Quem flerta com o mercado não pode reclamar de traição
Anderson Pires*
O governo Lula fecha seu segundo ano com a divulgação de números bastante generosos na economia. O PIB cresceu mais que o previsto, baixo índice de desemprego e redução da pobreza, mas o mercado tem reagido como se o Brasil estivesse à beira da bancarrota.
Não vejo absolutamente nada de surpreendente nesse tipo de postura dos especuladores. Manipular papeis na bolsa e superestimar o valor do dólar para ganharem ainda mais, é a razão pela qual existem. Porém, esse tipo de ação no Brasil se torna ainda mais fácil, em decorrência de uma característica, a qual os governos não conseguem mudar significativamente: a concentração de renda e riquezas.
É sempre fácil produzir movimentos especulativos no Brasil, visto que o número de atores para isso são muito poucos, além de dialogarem com muita agilidade. Os poucos que detêm as principais reservas em dólar, usam disso sempre que percebem que podem ganhar mais supervalorizando o que poucos têm. Porém, o impacto disso é sentido por todos, principalmente os mais pobres, que hoje compram comida com base nos valores das commodities.
Coincidentemente, os mesmos que detêm reservas cambiais também são proprietários do agronegócio e controlam outros produtos destinados a exportação. No final, o brasileiro pobre e médio pagam duas vezes. Primeiro, porque financiamos com dinheiro público a produção, depois porque pagamos o custo especulativo na forma de inflação sobre os produtos que consumimos no Brasil.
A manobra chega a ser criminosa. Ganham de todos os lados e falseiam uma realidade econômica que só agride os mais pobres. Mas o que os governos poderiam fazer para conter esse tipo de movimento especulativo?
Muita coisa. À começar pela retomada de algumas políticas que foram abandonadas no Brasil, como a manutenção de estoques reguladores de alimentos. Já desencorajaria boa parte do agronegócio a produzir movimentos especulativos. O mesmo vale para outras commodities, como minério e petróleo, que impactam nos custos do país em toda cadeia produtiva.
O Banco Central também poderia exercer seu papel no controle cambial, mas não podemos esperar que um órgão que é gerido por um especulador tenha uma política de intervenção contra a ação nefasta de seus colegas do mercado.
Mas a grande medida que precisaríamos adotar no Brasil é promover uma severa distribuição de riquezas. Todos os dados macroeconômicos perdem sentido, se as riquezas continuarem a ir para os mesmos poucos atores de sempre. Já sabemos que “ninguém come PIB”, na célebre citação de Maria da Conceição Tavares. Logo, enquanto os indicadores só servirem para mascarar a situação real do brasileiro, que cada dia tem menos poder de compra, o mercado continuará manipulando e ganhando ainda mais.
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É verdade que não temos as condições políticas para promover grandes mudanças, o Congresso Nacional tem um conjunto de lobistas nos cargos de deputados e senadores, que estão a serviço dos interesses de grupos e, muitas vezes, seus próprios interesses.
Porém, não dá para reclamar se naquilo que o governo Lula poderia se diferenciar não faz, como a apresentação de propostas mais ousadas, que enfrentem o mercado e coloquem o debate na rua.
Lula foi eleito batendo na política de preços da Petrobras e nada mudou. Reduziu a distribuição de dividendos, mas não mudou a política de preços que segue a lógica especulativa. Pagamos pelo petróleo que produzimos o preço que o especulador quer, não o nosso custo competitivo, que favoreceria todos os brasileiros.
O mesmo podemos dizer em relação a promover uma inversão na destinação de crédito no Brasil. Produzimos sete vezes mais alimentos do que o necessário para o consumo interno, ainda assim, a abertura de crédito para o agronegócio é absurdamente maior que o destinado a construção civil, mesmo com déficit habitacional. Como apartamento e casa não podem ser exportados, logo, não se especula em dólar, como o mercado quer.
Um amigo que já não está mais entre nós, tinha entre suas brilhantes tiradas, uma que dizia: “todo castigo pra corno é pouco”. Essa frase se encaixa bem na lógica que o governo Lula adota em relação ao mercado. Entre paqueras e namoros, sempre foi traído. Se não aprendeu, não pode reclamar de traição.
Além disso, não se pode achar estranho o nível crescente de desconfiança dos brasileiros com a economia, mesmo diante de dados positivos, e, consequentemente, perda de apoio político, quando sempre que existe um embate dessa ordem, que mexe com interesses dos grandes concentradores do capital brasileiro, se afine a voz e façam pequenos acordos no Congresso.
O Brasil está precisando de embates políticos. Não será possível diferenciar quem é quem, se no que é objetivamente crucial para a população sempre paira uma lógica de conciliação de classes, em que o trabalhador sai em desvantagem. O discurso entre fascistas e não-fascistas não se sustenta se as condições objetivas para se viver melhor não forem percebidas pela grande massa.
Os retrocessos que verificamos no mundo não são uma questão de distopia, como falsamente o ministro Haddad disse em uma entrevista, tentando justificar o perigo que é uma nova ascensão da extrema-direita. Fazer esse tipo de discurso, atribuindo a opção pelo bolsonarismo como uma perda de utopia é usar de desonestidade intelectual e minimizar a falta de motivos objetivos que permitam o cidadão diferenciar e acreditar num governo progressista ou de esquerda.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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