Educação

O IDEB e o Bolsa Família

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Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Não sou eu que digo, é a ONU: o Bolsa Família foi um dos maiores e mais eficazes programas de distribuição de renda do mundo. Nem mesmo o governo neoliberal de Michel Temer ou o de direita do Bolsonaro tiveram coragem de acabar com ele, embora talvez ideologicamente não concordassem.

Certamente há muitos defeitos e falhas no programa. Provavelmente pessoas que não se enquadram nos requisitos acabam burlando as regras e recebendo. Assim como acredito que possa haver pessoas que têm direito (e necessidade) e não conseguem juntar os documentos comprobatórios para o benefício.

Acho, contudo, que ele tem muito mais virtudes do que erros. Um dos seus pontos positivos, acredito, é um dos seus objetivos: aumentar o acesso à educação das crianças e jovens.

Há alguns dias, foram divulgados os resultados do IDEB. Os números, no geral, são desoladores.

É fato que a escolarização vem aumentando ininterruptamente no País, mas, cada vez os estudantes aprendem menos. O Brasil, ao longo dos tempos e em todas as esferas (municipais, estaduais e nacional) e independente do espectro político do governo, está se mostrando eficaz em oferecer vagas na Educação Básica. Convenhamos, é relativamente simples colocar as crianças nas escolas. O Governo Federal paga às famílias para que matriculem seus filhos (Bolsa Família), a Prefeitura oferece transporte. As prefeituras e os governos estaduais constroem um prédio com questionáveis condições de habitação e contratam professores pagando irrisórios salários. Pronto. O estado fez a sua parte. As crianças e os jovens estão na escola.

O que acontece do portão pra dentro desse educandário, no entanto, não parece preocupar as autoridades.

Além dos salários pouco atrativos (geralmente, no setor público, são os menores dentre os cargos que exigem curso superior. Não raro, perdem até para alguns de nível técnico), o ambiente escolar é muitas vezes insalubre. Haja vista a quantidade de profissionais afastados por problemas psicológicos. A indisciplina dos adolescentes está cada vez pior. Se nossos avós apanhavam dos professores, agora são os professores que apanham dos alunos. E não é exagero retórico. Eu já sofri agressão física e ameaças. Isso sem falar das agressões verbais.

E o que a Escola pode fazer quanto a isso? Nada. Tive uma colega que foi ameaçada de levar uma facada. Procurou a respectiva secretaria de educação e ouviu que eles nada poderiam fazer com o estudante de quinze anos, uma vez que ele não consumou o fato e tinha direito de estar na escola, ainda que fosse só pra jogar bola e desrespeitar professores e colegas. Se ela desejasse, poderiam ver uma transferência de escola. Pra ela, não pra ele.

As leis tiraram toda a autoridade administrativa e punitiva das escolas. Agora, como remendo, propaga-se a ideia de escolas militares, com a concordância, eu não duvido, de muitos colegas. Eu os compreendo. Mas não precisamos de um sargento armado e fardado no recreio. Precisamos nós, professores e gestores, termos poder administrativo disciplinar. E sim, com poder de punição.

Geralmente, essas provas de avaliação da educação levam em conta o nível de aprovação. É a maquiagem borrada dos números. Em vários sistemas de educação a reprovação é proibida. É gritante o número de estudantes que terminam o ensino fundamental na idade (dita) certa, mas sem saber o básico. Não raro, nem alfabetizados estão.

Já ouvi de especialistas de educação (esses que tem doutorado, mas não entram numa sala de aula há décadas) que são contra a reprovação porque cada aluno tem o seu momento de aprendizagem. A ser verdade essa premissa, aí mesmo que ter-se-ia que haver reprovação para aqueles que não aprenderam ter a oportunidade de aprender no próximo ano. A reprovação não necessariamente é um castigo. Ela pode fazer parte do processo. Aliás, passamos por várias reprovações na vida. Eu já reprovei na escola (quando reprovar era o resultado da falta de estudos), no vestibular, tirando carteira de motorista, em concursos públicos e até em pretensas conquistas amorosas. Não é jocosidade minha. A frustração existe em todas as searas da nossa vida. Em todas as minhas reprovações, seja na escola ou na faculdade de História como “da vida”, eu amadureci e revi condutas que me levaram ao sucesso depois, seja no trânsito, na profissão ou mesmo no amor. Já dizia Rousseau: “a criança que não ouve não tende a ser um adulto frustrado.” Estamos trabalhando os nãos e as frustrações das crianças na escola, ou estamos a passar pra elas que no mundo “cada um tem seu tempo”, numa falácia que lhes frustrarão quando desmentida pelas suas próprias vivências? E provoco ainda mais: sujeito que, adolescente, é aprovado sem estudar não será o mesmo que não aceitará o “não” da pretendente e cometerá um crime passional? Enfim, que adultos queremos no futuro?

Em alguns casos, a família do estudante reprovado procura o Judiciário para tentar rever o resultado. Duas considerações. A primeira é como já disse, a reprovação não necessariamente deve ser entendida como punição. Digo mais: é direito do indivíduo repetir o ano e aprender o que não aprendeu no corrente. Por mais que isso custe aos cofres públicos e aos índices de defasagem idade-série e de repetência (eis o motivo da pressão que algumas secretarias de educação fazem pela aprovação em massa e incondicional). O segundo ponto é o desrespeito ao trabalho do professor. Se ele afirmou que o estudante não tem condições de ser aprovado, por que se contesta o seu diagnóstico? Contestamos o que o médico afirma numa consulta ou vamos reto à farmácia comprar os prescritos? Construímos todas as vigas que o engenheiro desenhou na planta da casa ou procuramos o Fórum de Pequenas Causas pra contestar seus cálculos?

Claro que é sempre traumático para um jovem perder o ano e se afastar dos amigos. Mesmo em lugares em que “se pode” reprovar os alunos, essa é uma decisão difícil e só tomada depois de analisada bem a situação e em conversas com os pares. Se se chegar à conclusão de que realmente o estudante não atingiu os objetivos mínimos e que é o melhor pra ele repetir o ano, com que competência um Juiz de Direito muda esse diagnóstico (vou insistir nesse termo)?

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É provável que as notas do IDEB só não foram menores por causa justamente do número de aprovações deliberadas de várias instituições.

E as perguntas que essa e outras provas levam são muitas vezes equivocadas. Questiona-se não por que os alunos não aprendem, mas as reprovações. Ora, aprovar estudantes é fácil. Basta justamente isso, dizer que estão aprovados e sair de férias.

Claro que os índices de reprovação deve servir de base e posterior alerta para o fato de que os alunos não estão aprendendo tudo o que deveriam. O que e onde se deve mudar para que eles aprendam e aí, consequentemente, sejam aprovados.

Só que, amiúde, a responsabilidade recai quase toda na escola e nos professores. Não percebo estudos apontado o que a família e o que os próprios alunos devem fazer para que o seu processo educacional seja mais produtivo. E já antecipo: estudar não é necessariamente prazeroso. É um processo que requer investimento de tempo e energia da família e do próprio estudante. Os estímulos e as motivações devem ser incessantes. Ocorre que essas aprovações em massa, sem mérito algum, levam o estudante à zona de conforto. Já que não faz diferença em termos de ser aprovado ou não a sua dedicação, ele prefere o ócio. Não os julgo. O ser humano trabalha com recompensa. Em muitas matérias da faculdade eu estudei só o básico pra ser aprovado. Não deslumbro que uma criança ou adolescente (cheio de outros interesses) vá estudar visando “ser alguém na vida” (seja lá o que isso for).

A síntese é esta: os estudantes de ensino fundamental estão saindo do nono ano cada vez sabendo menos. Isso resulta num ensino médio nivelado por baixo. Donde questiono: qual o nível dos nossos estudantes universitários? Que profissionais a educação brasileira forma para o mercado de trabalho? Teremos uma força de trabalho (braçal e intelectual) realmente produtiva e ética?

Evidente que não me refiro aos estudantes com laudos comprovando que tem problemas cognitivos. Esses têm conteúdos e avaliações adaptadas e os avanços esperados são com relação a eles mesmos. Aliás, um adendo: esses estudantes que requerem aulas e materiais adaptados são atendidos pelos mesmos desvalorizados professores dentro da sua carga horária e sem uma remuneração extra pra isso. Já falei da sobrecarga e do desestímulo à profissão, né?

Quando se fala em avanço da educação, seria pertinente realmente averiguar a qualidade desse ensino e o quanto os atores envolvidos estão se dedicando. O Bolsa Família, por exemplo, deveria estar vinculado não só à assiduidade dos estudantes como também à sua pontualidade e compromisso com seus estudos. Sim, meritocracia. Palavra cara à esquerda e proibida pelos pesquisadores de gabinete, mas presente em qualquer lugar que se vá e o no que se deseja fazer.

Talvez a qualidade do ensino (e, posteriormente, da sociedade como um todo) passe pelos nãos e pelas pequenas frustrações pedagógicas. E o Bolsa Família, nesse sentido, pode ser uma ferramenta ainda mais eficaz de combate à pobreza e até mesmo na melhoria da mão de obra brasileira, numa cidadania realmente plena.

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

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