Ditadura Militar

Médico torturador da ditadura disse ter visto Rubens Paiva “quase morto” nas dependências do DOI

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Tenente-médico torturador disse que encontrou o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva quase morto no temido Destacamento de Operações de Informações (DOI). Ele descreveu exatamente o local da cela onde havia somente um preso deitado sobre uma cama. “Ele era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés”. O médico relata que Rubens Paiva passou horas agonizando antes de morrer

Amílcar Lobo e Rubens Paiva

DCM

A jornalista e escritora Martha Baptista contou, em um artigo publicado no site Eh Fonte, sobre o dia em que o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva se encontrou com Amílcar Lobo, tenente-médico e assistente dos crimes de tortura durante o regime militar. Paiva foi torturado até a morte em 1971 e seu corpo foi escondido pelos militares, que armaram uma farsa pra acobertar o crime.

Martha Baptista*, Eh Fonte

Em 1986, Amílcar disse à revista “Veja” que tinha visto o engenheiro quase morto no temido Destacamento de Operações de Informações (DOI), em um quartel do Exército na Tijuca, onde ele morreu depois de horas agonizando. A história de Rubens Paiva está sendo retratada no filme “Ainda Estou Aqui”, escrito por seu filho, Marcelo Rubens Paiva.

Durante a ditadura, Martha era repórter da revista Veja e escrevia para diversos jornais cariocas entre os anos 1970 e 1980. Ao fim do período, ela se mudou para Cuiabá, em Mato Grosso, onde focou sua carreira na escrita de livros. Leia o artigo abaixo:

Em 1986, o Brasil começava a respirar novos ares sob a presidência de José Sarney, o primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura Militar. Em agosto daquele ano, o então procurador-geral da Justiça Militar, Francisco Leite Chaves, determinou a reabertura do caso Rubens Paiva, 15 anos após o desaparecimento do ex-deputado paulista no Quartel da Polícia do Exército (PE), no bairro carioca da Tijuca.

Eu trabalhava na sucursal da Veja, no Rio de Janeiro, e aguardava ansiosamente o momento de ir para casa no início da noite de uma sexta-feira, véspera de fechamento da revista, quando o telefone tocou. Ninguém parecia muito animado para atender a ligação, que só podia ser encrenca, mas resolvi encarar. Do outro lado, uma voz masculina, que não se identificou de imediato, disse que estava disposta a fazer uma grande revelação em alguns dias.

Pragmática, insisti que ele se identificasse e, ao ouvir seu nome – Amílcar Lobo – lembrei-me de uma matéria publicada pela própria Veja em que um médico psiquiatra foi confrontado em seu consultório por um grupo de ex-presos políticos, em fevereiro de 1981. Essa lembrança de alguma forma deu um alento à conversa e consegui ganhar a confiança de meu interlocutor, vencer sua hesitação e convencê-lo a me encontrar o mais rápido possível.

A notícia de que eu teria um encontro com um ex-oficial do Exército que se propunha a falar sobre a morte de Rubens Paiva deixou em polvorosa a redação de Veja em São Paulo. Antes de sair para encontrar Amílcar Lobo, recebi instruções por telefone do jornalista Elio Gaspari (diretor adjunto de Redação), que me alertou para a importância daquela entrevista e me orientou a manter a calma diante de qualquer revelação que o interlocutor fizesse, para garantir a continuidade da entrevista.

Instrução semelhante foi dada ao jovem fotógrafo Antonio Ribeiro (que faleceu recentemente): o registro fotográfico era importante, mas era preciso cautela para não assustar a fonte.

Seguimos para um apartamento na Tijuca, onde Lobo nos recebeu ao lado da mulher. Perguntei a ele se poderia gravar o depoimento e durante mais de uma hora ouvi um relato chocante, que teve muita repercussão por ter sido, de acordo com a revista Veja (edição nº 939, de 3 de setembro de 1986), “o primeiro, em 22 anos, no qual um oficial da máquina da repressão dos anos 70 narra sua experiência e assume a responsabilidade da narrativa”. Assim que retornamos ao escritório da revista, fui instruída a colocar o depoimento na íntegra no papel (ainda usávamos máquina de escrever), que foi transmitido imediatamente para São Paulo via telex.

Em resumo, Lobo contou que prestava quatro horas de serviço diário no quartel da PE e foi chamado às 2 horas da manhã, no início de 1971, para atender uma ocorrência. Ele descreveu exatamente o local da cela onde havia somente um preso deitado sobre uma cama.

“Ele era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés”, contou.

Segundo Lobo, o preso estava com “abdômen de tábua” e ele suspeitou de uma ruptura do fígado ou do baço, que provoca severa hemorragia interna. Lobo diz ter ficado uns 15 minutos na cela e o preso conseguiu balbuciar duas palavras: “Rubens Paiva”.

O detalhe é que geralmente o médico sequer ficava sabendo o nome dos presos que atendia. Ele conta que havia um oficial na cela (“Não sei se era da PE ou do DOI-CODI[1]”, afirmou Lobo em seu depoimento à Veja) a quem recomendou que o preso fosse levado imediatamente ao hospital. Como era de praxe, o médico foi embora e na manhã seguinte, soube no quartel que o homem havia morrido sem ter sido removido.

Essa história levanta várias questões, porém, o mais importante foi o impacto causado por uma testemunha que desmentia a versão – apresentada por oficiais do Exército que serviam no DOI e chancelada pelo comando do I Exército e pelo Ministério da Guerra -, de que Rubens Paiva havia sido sequestrado por terroristas ao ser transportado num Volkswagen.

Parte desse drama é revivida no filme “Ainda estou aqui”, que estreia nas telas de cinema do Brasil neste dia 7. Dirigido por Walter Sales e baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme conta a história de Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva e mãe de seus cinco filhos, que após o desaparecimento do marido, tornou-se advogada respeitada e se engajou em lutas sociais e políticas.

Ao longo das últimas décadas, outros depoimentos de pessoas egressas dos porões da repressão foram surgindo, tornando ainda mais evidentes as circunstâncias tenebrosas da morte de Rubens Paiva. Ele foi arrancado de sua casa no Leblon por agentes e oficiais a serviço da FAB e, na ocasião, Eunice e sua filha Eliana, então com 15 anos, também foram levadas para as dependências do DOI-CODI. Eliana permaneceu presa por 24 horas e sua mãe voltou para casa 12 dias depois, após ser interrogada, iniciando sua saga em busca de respostas.

O depoimento de Amílcar Lobo em 1986 caiu como uma bomba e contribuiu para o desfecho parcial do caso. O corpo do ex-deputado nunca foi encontrado, mas a família sentiu um certo alívio no momento em que o Estado brasileiro foi obrigado a emitir oficialmente o atestado de óbito de Rubens Paiva, em 1996.

Até hoje eu me pergunto: por que Amílcar Lobo resolveu dar esse depoimento? Relatos dos ex-presos políticos que o confrontaram indicam que o dr. Carneiro, seu codinome no Exército, não tinha um papel tão passivo nos chamados porões da repressão. Em seu depoimento em 1986 ele rebateu as acusações:

“Participei de um quadro de torturadores, mas nunca torturei”.

O fato é que, após cumprir o serviço militar, Lobo começou a trabalhar como psicanalista (ele passou por um período de formação na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro antes mesmo de servir ao Exército) e a cena presenciada naquela noite, “na última cela do lado direito do 2º andar” do quartel da PE, na Rua Barão de Mesquita, o atormentava. Lobo contou que por diversas vezes pensou em revelar o que sabia, mas foi aconselhado por amigos a se calar para preservar a sua segurança e a de sua família. O fato de saber por um telejornal que o caso estava sendo reaberto oficialmente foi a senha para que resolvesse se abrir e a escolha pela revista Veja foi natural por se tratar de um dos veículos de maior repercussão nacional à época.

Se por um lado a revelação de Lobo contribuiu para esclarecer fatos em torno do assassinato de Rubens Paiva, por outro, ela só lhe trouxe dissabores. Seus pares (os psicanalistas), seus ex-colegas de farda, a opinião pública em geral, ninguém jamais o perdoou. Há alguns anos, quando já morava em Mato Grosso, eu soube por um de seus filhos, que me enviou uma mensagem via internet, que Amílcar Lobo havia morrido[2]. Posso ser muito ingênua, mas acredito que havia uma boa intenção por trás de sua decisão de falar sobre as circunstâncias da morte do ex-deputado. Cheguei a encontrá-lo mais uma vez em seu sítio no interior do Estado do Rio, mas na ausência de novas revelações bombásticas a revista Veja não se interessou em promover outros encontros.

Lamento não ter tido maturidade suficiente para dar continuidade a esse trabalho visando a escrever uma biografia de Lobo, como ele chegou a me sugerir. Reconheço que tive de medo de tudo que ele representava, mas hoje acredito que Amílcar Lobo teria sido um personagem e tanto, desde que se propusesse a se abrir mais: um homem obrigado a prestar serviço militar após ter se formado em Medicina em plena ditadura, que tinha como uma de suas missões dizer quando um preso político não estava mais em condições de ser torturado e que resolveu cuidar da cabeça de outras pessoas após se desligar do Exército! Resta saber o quanto ele estava disposto a falar sobre si e seus companheiros do DOI-CODI e do Exército.

“(…) aquilo era um jogo doente, com pessoas extremamente doentes”, afirmou Amílcar Lobo no nosso encontro em setembro de 1986.

*Martha Baptista foi repórter da revista Veja e de diversos jornais cariocas de 1979 a 1988, quando se mudou para Mato Grosso por motivos pessoais. Ainda na ativa como jornalista, mora em Cuiabá e tem vários livros publicados.

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