Verena Glass e Jorge Pereira, FRL
A comida está cara. Este fato, que tem impactado duramente o bolso da população brasileira em seu cotidiano, é explicitado pelos últimos indicadores do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA do mês de abril, que apontou um aumento três vezes maior do que a inflação nos preços dos alimentos. E com a tragédia climática que castiga o Rio Grande do Sul, maior produtor de arroz e trigo do país, este quadro pode sofrer um agravamento.
Para discutir as causas estruturais do alto preço da comida, os aspectos circundantes e as perspectivas políticas de enfrentamento deste problema, a Fundação Rosa Luxemburgo (FRL) conversou com o diretor de Política Agrícola e Informações da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Sílvio Porto, professor licenciado da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), doutorando em Meio Ambiente e Sociedade pela Universidade Pablo de Olavide (UPO), na Espanha, e mestre em Agroecologia pelas Universidades Internacional da Andaluzia.
FRL – Depois de termos sofrido um desmonte dos programas de combate à insegurança alimentar no último governo, não é difícil imaginar que a nova gestão esteja enfrentando alguns problemas na recomposição de medidas eficazes de combate à fome. O que explica essa alta dos preços dos alimentos? Há problemas de estoque? O governo tem se empenhado em melhorar a renda da classe trabalhadora, via salário mínimo e programas sociais, por exemplo. Mas isso garante minimamente a segurança alimentar da população?
Sílvio Porto – Quero começar a partir da fala do Presidente Lula no lançamento dos decretos das Cozinhas Solidárias e da Nova Cesta Básica, no começo de março deste ano. Naquela ocasião, o Presidente Lula disse que não vai descansar enquanto não tirar novamente o Brasil do mapa da Fome. E que é uma questão de princípio, de concepção e de obrigação ética todos nós trabalharmos na perspectiva de fazer essa mudança. Mas há uma divergência no governo sobre se a questão se resolve só com acesso à renda; porque não se pode negar que pessoas que recebem acima de um salário mínimo conseguem garantir minimamente o acesso à alimentação. O fato, no entanto, é que nós temos um problema estrutural em relação à oferta de alimentos. E se hoje ele não é mais grave, é exatamente em função do nível de subconsumo que ainda existe em razão da renda.
O público beneficiário do bolsa família, por exemplo, em tese, não está passando fome, mas o que essas pessoas comem? Sobretudo alimentos ultraprocessados.
Então, o novo decreto sobre cesta básica trata exatamente dessa perspectiva de ampliação e garantia de acesso à alimentação de qualidade ou alimentação saudável, comida de verdade. Também estamos falando de hábitos alimentares regionais e de comida produzida, sobretudo, a partir da agricultura familiar camponesa e tradicional, numa perspectiva que se aproxima ou dialoga com sistemas alimentares agroecológicos.
Essa proposta se contrapõe frontalmente ao modelo de agricultura hegemônica, dominada pela produção de commodities com um dos maiores níveis de consumo de agrotóxicos, fertilizantes químicos e sementes transgênicas do mundo. Nós percebemos uma redução da base alimentar de forma muito expressiva, em que a indústria alimentar assumiu um papel de muita relevância, utilizando uma base de matéria-prima reduzida – sobretudo milho, soja e trigo.
Assistimos, também, a redução da diversidade alimentar no prato da população brasileira, principalmente, a de baixa renda, trabalhadores e trabalhadoras com renda entre um e dois salários-mínimos.
Então, essa é a grande questão:
Para que haja um novo referencial referente à alimentação, nós precisamos de mudanças estruturais no âmbito da produção, no âmbito fundiário e do referencial sociotécnico, na perspectiva de que a agroecologia passe a ter um peso maior.
Isso como resposta não só ao problema da fome, da inclusão produtiva, da democratização da terra e da água e do acesso aos meios de produção, como também valorizando e reconhecendo essa agricultura. E ainda avançar na demarcação de terras indígenas e na garantia aos territórios por parte das comunidades tradicionais de uma forma ampla.
Quando você afirma que existe um problema estrutural em relação à oferta de alimentos, o que isso significa?
Nós temos um enorme desafio, que começa exatamente por alterar o mapa da produção dos alimentos básicos. Por exemplo, a produção de arroz, feijão e mandioca sofreu uma drástica redução nos últimos 15, 20 anos. Tivemos uma pequena recuperação de área plantada de arroz na última safra, mas ainda insuficiente, e também altamente concentrada, geograficamente, no sul do Brasil, que passa por uma terrível calamidade decorrente das mudanças climáticas. Então, é fundamental que a gente retome a produção e repense isso a partir de uma perspectiva territorial.
A reterritorialização dos sistemas alimentares é fundamental para que a gente consiga mudar o ponteiro da produção, a ponto de termos excedentes com os quais o governo possa fazer estoques públicos, sobretudo de arroz. Além disso, precisamos mudar a geografia da produção, possibilitando um contraponto em relação à soja. São 45 milhões de hectares plantados de soja hoje, e a cultura domina a ocupação do solo agrícola, destruindo os processos regionais de oferta de alimentos diversificados, vinculados agricultura familiar camponesa.
Quando você aponta a necessidade de mudanças estruturais na ocupação do espaço rural, nos parece que o governo enfrenta uma questão delicada: na última divulgação do PIB, o crescimento da economia em 2023 – um avanço de 2,9% em relação a 2022 – foi bastante festejado. E este bom desempenho teve uma participação importante do setor agropecuário. Você enxerga alguma perspectiva de mudança na priorização do modelo de agricultura pelo governo?
É muito difícil pensar num processo de mudanças profundas em que o mercado determina o que acontece quanto ao uso e ocupação do solo. Porque, nessa perspectiva, quem dita as regras é a soja, o algodão e o milho; ou seja, a produção que tem maior liquidez e uma referência de preço mais atrativa. Então, é fundamental pensar territórios e zonas de produção. Poderia se começar, a priori, pelo fortalecimento dos assentamentos de reforma agrária, e avançar no fortalecimento de territórios de comunidades tradicionais e indígenas. No caso de comunidades tradicionais, infelizmente o nível de titulação é muito baixo, então é fundamental que se avance no reconhecimento territorial e na titulação dessas áreas. A preservação da biodiversidade está vinculada a territórios indígenas, populações tradicionais e unidades de conservação.
Nós precisamos estabelecer um planejamento e uma forma de ocupação e destinação das terras que permita a valorização da biodiversidade e a democratização do acesso à terra, e que coloque freios à expansão das commodities.
Por exemplo, lá atrás, o governo tomou uma posição de que não seria feito o zoneamento agrícola de cana no Pantanal e na Amazônia. É algo semelhante a isso. Por que foi feito isso para cana e por que não pode ser feito isso para outras commodities?
Então, quando o governo afirma: vamos lançar o programa da recuperação das áreas degradadas de pastagens, numa perspectiva de conversão para produção de grãos, se isso não tiver bem delineado numa política que oriente essa ocupação, nós vamos quase dobrar a produção de soja a partir desse movimento, porque certamente, do ponto de vista econômico, é o que vai ser mais interessante para o setor privado.
Do ponto de vista da adesão, é muito mais fácil produzir uma soja transgênica com poucos trabalhadores e mecanização, do que produzir arroz, feijão ou mandioca. Essa é a questão. É muito desigual, vamos dizer assim, quando se permite e se sobrepõe a escolha privada em detrimento do interesse público e comunitário. É fundamental que haja uma ação por parte do Estado, em termos regulatórios fortes, com direcionamento de políticas públicas. Se nós não fizermos isso, nós não vamos ter justiça territorial, ambiental ou fundiária, e principalmente soberania alimentar nesse país.
No tocante às políticas púbicas de fortalecimento da agricultura familiar, parece que tem havido um esforço de reconstrução de programas desidratados pelo governo Bolsonaro em 2023. Poderia falar um pouco sobre essas políticas?
Para um primeiro ano de retomada, e principalmente vindo de um contexto de pandemia e de um governo pautado pelo negacionismo e destruição das políticas existentes, de fato acho que conseguimos avançar de forma significativa em relação a alguns programas. O PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) é um deles. Do ponto de vista do desenho da retomada do programa, nós avançamos muito. Eu participei da elaboração do PAA em 2003, e estou, agora, nessa retomada 20 anos depois. Vejo que conseguimos fazer uma atualização do programa numa perspectiva de inclusão social bastante relevante. Em especial em três pontos que mostram essa mudança: primeiro, equidade de gênero na perspectiva de participação das mulheres. É exigindo um mínimo de 50% de mulheres nos projetos, e chegamos a 73% dos projetos contratados no ano passado com participação de mulheres, em projetos operados pela Conab.
Do público que acessou o PAA em 2023, 70% está no Cadastro Único para Programas Sociais (CAD único) e 46% no Bolsa Família. Também chegamos a 19% de participação de povos e comunidades tradicionais e indígenas. Nós nunca tínhamos chegado a esse patamar no contexto do PAA, e foram quase 400 tipos de alimentos diferentes adquiridos pelo programa. Então isso mostra exatamente o que é a diversidade alimentar que se expressa a partir do PAA
Por outro lado, quando a gente compara isso com o que o Crédito Rural oferta em termos de possibilidades de produção, mesmo no âmbito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), 80% a 90% dos recursos são destinados a 5 ou 6 produtos. Ou seja, mesmo na agricultura familiar, a soja mais uma vez tem uma presença muito expressiva na tomada do crédito, sobretudo no Sul e Sudeste. Embora agora tivemos avanços em relação ao PRONAF B (financiamento de investimento das atividades agropecuárias e não-agropecuárias desenvolvidas no estabelecimento rural ou em áreas comunitárias rurais) em relação a participação das mulheres, esse modelo de crédito lá dos anos 1960 precisa ser revisto, o que não é fácil porque envolve toda uma relação com o sistema financeiro.
Então, é fundamental que uma outra modalidade de crédito, não bancarizada, seja ampliada e disponibilizada no âmbito do PRONAF. Na linha do PRONAF B, que subiu de R$ 4.500 para R$ 12 mil para às mulheres e R$10 mil para os homens, o grande diferencial é que ela obedece uma lógica sistêmica, não por produto, que levaria a uma especialização produtiva e não fomentaria a diversidade. Nesse contexto, conseguimos ter alguns resultados bem interessantes nesse primeiro ano.
Agora, é evidente que, quando olhamos para reforma agrária, para a questão do assessoramento técnico, o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar é muito aquém das necessidades. Seja na Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), seja no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e no próprio Ministério, essa foi infelizmente a realidade de 2023.
Como você falou agora do PAA, programa ligado à CONAB, gostaríamos de entender como está se desenhando a formação de estoques de alimento da CONAB, qual o orçamento destinado e empenhado, e quais as perspectivas?
No processo da transição [de governos, no final de 2022] nós falávamos da necessidade da CONAB começar a operar em 2023 com um bilhão de reais. Isso não se viabilizou, e conseguiu-se chegar num patamar que era considerado o mínimo, de R$500 milhões. Para comparar, o governo Bolsonaro projetou, no programa Alimento Brasil, apenas R$2,6 milhões para o Brasil todo no ano todo. Então, a gente saiu de um patamar de R$2,6 milhões para R$500 milhões. Só que quando abrimos o nosso sistema para receber demandas, os pedidos bateram um bilhão de reais. Tivemos depois uma suplementação de R$250 milhões e uma destinação de cerca de R$25 milhões advindos por uma medida provisória, e chegamos a uma execução contratada e empenhada de R$712 milhões. Adicionando o recurso que o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social (MDS) repassou para estados e municípios, nós chegamos a cerca de R$920 milhões que foram contratados no ano passado.
Esse ano, nós deveríamos prever orçamento na casa de um bilhão de reais, seria o referencial mínimo adequado. No entanto, estamos próximos de R$500 milhões já com as emendas parlamentares; ou seja, nós estamos com patamar semelhante ao do ano passado. Isso significa que estamos muito restritos e com uma capacidade de atuação muito pequena. Eu quero acreditar que nós vamos ter algum tipo de suplementação ao longo do ano. O governo está bastante atento à demanda e sabe que é uma pauta de interesses e reivindicação dos movimentos sociais. A pauta certamente estará na agenda de todos os movimentos no plano safra. Acredito que o PAA assumiu de fato uma grande relevância; talvez como nunca teve no passado.
Em relação à formação de estoques, diria que é a equação mais difícil. Nós conseguimos comprar, no começo do ano passado, cerca de 350 mil toneladas de milho e, confesso, foi até uma surpresa, porque não havia um cenário e uma expectativa de uma queda tão significativa do preço para que nós pudéssemos atuar.
Nessa equação há dois elementos fundamentais: primeiro, o recurso pra CONAB, que precisamos ampliar significativamente. Segundo, precisamos trabalhar com outro referencial de preço mínimo, principalmente para arroz e feijão, para que nós possamos pensar em voltar a formar estoque. Porque no contexto atual, os nossos preços não estão abaixo do mercado. O preço mínimo é um estimulador, uma garantia. É algo que provoca e contribui para mudar o ponteiro da produção, e precisa ser divulgado com antecedência, como forma de estímulo, junto com outras ações de governo. No contexto atual, o governo não tem como promover a formação de estoque público de arroz, por exemplo, porque isso teria impacto na elevação de preço no mercado, em decorrência da baixa disponibilidade, em relação ao consumo.
Uma política de preço mínimo para os alimentos, que torne vantajosa economicamente a sua produção, e desestimule a expansão da produção de commodities, estaria no cenário político do governo?
Nós vamos retomar este debate agora no Plano Safra. Por exemplo, o preço do arroz vai seguir em patamares altos, não vai baixar de forma expressiva, e isso compromete a capacidade de consumo da população de baixa renda e acaba levando as pessoas a consumirem mais ultraprocessados. A situação do arroz foi agravada com a situação de calamidade no Rio Grande do Sul, que concentra mais de 70% da produção brasileira. Por isso, o Governo anunciou a medida que garante a importação de até um milhão de toneladas de arroz, via Conab, com vistas a estabilizar os preços no mercado, uma vez que a venda do produto será realizada por varejistas nas regiões metropolitanas das grandes cidades. Essa é uma questão que, no debate interno, acredito que vamos conseguir minimamente avançar. Pelo menos estará na agenda do debate político do Plano Safra
Logo no início da nossa conversa, você mencionou a regulamentação do programa das Cozinhas Solidárias, que devem fornecer alimentação gratuita à população em situação de vulnerabilidade. Qual a participação da CONAB nesse programa?
Vou começar falando da perspectiva do PAA nas Cozinhas Solidárias, e não do programa de Cozinhas Solidárias, que é coordenado pelo MDS. As cozinhas são uma grande inovação, uma tecnologia social, que vêm de processos de acúmulo social dos movimentos, que mostraram ao governo alternativas de atendimento à população em situação de insegurança alimentar, sobretudo população em situação de rua.
O desafio é que, ao institucionalizar o processo criado pelos movimentos, a gente não retire ou comprometa a sua autonomia. Que, ao institucionalizar, não se crie um processo de engessamento, de dificuldade e até de criminalização dos espaços das cozinhas. Ou seja, como estaremos repassando recursos públicos para estas iniciativas por meio de alimentos, os órgãos de controle e fiscalização, como a Vigilância Sanitária, não estão habituados com esse tipo de construção social não comercial e de aplicação da política pública. Porque os movimentos não têm acesso a uma infraestrutura que seja compatível com os padrões comerciais. Sabemos que a grande maioria das cozinhas não consegue alcançar esse referencial. Seria preciso alocar recursos para que, num processo de médio prazo, haja melhorias significativas nessas estruturas, mas é impossível imaginar que uma cozinha como a que eu visitei em Recife, e que fica nas palafitas da periferia, vai ter uma mudança muito expressiva naquela realidade. Há uma série de outros direitos sociais básicos que necessitam de efetivação.
Nesse momento, em que pese toda precariedade, a intenção é que nós consigamos dar vazão a esse processo de auto-organização e de solidariedade que se estabelece a partir das Cozinhas Solidárias, disponibilizando alimento e apoiando esses coletivos para que consigam ampliar sua capacidade de atendimento à população em situação de insegurança alimentar. Essa é a nossa principal diretriz em relação ao PAA. Nós queremos realmente priorizar e ampliar a capacidade de ação das cozinhas e dos movimentos, e já começamos a fazer isso. Temos um conjunto de cozinhas em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Recife, em que, no âmbito da Conab, já foram contratados os projetos e os alimentos que serão destinados para compor as refeições das cozinhas.
Por outro lado, tem a logística. Por exemplo, o arroz está muito concentrado no sul do Brasil, mas é fundamental nas Cozinhas. Então, devemos assumir parte do ônus de comprar e fazer a distribuição. Já estamos discutindo apoios dos estados e do MDS para a compra de caminhões. O objetivo é minimizar o custo da logística para que os alimentos possam efetivamente chegar até comunidades e coletivos que estão estruturados sobretudo desde a pandemia.
No tocante ao PAA, sempre olhamos muito a realidade das organizações de produção. E agora, com as Cozinhas, a gente realmente está olhando para o público que é atendido com os alimentos do programa. Então, isso está fazendo com que a gente tenha indicadores efetivos em relação à possibilidade de transformação real da vida das pessoas a partir das Cozinhas Solidárias. Antes trabalhamos da produção para o consumo. E agora queremos ter a possibilidade de trabalhar a partir do consumo, a partir desses coletivos, a partir dessas demandas. Sobretudo, onde está a concentração de pobreza e da fome no país, onde possamos fazer disso uma junção entre agricultura família camponesa, povos e comunidades tradicionais, povos indígenas, fazendo chegar os alimentos produzidos pelas diferentes categorias sociais para essa população que tanto precisa, com um processo qualificado de acompanhamento.
Temos aí outra questão complexa. Infelizmente, a fome e a insegurança alimentar e territorial também têm afetado duramente estes segmentos. Indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, pequenos agricultores e assentados estão sofrendo processos violentos de espoliação de seus territórios, seja pela invasão e grilagem de terras, pelo garimpo ilegal, pelo desmatamento ou pela mineração, seja por grandes projetos de infraestrutura, como hidrelétricas, parque eólicos, rodovias ou ferrovias. A Reforma Agrária anda lenta, a homologação de terras indígenas e quilombolas também, sem falar do Marco Temporal, aprovado pelo Congresso Nacional. Como estas populações podem produzir alimento sãos e em quantidade para garantir a soberania alimentar para si e para as cidades, nestas condições?
A grande desvantagem que temos é exatamente a correlação de forças no Congresso Nacional. A agenda do Congresso Nacional no campo agrário vai pelo caminho de afirmar cada vez mais a perspectiva das commodities em detrimento dos alimentos. Ou a sociedade se dá conta do que isso significa, ou o problema se perpetua. Se a sociedade acorda, isso pode impactar as eleições, incluindo as eleições municipais desse ano. Acho que é muito importante, por exemplo, o que a Articulação Nacional de Agroecologia vem fazendo, de discutir agroecologia nas eleições. Por mais limitado que seja o alcance dessa ação, eu acho que ela de alguma forma politiza.
Temos uma correlação de forças muito desfavorável para a produção de alimentos saudáveis, de uma agricultura sustentável de base camponesa. Esse é o quadro. Acho que é crucial que os movimentos sociais façam um debate no sentido de reorientação das políticas do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), principalmente no tocante ao crédito.
É inadmissível que a gente siga financiando soja no Pronaf, por exemplo. Se nós considerarmos o que a Lei Kandir significa em termos de renúncia fiscal… Só as renúncias fiscais em relação a agrotóxicos e fertilizantes chega aos 57 bilhões de reais.
No campo do crédito, esses 8 ou 9 bilhões de reais que são colocados por ano em relação a equalização de juros, boa parte disso vai para soja. Isso poderia estar indo para o fortalecimento de territórios agroecológicos, poderia fortalecer a retomada de uma política robusta de investimento na área de logística e de processamento, dando outras condições para agricultura familiar camponesa se inserir no mercado de alimentos de uma forma mais qualificada, tendo acesso a recursos não reembolsáveis ou de baixíssimos custo. É uma questão de inversão e de reorientação política. Com todas as contradições que nós temos, com toda a hegemonia que existe por parte das commodities, eu ainda acredito que temos condição de reforçar alguns territórios de resistência.
*Verena Glass e Jorge Pereira são coordenadores de projetos no escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo.
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