Adotada por uma empresária rica de Goiás, vítima era queimada com ferro de passar, afogada no tanque de lavar roupa, teve a língua cortada com um alicate e levava choque elétrico com uma máquina. Ela dormia amordaçada e acorrentada com as mãos para cima e recebia fezes de cachorro para comer e urina para beber
Jéssica Nascimento, Universa
Lucélia Rodrigues da Silva, 28, é missionária, casada e mãe de três crianças. Seu atual cenário de vida contrasta com o que ela enfrentou há quase 16 anos. Apesar de sua aparência tranquila, poucos imaginam os horrores que Lucélia viveu quando, aos 12 anos, foi resgatada do apartamento de seus pais adotivos em Goiânia.
Ela estava acorrentada e amordaçada, coberta por ferimentos resultantes das constantes torturas que sofria, incluindo ter a língua cortada com um alicate. A missionária conta sobre os anos de sofrimento que passou na casa de quem mais lhe devia proteção.
O começo
“No dia 1º de novembro de 1995, iniciei minha infância em um bairro simples da região metropolitana de Goiânia. Com menos de sete anos, meus pais se separaram. Costumo dizer que tudo começou com a quebra da aliança deles, com a separação. Nós, os filhos, sofremos muito com isso. Lembro que, na época, alternávamos entre dormir na casa do meu pai e na da minha mãe, que ficavam no mesmo bairro. Era fácil manter esse contato frequente.
No entanto, houve um período em que minha mãe mudou para um bairro mais distante, e nós, os filhos, tivemos que escolher com quem queríamos morar. Lembro-me claramente da pergunta: ‘Com quem vocês querem morar?’.
Se pudesse responder na época, diria que queria morar com os dois, apontando para ambos com as mãos. Eu queria meus pais juntos, casados. Mas naquela época, as crianças não tinham voz como têm hoje em dia. Então, tivemos que escolher, e ficamos com nosso pai, pois ele tinha emprego e condições financeiras melhores para cuidar de nós.
Com o passar do tempo, quando tinha de 9 para 10 anos, mudei para a casa da minha mãe, que era um barracão de dois cômodos, muito pequeno e apertado. Ali, enfrentamos muitas dificuldades financeiras e momentos difíceis.
Durante esse tempo, minha mãe arrumou um novo companheiro, um padrasto para mim, enquanto meu pai arrumou uma madrasta para nós. Felizmente, essas pessoas foram boas conosco e cuidaram de nós como se fôssemos filhos deles.
Adoção
Durante esse período difícil, conhecemos uma empresária que acabou me adotando. A conhecemos por meio de uma tia minha, que era empregada doméstica na casa dela. Fomos criando amizade, o tempo foi passando, e aquela mulher acabou vendo um pouco do que estávamos vivendo, entrando em nossa intimidade e percebendo as dificuldades que eu e minha mãe enfrentávamos.
Foi então que ela pediu à minha mãe para que eu passasse uma semana em sua casa. Minha mãe concordou, e eu fui. Foi muito bom estar lá naquela semana, fui muito bem cuidada, tratada e acolhida. Aquela casa tinha tudo do bom e do melhor. Estava acostumada a morar num barracão pequeno e apertado com minha mãe, e de repente me vi numa mansão num condomínio de luxo em Goiânia.
Lembro-me de que, no fim da semana, quando ela me devolveu para a minha mãe, ela pediu para que eu fosse morar com ela, prometendo que me daria uma vida melhor, um futuro melhor, bons estudos e cuidaria de mim como se eu fosse sua filha. Minha mãe concordou em me deixar ir morar com a empresária, pensando num futuro melhor para mim.
Quando cheguei à casa dela, ela me levou para comprar roupas novas, me levou ao salão para arrumar o cabelo e as unhas, e me matriculou num colégio particular em Goiânia. Assim, passei a viver uma vida totalmente diferente da que vivia com minha mãe.
Morei com ela dos meus 10 aos 12 anos. Os primeiros seis meses ali dentro daquela casa foram muito bons. Fui realmente bem tratada, acolhida e amada, como uma filha.
Torturas
Mas, depois desse tempo, ela começou a se transformar numa pessoa que eu não conhecia, passando a me bater, castigar, machucar e fazer coisas que não eram normais.
As agressões aumentavam, e chegou a um ponto em que ela passou a me manter em cativeiro. Mudamos para um sobrado num setor nobre de Goiânia, e ali vivi os piores dias da minha vida, passando por momentos em que achava que morreria a qualquer momento.
Ela fazia muitas coisas comigo naquele lugar. Havia uma sequência e um ritual para as torturas acontecerem. Aquela mulher me queimava com o ferro de passar roupa, quebrou meu dente, cortou minha língua com alicante, dava várias marteladas nas minhas mãos e nos meus pés e me abusava sexualmente. Ela também me deixava sem comer. Lembro que fiquei três dias sem nenhuma refeição.
Após toda a sequência, ela me colocava de castigo de uma maneira muito diferente. Eu tinha que ficar em pé de frente para um banheiro, e ela vinha com um livro nas mãos, colocava em minhas mãos e mandava eu ler em voz alta. Lembro-me perfeitamente que o livro tinha a capa preta com as palavras “Bíblia Sagrada”. Ela me colocava para ler a Bíblia, a palavra do Senhor, e foi assim que aprendi a orar.
O resgate
No dia 15 de março de 2008, ela me acorrentou nas escadas, como de costume, com as mãos para cima, acorrentada e amordaçada. Assim, dormi pendurada nas escadas. Quando acordei, já eram quase 8 horas da manhã.
Foi então que, vendo o céu através do teto aberto, decidi fazer uma oração em pensamento, clamando ao senhor Jesus por ajuda e pedindo para ser tirada daquele lugar insuportável. Parecia que tinha dormido apenas algumas horas, mas ao olhar novamente para o relógio, vi que eram 10h22. Ali, naquela situação terrível, continuei a esperar por um milagre, clamando por socorro em meio ao tormento.
Aí, às 10h25, quando acordo, escuto a voz de uma mulher me chamando na porta, uma voz desconhecida, batendo sem parar e me chamando pelo nome, Lucélia. Estava amordaçada, incapaz de responder, só podia fazer gestos, pois estava amordaçada.
De repente, a porta se abre e a mulher entra correndo. Ao ver a cena, uma criança de 12 anos acorrentada e amordaçada, ela grita: ‘Meu Deus, tem uma menina presa aqui!’. Automaticamente, olho para o lado e vejo que ela segura um papel. A polícia foi até a casa pela denúncia de um vizinho.
O maior nome que consigo ler é “polícia” e, atrás dela, os policiais estão de frente para mim, olhando. Ela rapidamente tira a mordaça da minha boca e minha primeira reação é ordenar que os policiais vão embora, dizendo que não fui eu quem os chamou e que se não forem embora, morrerei, assim como minha família.
Isso porque a empresária me ameaçava, dizendo que, se eu denunciasse ou saísse da casa, ela mataria meus pais, meus irmãos e por último, a mim.
Ao ouvir a policial dizer que foram enviados por Deus, relembro da oração feita há três minutos pedindo a intervenção divina. Olho novamente para o céu, clamando a Deus, e meu grito muda. Começo a gritar: ‘Deus existe, Deus existe, Deus existe, Jesus me ouviu, Jesus me ouviu’.
A policial, com lágrimas nos olhos, me pede calma, dizendo que Deus realmente existe e que eles estão ali para me tirar daquele lugar, mas precisam que eu fique calma, pois vão fotografar e filmar, já que ninguém acreditaria no que estão vendo. Eles seguem os procedimentos policiais e, em seguida, ela me tira das escadas.
“Parecia um sonho”
Naquele momento, parecia um sonho, como tantas outras vezes sonhei em sair daquela casa. Ela me abraça e sussurra no meu ouvido algo que nunca esquecerei. Ela diz: “Filha, eu te amo”. Eu não sabia o nome dela, só sabia que era policial porque li no papel, nem estava fardada. Mas ela me chamou de filha e disse que me amava.
Hoje sei que era Deus falando através dela, dizendo que me amava e que nunca me abandonou. Ela me ajuda a mostrar as torturas que sofri: a mulher me queimava com o ferro de passar roupa, me afogava em um tanque de lavar roupas, me dava choque com uma máquina, me esganava com cordas, colocava sacolas plásticas na minha cabeça, me enforcava, me queimava com pimenta, apertava minha língua com alicate, cortava meu dedo com tesoura, me deixava dormir no chão frio, me dava fezes de cachorro para comer, urina para beber e me submetia a diversos outros abusos.
Recomeço
Deus colocou um ponto final naquele sofrimento quando fui resgatada com vida. Passei quase nove meses morando em um abrigo, onde crianças entravam e saíam todos os dias, enquanto eu esperava por uma família. Embora meus pais estivessem vivos, a Justiça não me permitia viver com eles.
Fui então adotada por um casal de pastores, Ezenete e Marcos Rodrigues, que se tornaram meus pais adotivos e curaram minha alma. Eles são a razão de quem sou hoje.
Morei em Belo Horizonte por nove meses com meus pais adotivos. Após passar por todo o processo de cura e libertação, que foi proporcionado por eles, pedi à minha mãe para voltar para Goiânia, para a casa do meu pai.
Depois de alguns dias, ela me autorizou a retornar para Goiânia. Queria voltar porque sentia muita saudade dos meus pais biológicos, dos meus irmãos, de poder dizer o quanto os amava e decidi perdoá-los por tudo que aconteceu.
Com 17 para 18 anos, comecei a receber convites para pregar em várias igrejas, que aceitei com alegria. Eram convites para pregar, para contar meu testemunho de superação, de milagre e de cura. Assim, ia compartilhando nas igrejas por onde passava.
Com 19 anos, Deus realizou meu maior sonho: casar e ter uma família. Meu esposo e eu nos casamos em 27 de fevereiro de 2015. Já são 9 anos de casados, completados em fevereiro deste ano.
Depois do casamento, meu sonho era ser mãe. Recebi a notícia de que não poderia gerar filhos, mas criei na promessa de Deus de que me daria filhos. Em 2016, realizei meu sonho e dei à luz meu primeiro filho, Miguel, em setembro. Mais uma vez, em 2018, pude gerar e dar à luz meu segundo filho. Em 2023, pude gerar pela terceira vez, dando à luz meu terceiro filho em abril do mesmo ano.
Hoje, sou mãe de três filhos lindos: Miguel, Matheus e Marcos, minhas bênçãos, meus milagres, minhas promessas de Deus.
Além de mãe, sou missionária, viajando pelo Brasil para contar minha história de superação e milagre em igrejas e escolas, dando palestras que têm sido uma bênção.”
*Silvia Calabresi Lima, primeira mãe adotiva de Lucélia, foi condenada a 7 anos de prisão em 2008, assim como a empregada da casa, pelas torturas cometidas. O marido dela foi condenado a 1 ano e 8 meses por omissão.
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