Promotor de Justiça Luiz Antônio de Souza Silva sugere que mulher "aquiete o facho" e volte a se relacionar com seu agressor. A vítima denunciou o homem por violência doméstica e tentativa de feminicídio
Cristina Fibe, Universa
“Vocês deveriam aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos.” Essa foi a sugestão dada pelo promotor de uma vara de família de Vitória, no Espírito Santo, a uma vítima de violência doméstica que pedia pensão alimentícia para suas cinco filhas menores, na presença do ex-marido.
O portal Universa teve acesso a uma gravação da audiência, comandada pela juíza Clesia dos Santos Barros, na qual o promotor de Justiça Luiz Antônio de Souza Silva diz que “os filhos precisam que os pais estejam bem”.
“Agora eu vou falar assim, vocês com cinco filhos juntos, hein doutora? Cinco filhos juntos. Vocês em vez de aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos?”, afirma Souza Silva, em áudio da audiência, ocorrida em março. “Deus me livre”, a vítima responde. O promotor continua:
“Deus me livre, não. Quem tem cinco filhos juntos deveria aquietar o facho. Tá? É isso aí, tá?”
É possível escutar ainda Souza Silva afirmar que “todo mundo é livre, mas olha aí a consequência”: “Os filhos depois crescem, gente, os filhos precisam dum ambiente mais? A questão única não é só o dinheiro, a questão é o emocional dos filhos, é os pais estarem bem”.
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A vítima, Alessandra de Souza Silva, que se declara uma mulher preta e periférica, denunciou o ex-marido, Carlos Augusto de Aguiar, por violência doméstica e tentativa de feminicídio. Em depoimento à polícia, ele negou as agressões.
Com base na Lei Maria da Penha, ela tem medida protetiva para que ele não se aproxime. Depois de ficar casada e sofrer violência durante duas décadas, ela precisou construir uma rede de apoio para se divorciar.
“Me aflige que possa ter gerado desconforto”, diz promotor
Em nota enviada à reportagem, o promotor de Justiça Luiz Antônio de Souza Silva afirmou que não pode se manifestar publicamente sobre o áudio, não só por “não ter conhecimento do inteiro teor” da denúncia feita por Alessandra, mas por se tratar de ação de família que tramita em segredo de justiça.
No momento, o que posso transmitir é que, ainda mais enquanto membro do Ministério Público, me aflige bastante a ciência de que a minha atuação possa ter gerado eventual desconforto, certamente advindo de algum ruído de comunicação, que poderia ter esclarecido a respeito, instantaneamente, mesmo porque, seguramente, o possível faria para isso, já que não condiz com a forma como busco desempenhar minhas atribuições institucionais, escreveu Souza Silva.
Após a audiência, Alessandra afirmou ter se sentido humilhada. Em outro áudio, ela fala da dificuldade de ter que debater com o agressor pelos seus direitos. Na sentença, ficou definido que as cinco filhas ficarão na residência da mãe, que receberá do pai delas meio salário mínimo por mês. O valor corresponde a R$ 706, ou R$ 141 por filha.
“Eu morei com meu ex-marido 20 anos, e nesses 20 anos o que passei foi ser humilhada, violentada, sofri abuso psicológico”, afirma.
“A gente tem que debater com ex-marido e chegar para fazer audiência, e lá virar chacota para promotor, aí a gente sai de lá como lixo, né? Fica humilhada mais ainda, a gente vira chacota, e aí o que acontece, a gente fica calada e volta para casa”.
A conduta do promotor foi denunciada como violência institucional ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O caso foi encaminhado aos órgãos pelo Fordan, programa de extensão e pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O programa presta assistência e acolhimento a vítimas de violência doméstica.
Para a procuradora de Justiça e conselheira do Ministério Público de SP Nathalie Malveiro, é preciso atentar para o risco de revitimizar quem denuncia esse tipo de crime: “A Lei Maria da Penha inaugurou uma nova forma de abordagem da violência de gênero, sobretudo a que envolve violência doméstica”, diz.
É muito importante que os operadores do direito, promotores, juízes e advogados que atuam nas varas de família entendam essas dinâmicas a fim de evitar revitimização de mulheres que buscam um direito.
Conselheira do CNDH e promotora de Justiça do MP da Bahia, Márcia Teixeira acrescenta que a fala do promotor “leva a uma reflexão sobre a necessidade de capacitar todo o Ministério Público com conhecimentos específicos referentes a violência de gênero, violência contra a mulher, LGBTfobia, racismo”.
“O que isso sinaliza é que esse letramento sobre os direitos humanos, os tratados e convenções internacionais, isso tudo precisa entrar da nossa estrutura, nas nossas veias, no nosso sangue, porque somos promotores com uma atuação muito grande no combate à criminalidade, mas também precisamos ficar atentos aos grupos vulnerabilizados que estão sendo vítimas de violências, muitas vezes violências bárbaras no cotidiano”, completa Teixeira.
Procurado, o Ministério Público do Espírito Santo (MP-ES) informou não ter tido acesso ao áudio e nem ter recebido notificação do Conselho Nacional.
Em nota, ressaltou que as audiências das varas da família correm em segredo de justiça, “o que impossibilita o órgão de passar qualquer informação a respeito dos assuntos tratados ou situações ocorridas”. O CNMP afirmou não ter recebido ainda a representação sobre o caso.
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