Assad derrubado, o que pode acontecer com a mudança de poder na Síria?
O reinado de Bashar al-Assad na Síria acabou. As milícias HTS tomaram rapidamente o poder e anunciaram a reconstrução da Síria. O que pode acontecer agora?
Baran Serhad, Esquerda Diário
Bashar al-Assad deixou a capital síria, Damasco, na noite de domingo. As milícias islâmicas Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) disseram ter chegado à capital sem encontrar resistência do exército. O primeiro-ministro Mohammad Ghazi al-Jalali concordou em iniciar imediatamente a transferência de poder. Isto marca o fim de uma era na Síria que começou originalmente com o golpe militar de Hafez al-Assad (pai de Bashar al-Assad) em 1970.
Desta vez não houve apoio a al-Assad
A ofensiva militar das milícias HTS em 26 de Novembro apanhou al-Assad desprevenido. Começando no noroeste da Síria, as milícias conseguiram conquistar várias cidades em menos de duas semanas sem grandes perdas e acabaram por penetrar em Damasco. Como as milícias conseguiram tomar o poder em pouco tempo? Afinal, al-Assad era conhecido como aquele que se manteve firme apesar da guerra civil. Ao contrário de Gaddafi na Líbia, Ben Ali na Tunísia ou Mubarak no Egipto, ele conseguiu manter o seu poder depois do início da chamada Primavera Árabe em 2011. O que mudou que o fez render-se hoje sem lutar?
A primeira razão, e provavelmente a mais importante, reside nas condições sob as quais al-Assad defendeu o seu poder durante 14 anos de guerra civil. Durante esse período, obteve apenas uma vitória de Pirro: os custos foram tão elevados que, embora não tenha sido expulso de Damasco nessa altura, perdeu o controlo de vários territórios na Síria. Isto também significou a perda de campos petrolíferos, que antes da guerra civil representavam 25 por cento das receitas do Governo. Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros sírio, apenas 20% da produção de petróleo permaneceu nas suas mãos. A isto somam-se as sanções económicas, a fuga de milhões de pessoas e a destruição de infra-estruturas, que impediram a reconstrução da Síria. Nestas condições, ele não conseguiu reabilitar o seu regime. O facto de hoje as multidões celebrarem a sua queda nas ruas também mostra que al-Assad foi capaz de defender o seu poder principalmente através de medidas militares e policiais.
A segunda razão é o estatuto dos aliados de Assad. Quando a Rússia interveio na guerra civil em 2015 com a sua força aérea ao lado de al-Assad, dando-lhe assim vantagens estratégicas, não houve guerra na Ucrânia. No entanto, desde o início da guerra na Ucrânia em 2022, a Rússia teve de redireccionar grande parte dos seus recursos militares, pelo que a capacidade da Rússia de apoiar al-Assad foi severamente limitada. Por outro lado, não seria benéfico para Putin participar numa guerra sem esperança, uma vez que até os próprios soldados de Assad estavam a fugir da frente.
O regime iraniano, antigo aliado de Assad, também ficou muito enfraquecido nos últimos anos. O Irão sofre de problemas económicos significativos, que foram agravados pelas sanções internacionais. Os desafios internos do regime dos mulás afectaram a sua capacidade de apoiar al-Assad tão intensamente como antes. O regime passa de uma crise interna para outra. Desde 2019, o Irão tem enfrentado repetidos protestos e agitação a nível nacional, visando tanto as condições económicas como a liderança política. Além disso, o apoio aos rebeldes Ansar Allah (Houthi) no Iémen e os confrontos com a coligação liderada pela Arábia Saudita envolveram o Irão num conflito prolongado e dispendioso. Portanto, o regime dos mulás no Irão não tinha estabilidade económica ou política para lutar em múltiplas frentes para impedir a derrota de Assad. O mesmo se aplica ao Hezbollah no Líbano, que foi significativamente enfraquecido pelo conflito com Israel.
Neste cenário, o HTS utilizou a fragilidade de al-Assad para derrotá-lo.
Quem faz parte do grupo HTS?
Mohammed al-Julani, o líder do HTS, pretende construir uma república islâmica na Síria e até agora tem-se apresentado como moderado e pragmático. Julani ganhou suas primeiras experiências na Al Qaeda no Iraque lutando contra a ocupação americana. Durante a guerra civil síria, ele retornou à sua terra natal e chefiou a filial síria, então chamada Al Nusra. Posteriormente, ele cortou laços com a Al Qaeda e sua organização evoluiu para Hay’at Tahrir al-Sham no início de 2017. O HTS surgiu como uma aliança de vários grupos que fugiram para a cidade de Idlib depois que al-Assad recapturou Aleppo.
A HTS controla a província de Idlib desde 2017 e gere serviços públicos, educação, saúde, justiça, infraestruturas e finanças. O HTS trabalha com outros grupos armados de oposição, como Harakat Nour al-Din al-Zenki, Liwa al-Haqq e Jaysh al-Sunna, e evita antigos aliados como Hurras al-Din, o novo afiliado da Al Qaeda na Síria. O HTS esteve envolvido em conflitos de interesses com o ISIS e o Exército Sírio Livre (FSA) porque não queria subordinar-se, mas sim governá-los.
Apesar dos anúncios nos últimos meses, Erdoğan não fez progressos nas negociações para retomar as relações entre Ancara e Damasco. Türkiye não estava disposto a retirar as suas tropas e acabar com o apoio aos rebeldes. Para a Turquia, normalizar as relações com Assad não era uma opção benéfica porque o regime sírio e os seus aliados demonstraram fraqueza na região, o que criou um vazio de poder. Agora, a queda de Assad oferece à Turquia a oportunidade de reforçar a sua influência na Síria e na região.
O HTS enfrenta o desafio de manter a unidade na guerra contra al-Assad após a sua derrubada. Porque a unidade tática contra o inimigo principal deixou de lado muitas questões programáticas e ideológicas que agora virão à tona. Como será o futuro governo? Como os escritórios estão distribuídos? Que lei será aprovada? Como serão as relações regionais e internacionais?
É provável que surjam conflitos de interesses entre as facções do HTS. Até agora, o HTS tem sido vulnerável ao controlo estrangeiro para atingir o seu objetivo principal. Dada a fraqueza económica do país e o controlo das reservas petrolíferas pelos EUA, esta dependência está a aprofundar-se.
Ainda não há liberação
As correntes políticas que apoiaram al-Assad sob o rótulo de “anti-imperialista” irão agora lamentar a sua queda. O regime bonapartista do Partido Baath dependia do exército e dos serviços secretos para manter o seu poder. No interesse da burguesia nacional, as organizações dos trabalhadores foram colocadas sob controlo estatal e o Partido Comunista, que rejeitou as mobilizações de massas de 2011 como uma conspiração imperialista, foi cooptado pelo regime. Mesmo antes da guerra civil, existiam restrições legais ao direito de organização sindical e à dependência da Confederação Geral dos Sindicatos dos Trabalhadores (GFTUW) do Partido Baath, bem como a proibição de greves. Além disso, a opressão da nação curda intensificou-se durante a ditadura de Bashar al-Assad. Defender a ditadura de Assad estava a quilómetros de qualquer tipo de anti-imperialismo.
Partilhamos a alegria da queda de Assad, mas devemos alertar contra aqueles que semeiam expectativas no HTS. Já durante a ofensiva militar, surgiram nas redes sociais inúmeras provas de crimes de guerra cometidos pelas milícias, que não terminarão com a tomada do poder. Relatórios de Idlib sob HTS também mostram que os líderes governaram com mão de ferro e não toleraram qualquer oposição.
Mazlum Abdi, comandante geral das Forças Democráticas Sírias (SDF), uma aliança de milícias liderada pelos curdos, declarou a sua vontade de cooperar e fala de um momento histórico de “oportunidade para construir uma nova Síria baseada na democracia e na justiça e garantindo a direitos de todos os sírios.” Até agora, os líderes curdos conseguiram manter a administração de Rojava, a região autónoma do norte e leste da Síria.
Agora devem enfrentar a nova realidade, uma vez que é questionável como uma república islâmica pode garantir os interesses das populações curda, cristã e alevita. O regime islâmico quererá controlar Rojava, o que ameaça destruir o direito dos Curdos à autodeterminação e as suas conquistas anteriores. Táticas pragmáticas, como a “disposição para cooperar” observada por Mazlum Abdi, darão aos curdos espaço para respirar, mas não são uma solução a longo prazo.
A queda de al-Assad dá aos milhões de refugiados sírios esperança de regressar ao seu país e ajudar na reconstrução. O povo da Síria também partilha esta esperança. Mas seria um grande erro não colocar em perspectiva o perigo representado pela mudança de poder.
As massas sentem que o fim da ditadura de Assad é uma libertação e devemos aproveitar este momento para criar uma força política que possa alcançar a verdadeira libertação.
No Irão, as massas cometeram o erro de entregar o poder aos mulás quando estes derrubaram o Xá. O resultado foi a contrarrevolução, cujos efeitos continuam a afetar hoje o povo iraniano.
À medida que as ditaduras na região se enfraquecem e as tendências reacionárias de guerra regionais aumentam, os trabalhadores urbanos e rurais, os jovens e as mulheres devem construir uma frente independente de libertação social para determinar o seu próprio destino.
Não devemos perder de vista que as massas na Síria saíram inicialmente às ruas em busca de liberdade e de pão. Muitas das exigências das massas foram perdidas na guerra reacionária por procuração. Só poderá haver um resultado progressivo para o conflito se surgir uma força revolucionária que responda a estas exigências e não repita os erros da Primavera Árabe.
Os trabalhadores e os camponeses devem lutar para evitar que potências estrangeiras ou novas camarilhas corruptas no governo assumam a propriedade privada dos meios de produção. É necessário um programa económico para reconstruir o país com uma economia planificada baseada em conselhos que divida a terra e coloque as fábricas, especialmente os campos petrolíferos, sob o controlo dos trabalhadores. Caso contrário, seguir-se-á uma nova ditadura com nepotismo por parte dos novos governantes.
A condição para a libertação é expulsar a influência do imperialismo da região. Numerosas potências estrangeiras tentarão aproveitar o período de transição incerto e ganhar influência [esta segunda-feira Biden já anunciou a intervenção dos EUA em “nome da democracia”, NdE]. Um novo regime liderado pelo HTS dependeria fortemente de Türkiye e dos Estados Unidos. Os Estados Unidos e Israel poderão agora sentir-se encorajados a tomar medidas mais fortes contra o Irão. As massas devem organizar-se e lutar de forma independente por uma perspectiva socialista. São necessárias estruturas municipais que possam organizar alimentação, trabalho e habitação para todos. O que é necessário é a expropriação dos bancos e um monopólio do comércio externo, em vez da dependência do Banco Mundial e do FMI. Para conseguir isso, também será necessário livrar-se do HTS.
→ SE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI… Saiba que o Pragmatismo não tem investidores e não está entre os veículos que recebem publicidade estatal do governo. Fazer jornalismo custa caro. Com apenas R$ 1 REAL você nos ajuda a pagar nossos profissionais e a estrutura. Seu apoio é muito importante e fortalece a mídia independente. Doe através da chave-pix: [email protected]