A classe média já não sabe direito o que quer
Se um instituto de pesquisas aleatórias saísse a perguntar nas ruas se os brasileiros estão mais preocupados com a crise dos bois brasileiros com os bois franceses, ou com a sabotagem à isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, é possível que a briga dos bois se apresentasse como a maior preocupação.
O boi do Cerrado é mais defendido nos jornais e nas redes sociais do que a isenção. Porque a sabotagem dos jornalões é previsível, mas também porque um mecanismo da percepção básica está descalibrado no brasileiro. E porque a média hoje espera mais milagres do que alguma coisa com algum sentido lógico ou racional.
Pois leiam a manchete do Globo desse sábado: “Preocupação com impostos cresce e leva a percepção de que Brasil está na direção errada”.
Que história é essa numa hora dessas? Quando o governo propõe isentar a classe média de IR e ao mesmo tempo taxar os ricos, a manchete é sobre a preocupação das pessoas com impostos? Que leva à percepção de que o país anda na direção errada?
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Uma preocupação permanente, histórica, mas que agora vira manchete com essa formulação torta? Quando o próprio Globo bateu nas propostas do governo. A manchete é parte do jogo dos sabotadores.
Se Lula decidisse amanhã aumentar a isenção do IR para R$ 10 mil, com a compensação de receita pela tributação de fortunas hoje inalcançáveis, é possível imaginar que uma pesquisa viesse a mostrar que essa não é uma solução.
Porque desacomoda o que está acomodado, porque pode provocar fuga de ricos para a Argentina e porque não seria justo com os milionários. E porque a percepção média de hoje não é mais a mesma de 20 anos atrás, e o brasileiro se alinha a interesses que não são seus.
Se as universidades decidissem aumentar vagas para cotas, reduzir mensalidades de pobres e anistiar dívidas de estudantes negros, o impacto entre os beneficiados e seu entorno seria menor do que entre os ameaçados da classe média que teme pobres.
Porque cotas, Bolsa Família, nível de emprego, PIB, uma renda básica, confiança externa e estabilidade são dados da economia, não são mais informações que mexam, como mexiam, com realidades e sentimentos e que toquem os eventuais beneficiados.
Porque os pobres querem mais do que diversão e arte, mas não do mesmo. A classe média já nem sabe direito o que quer. E os ricos querem deixar tudo como está.
O sentimento médio, entre os que poderiam querer menos desigualdade, é de que a política e os governos dependem de milagres que levem à prosperidade, meio à la Pablo Marçal. Os tais movimentos neodisruptivos e new antissistema passam por cima até do discurso repetitivo da meritocracia.
Por isso Milei foi eleito e ainda tem alta aprovação na Argentina e Trump vai voltar ao poder nos Estados Unidos. Porque poderão produzir milagres e porque as ideias e as saídas apresentadas pelos considerados progressistas ou não conservadores – os kirchneristas na Argentina, os democratas nos Estados Unidos e os petistas no Brasil – não funcionam mais.
Não existem mais como existiam até o século 20. Porque a classe média entrou na guerra contra o ativismo identitário acionada pelas próprias esquerdas. E também porque o sentimento sobre valores, na perspectiva de uma ética humanista, degradou-se nesse cenário de pulverização de referências.
Os valores hoje são, para repetir um clichê, os financeiros, os que trazem junto alguma cifra. Por isso o ministro Fernando Haddad foi conversar com banqueiros, e não com quem produz alguma coisa útil, para explicar o pacote fiscal sabotado pela direita, pela extrema direita, pelos jornalões e pela Faria Lima.
Foi dialogar, por imposição do mercado financeiro, com quem não produz nada, um tomate ou um alfinete. Nada. Mas uma pesquisa pode confirmar, pela opinião do brasileiro pobre e de classe média, que assim deve ser.
Até os bois do Cerrado e seus inimigos franceses, alguns deles influencers, sabem que essa é a realidade, nos campos e nas cidades.
*Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre. É autor do livro de crônicas Todos querem ser Mujica (Editora Diadorim).
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