Deus e a genialidade de Daiane dos Santos
O Deus citado ao acaso, como um nome sempre à disposição para explicar coisas singelas e milagres, foi substituído pelo Deus das convicções religiosas há muito tempo. É esse o Deus institucional que aparece agora nas Olimpíadas.
Não mais aquele do graças a Deus. Mas o que é citado como parceiro de conquistas, como o motivador e o que está acima de todas as forças e todos os sonhos. Os medalhistas do judô William Lima (prata) e Larissa Pimenta (bronze) e a sempre fadinha Rayssa Leal (também bronze) citaram Deus durante os jogos.
A manifestação mais identificada com o Deus acima de todos foi a de Rayssa, que se comunicou em libras com o público, ao ser filmada: “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”.
Larissa e William fizeram referências enfáticas a Deus como a presença que ajuda a explicar as medalhas conquistadas, ou que talvez seja a mais importante de todas as explicações.
É a realidade da influência das religiões em todas as áreas. Condutas são orientadas pela fé de ginastas, lutadores, jogadores e jogadoras de futebol, cantores, influencers. Formadores de opinião e inspiradores de atitudes edificantes têm citado Deus de um jeito nunca citado antes.
Seriam todos eles evangélicos? Não interessa. O que importa é ter a compreensão desse fenômeno, que se expande para muito além das suas conexões com segmentos da política e das bases do ultraconservadorismo.
Foi esse conservadorismo que reagiu mal a uma das performances da abertura da Olimpíada, confundindo a representação debochada da festa de Baco com o que seria, e não era, uma afronta à Santa Ceia. E se fosse?
O humor faz rir com Cristo na cruz, até com uma imaginária gravidez de Nossa Senhora e com as gafes do Papa Francisco. Riem de Abraão e de Moisés. Por que não poderiam mostrar uma Santa Ceia parisiense atrevida e LGBTQIA+, se a imagem consagrada de Jesus com seus apóstolos é uma obra de arte?
E onde entra, em meio às citações de Deus e à controvérsia religiosa, a genialidade de Daiane dos Santos citada lá no título? Entra agora, logo a seguir.
Em entrevista a Maju Coutinho, no Fantástico, a jornalista provocou a gaúcha por seu pioneirismo, por ter sido a primeira brasileira a obter medalha em um campeonato mundial e a primeira atleta negra a conquistar medalha de ouro na ginástica artística.
E o que respondeu Daiane, agora comentarista da Globo em Paris? Que ela foi de fato pioneira como medalhista. Mas que antes dela vieram a ginasta americana Dominique Dawes e as brasileiras Melânia Luz, velocista, e Aída dos Santos, no salto em altura. A primeira brilhou nos anos 70, e as brasileiras, dos anos 40 aos 60. Todas negras.
Daiane não citou apenas mulheres pioneiras, mas mulheres negras. Todas excepcionais, ou não teriam sido atletas de ponta. Nenhuma criou algo semelhante ao salto duplo twist carpado, uma das mais atrevidas e mágicas invenções de todos os esportes.
Mas as três vieram antes dela. Três negras poderosas em redutos de brancas. Foi o que Daiane disse a Maju: nós estamos aqui, inclusive você, porque outras vieram antes de nós. Vieram mais de meio século antes da fantástica Rebeca Andrade. Melânia foi a primeira mulher negra a representar o Brasil numa Olimpíada, em 1948 em Londres.
Nas buscas pelo duplo twist carpado no Youtube, o primeiro vídeo que aparece é o de Daiane com um enfeite branco na cabeça, os olhinhos arregalados e a corrida para o salto mágico. A narradora espanta-se com o vê e exclama: “Oh, my God”.
Deus decidiu aparecer ali, inclusive o Deus da narradora, porque antes existiram Dominique Dawes, Melânia Luz e Aída dos Santos. E porque Daiane dos Santos, que veio depois, sabe que sem elas não haveria o caminho, a verdade e a vida, e as Olimpíadas seriam uma festa dos brancos e dos que acreditam que Jesus é um loiro de olhos azuis.
A bela entrevista a Maju Coutinho foi apresentada com o título de ‘negritudes’. Daiane foi uma atleta genial e é uma cidadã exemplar.
*Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre. É autor do livro de crônicas Todos querem ser Mujica (Editora Diadorim).
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