Menina de 13 anos denuncia padrasto por estupro, é mandada para abrigo e sofre mais violência sexual
Menina de 13 anos era estuprada pelo padrasto desde os 6 anos de idade. Quando cresceu um pouco e conseguiu denunciar o homem, foi expulsa de casa e mandada para abrigos públicos, onde chegou a ser vítima de estupro coletivo. A menina fugiu e foi parar na rua. Em vídeo, ela chora e diz que tem medo de procurar ajuda e ser outra vez internada — ou enviada para a casa da mãe e do padrasto
Cristina Fibe, Universa
Num país em que seis a cada dez vítimas de agressão sexual são meninas de até 13 anos, segundo o Atlas da Violência 2024, o caso de Ana* ilustra não só a violência que acontece dentro de casa, mas os obstáculos que as crianças enfrentam na busca por justiça.
Ana, de 13 anos, precisou aprender cedo a se defender. Primeiro, buscou a ajuda da mãe, quando entendeu que os toques indevidos que o padrasto chamava de “brincadeira” eram, na verdade, violência sexual.
Em vez de protegê-la, a mãe passou a dar a ela, segundo a menina, remédios e bebida alcoólica, facilitando os estupros cometidos pelo marido desde que Ana tinha 6 anos, numa cidade do interior do Espírito Santo.
Quando cresceu um pouco, descobriu quem era o seu pai biológico, e contou a ele sobre os abusos que vinha sofrendo. Acolhida há um ano pela família paterna, Ana denunciou a mãe e o padrasto, e conseguiu medida protetiva para que não se aproximem dela. Como o pai trabalha em outro país, a menina passou a ficar com a tia-avó paterna, numa cidade próxima.
Começou então uma segunda etapa de violências físicas, sexuais e institucionais, denunciadas agora a órgãos como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJ-ES) pelo Fordan, programa de acolhimento de vítimas da Universidade Federal do estado (UFES).
Primeiro, o Conselho Tutelar afirmou que a tia-avó, por questões psiquiátricas, não teria condições de cuidar da menina — conclusão que mais tarde seria contestada por laudo médico. Mas a recomendação motivou que a Justiça negasse a permanência com a família do pai.
Em abril, Ana foi retirada da casa paterna, onde já estava ambientada, segundo relatório do Serviço Social da Vara de Família de João Neiva, e internada num abrigo público chamado Projeto Vida. De lá fugiu, afirmando ter sido agredida por “policiais e pessoas do abrigo”.
Transferida para a Casa de Acolhimento Provisório de Planície da Serra, foi vítima de estupro coletivo de vulnerável, nos arredores da instituição. Fugiu outra vez, e foi resgatada no último sábado (15), machucada e em situação de rua.
Num vídeo, Ana chora ao ser encontrada e diz que tentaram novamente machucá-la. Ela afirma ter medo de procurar ajuda e ser outra vez internada — ou enviada para a casa da mãe.
No fim de semana, o advogado que a representa, Maciel dos Santos Cunha, conseguiu devolvê-la ao lar paterno, em decisão provisória, assinada pela juíza de plantão. Ele afirma querer “simplesmente que essa adolescente seja amparada, porque até agora ela só tem sofrido” com decisões “arbitrárias”.
Ela encontrou amparo na família paterna, e aí veio o Estado com uma decisão institucional, a tirou do local em que ela estava se sentindo segura e a colocou no abrigo. E aí voltou todo aquele sofrimento do passado, e a gente tem tentado de todas as formas fazer com que o juiz, o promotor, o Estado ouçam essa adolescente.
O documento do Fordan pede que sejam apuradas as condutas do juiz da Vara de Família de Serra Bernardo de Alcuri de Souza, que mandou a menina para o abrigo; do promotor Fábio Halmosy Ribeiro e do juiz Gustavo Mattedi Reggiane, de João Neiva, “que insistem na reintegração da adolescente à família materna”; além do Conselho Tutelar e dos locais onde ela sofreu violência.
Coordenadora-geral do Fordan, Rosely Pires diz que foram anexados ao dossiê provas como um áudio da mãe do padrasto acusado de estupro, reconhecendo que Ana sofria violências no lar materno.
Queremos entender por que os órgãos envolvidos agem com tanta irregularidade. Por que não ouviram a criança ou atenderam ao relatório social que afirmava que estava harmonizada com o lar e a tia paterna? Por que enviaram a vítima para os abrigos onde foi agredida?
O Fordan e o advogado pedem que a guarda definitiva seja dada à família paterna, “com urgência”.
O Ministério Público discorda. Em manifestação feita depois da decisão da juíza de plantão, o promotor escreve que o padrasto foi absolvido das acusações de estupro, e portanto a menina pode ser devolvida à mãe. Anteontem, o pedido foi acatado parcialmente, e a Justiça mandou que a menina seja levada para a casa da tia materna.
O advogado de Ana afirma não ter sido notificado da absolvição do padrasto — e que, se houve, foi à revelia da menina, que não teria sido ouvida. Ele vai recorrer para que Ana não volte para perto da mãe.
Em nota, o MP-ES disse que “todas as manifestações e decisões no processo tiveram por base laudos e informações constantes nos autos” e que “repudia o vazamento de informações de processos que correm sob sigilo judicial garantido por lei para proteger os direitos das vítimas e de crianças e adolescentes”.
“Nesse sentido, é necessário que os órgãos responsáveis tenham mais cautela antes da divulgação unilateral de fatos e notícias sem que aqueles tenham sido devidamente apurados e sem que esses processos tenham sido concluídos. Assim sendo, as informações já divulgadas em relação a este processo específico são parciais e não correspondem à completa realidade dos fatos”, continua a nota.
“Por fim, o MP-ES lamenta o ocorrido com a adolescente e informa que já vem adotando todas as providências para auxiliar e acompanhar a vítima, resguardando seus direitos e atuando para que fique na família e no local mais adequados à sua proteção.”
A Prefeitura de Serra e a Secretaria de Assistência Social da Serra, responsáveis pelos abrigos, afirmaram que irão apurar as denúncias “com o máximo rigor” e “tomar as providências cabíveis”. A secretaria diz, também, que os abrigos passam por “monitoramento contínuo”.
No Tribunal de Justiça do Espírito Santo, a Supervisão das Varas da Infância e da Juventude afirmou que “encaminhará à Corregedoria-Geral da Justiça do estado uma solicitação de instauração de procedimento interno para a devida apuração dos fatos e demais averiguações cabíveis”.
O órgão ressaltou também que o processo está em segredo de Justiça, o que “impede sua discussão pública”. “Isto posto, levantamentos preliminares dão conta de que os procedimentos adotados pelos magistrados foram embasados em relatórios médicos e de equipe multidisciplinar.”
*nome fictício para proteger a identidade da menina.
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