, afirma a assistente social Evonês Santos, luso-brasileira, com experiência de 20 anos na defesa de Direitos Humanos e apoio a refugiados no país.
“É o contrário do discurso de ódio da direita e da extrema direita. Para quem ainda tem dúvidas sobre essa questão, gostaria de ressaltar que há pouco tempo um cidadão imigrante foi morto aqui no aeroporto, espancado até a morte por portugueses das forças que deveriam justamente garantir a sua segurança”, diz. “Esse é um tipo de narrativa para cegos e surdos. Quem tem capacidade para entender isso, vê que nenhum imigrante instala insegurança aqui, pelo contrário, a Seguridade Social de Portugal é sustentada por contribuições de imigrantes”, afirma Santos.
Imigração no centro das eleições europeias
Um debate que, além de português, é também continental e deve se tornar a grande discussão das eleições europeias, que acontecem em junho, concorda o jovem estudante de Ciências Políticas na Universidade de Lisboa, Rafael Condack Barcelos, de 21 anos, natural de Brasília. Rafael chegou à Universidade de Lisboa através do Enem e que confessa ter “ambições políticas” quando regressar. “O Brasil precisa de quem goste e se interesse por política”, afirma, os olhos brilhando, vestindo um agasalho do instituto de ciências políticas da capital portuguesa.
“Olhando no geral, assim, os imigrantes têm importância muito grande em Portugal, por exemplo, para o crescimento econômico. São fatos. Eu, enquanto estudante, pago 3 vezes mais aqui de ‘propinas’, como são chamadas as taxas da faculdade; enquanto os colegas pagam € 65, por exemplo, eu pago € 250 (cerca de R$ 1.350), então é uma diferença muito grande. Então os imigrantes, já na perspectiva de um estudante, ele já contribui muito”, avalia.
Daniel André Domingos da Rosa tem 23 anos e cursa o último ano da Licenciatura de Direito na Universidade de Lisboa, onde pretende fazer também o Mestrado. “Nossa faculdade é bem política, temos diversos partidos representados aqui, com destaque para dois deles, o Juventude Socialista (JS), de esquerda, e o Juventude Social Democrata (JSD), de direita”, afirma.
“Assistimos em Portugal a uma participação política cada vez mais polarizada, com crescimento grande da extrema direita”, comenta. “Vejo com receio o aumento da discriminação e daquele discurso mais extremista em relação às questões de integração”, diz o brasileiro, que liderou o movimento estudantil denunciando o ataque a estudantes brasileiros na instituição portuguesa, que culminou numa carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Daniel conta que já testemunhou na pele a discriminação. “Teve um episódio aqui, a carta que coordenei junto com Rafael [denunciando ataques a estudantes brasileiros] não foi aprovada, fomos chamados de ‘burros’, de diversas coisas”, diz. “Mesmo com todos os processos disciplinares que ocorreram aqui, tudo foi arquivado. A carta fazia um balanço sobre essa questão da imigração dentro da universidade. Levamos essa carta a diversos ministérios em Portugal, mas nas assembleias de alunos ouvimos muitas falas xenófobas, e o processo aqui dentro da instituição foi arquivado sob a alegação de ‘liberdade de expressão’”, afirma.
“Valores conservadores”
“Cristão” autodeclarado e atraído por “valores conservadores”, o advogado brasileiro Manoel Reis, natural de Goiânia, que atualmente cursa mestrado em Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, conta que chegou a participar de um jantar destinado a doações para o partido de André Ventura, mas que se “assustou” e se retraiu em sua aproximação com o “Chega” em Portugal por dois motivos em especial: “quando eu vi os portugueses nas janelas o recebendo com gritos de ‘Fascismo nunca mais’, fiquei desconfiado”, relata. “E não tenho certeza se concordo com seu posicionamento sobre as questões da imigração”, avalia Reis. “Não sei também se as pessoas que o seguem sabem o que está em jogo”, diz.
“Muitas pessoas vêm e ficam aqui, dependendo de subsídios [financeiros do Estado português], principalmente pessoas que falam outras línguas”, acredita a empresária brasileira Sandra Bettencourt, militante do partido “Chega” desde julho. “São subsídios pagos pelos portugueses, e essas pessoas não trabalham. E os portugueses que trabalham pagam esses subsídios para essas pessoas que vêm de não sei onde, convidadas por não sei quem, e que vêm para cá não sei por que. Não é justo com os portugueses. Os portugueses têm que lutar por melhorias para eles, e se isso agregar brasileiros, africanos ou qualquer outra nacionalidade que fale português, então sim, é legal, precisamos de mão-de-obra. As pessoas são bem recebidas aqui, a partir do momento que têm boas condutas”, defende.
Com uma política migratória considerada entre as mais abertas do bloco europeu, Portugal, que é o segundo país no ranking de envelhecimento da Europa, depois da Itália, viu sua população estrangeira dobrar em cinco anos, em parte graças à chegada de migrantes vindos do sul da Ásia para trabalhar na agricultura, pesca e setor de restaurantes. Uma onda que foi encorajada pelo governo socialista, no poder desde o fim de 2015, mas que poderá se inclinar à direita após as eleições de 10 de março.
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