Política

Como a extrema-direita dominou o uso da internet?

Share

A internet é a grande revolução tecnológica, no campo da comunicação, desde a invenção da escrita. E a marca dessa extrema direita é a habilidade neste novo campo da comunicação, a partir da consolidação das novas tecnologias

Imagem: “Sociedade de Controle e Distopia” / Portal Fio do Tempo

Lucio Massafferri Salles*, Pragmatismo Político

Fonte: Revista Fórum

Confira a entrevista que o colunista André Lobão fez com o pesquisador Lucio Massafferri Salles, doutor e mestre em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

“As plataformas digitais se tornaram a ‘passarela’ para expansão da ideologia no Brasil e de forma global”, conforme análise do pesquisador Lucio Massafferri Salles, doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para Massafferri, a internet é a grande revolução tecnológica, no campo da comunicação, desde a invenção da escrita. E a marca dessa extrema direita é a habilidade neste novo campo da comunicação, a partir da consolidação das novas tecnologias. Ele diz que a mídia tradicional perde espaço pela velocidade, intensidade e presença da massa do digital, e a partir do momento que essa massa cresce, quando as pessoas passam a ter o seu lugar de fala, o espaço de poder passa a ser minimamente escutado. É assim que o meio tradicional vai começar a sumir.
“Ao examinar a extrema direita nesta era que vivemos, temos que estar cientes de que todo o campo da internet foi e ainda é influenciado pelas grandes cabeças pensantes do Vale do Silício, na Califórnia, nos EUA. São predominantemente homens brancos, CEOs, empreendedores, criadores de chips, transistores com semicondutores, nanotransistores, mas que têm como característica serem “bem-nascidos”, muitos oriundos do MIT, cujos olhares sobre a vida social – até então entendida -, do mundo das relações presenciais, era um universo que eles não curtiam mais. A ideia da plataforma de rede social vai se propagar como uma alternativa social, muito mais que uma possibilidade”, explica o pesquisador que também é especialista em psicanálise e membro do Núcleo de Pesquisa e Reflexão sobre Cultura Digital e Ensino Médio (CDEM-PUC/SEEDUC/FAPERJ).

A nova extrema direita há 20 anos já surgia com a internet pública

Segundo o pesquisador, já em 1994/95, quando ocorreu o advento da internet pública no Brasil, as cabeças pensantes do Vale do Silício tinham projetado a ideia de encontrar recepção em pessoas que passaram a dedicar horas de seu tempo a viver postando e interagindo nas primeiras salas, assim como em plataformas de redes sociais como o 4chan (imageboard), criado em 2003, onde as pessoas anonimamente podiam postar, fazer manifestações no formato fórum de discussão. Para Massafferri, o anonimato nas plataformas reforçou a ideia de espaço sem lei para propagação das manifestações iniciais da ideologia.
“Ali começa a surgir uma recém-fundada rede que ligava milhões de pessoas às tais postagens que vão se tornar proibidas, de memes racistas, nazistas, homofóbicos, misóginos, situação que foi naturalizada, pois na plataforma havia uma massa de pessoas que ficava no anonimato, vivendo suas insônias, experimentando descargas de dopamina proporcionadas por postagens protegidas do olhar da censura do outro, podendo se manifestar da forma e com que quisesse. Sob esse aspecto era um espaço de certo modo acolhedor, sem reprovação ou censura, sem lei, em que não obedecer era permitido. Eu faço essa observação para que se perceba a nascente dessa chamada nova extrema-direita, que essa grande virada da grande rede teve sua aurora e berço nesse momento. Isso inclui os mais velhos, que hoje já estão na faixa etária entre 50 e 60 anos, pois seus filhos já nasceram dentro daquele ambiente”, afirma.

Reagindo à Máquina do Caos 11: “A casa de espelhos”

Judiciário e Legislativo não estão entendendo o que acontece

O discurso do ambiente da liberdade da expressão absoluta faz com que os regramentos e regulamentações percam sua funcionalidade, como é o caso do Projeto de Lei 2630/2020, que visa regular o uso das mídias sociais, conhecido como PL das fakenews, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que está paralisado no Congresso Nacional por conta do lobby das grandes plataformas digitais.

Lucio Massafferri acredita que no Brasil, tanto o Judiciário quanto o Legislativo ainda estão atrasados no entendimento sobre como funciona a dinâmica da propagação das fakenews e da construção do ambiente de desinformação.

“Ainda temos dificuldades para a existência de normas e leis que regulem a massificação das fakenews, a disseminação de mentiras, a criação do ambiente de desinformação. Hoje é a coerção que se usa. Olha a luta empreendida pelo governo e o Supremo Tribunal Federal (STF) para combater isso, com esse relativo atraso do Judiciário, e até do Legislativo. Ambos ainda não construíram uma interlocução como se deveria, com a Cibernética e a Psicologia, para obter conhecimentos sólidos sobre essas experiências de persuasão, manipulação, fabricação de consentimento e influência sobre as mentes nessa “Nova Era”. A massa de dados e informação, são como uma avalanche de linguagem que transborda e impacta nas mentes solitárias, divididas em bolhas e sub-bolhas, no momento em que vivemos. O DNA dessa extrema-direita se fertilizou justamente nesse solo”, adverte.

Uma nova extrema direita que usa velhas técnicas em um novo ambiente comunicacional

No Século XX, o rádio, a partir dos anos 1930, foi o veículo de massa que proporcionou a difusão de um certo discurso de ódio, capaz de unificar populações em torno do nazifascismo na Alemanha e na Itália. Hoje, a extrema-direita usa a potência da internet para a disseminação do que chamam de sua narrativa (que pretende revelar “a verdade”). Massafferri faz uma alusão ao período dos tempos atuais com o período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial. E considera que os chefões das plataformas digitais permitem e reproduzem técnicas e linguagens do período.

“Eu costumo dizer que se o grande marco da internet tivesse acontecido em 1934, possivelmente o nazifascismo teria ganho a 2ª Grande Guerra Mundial. A ideia crucial para esse sistema supremacista e autoritário, que aplica a tese do “dividir para conquistar”, é que você precisa deprimir para criar bolhas. Hoje se está aí com a realidade de execução desses instrumentos de guerra sobre as mentes das pessoas, à medida que se aplica artefatos dessas linguagens mescladas, criando grupos e bolhas, onde se pode repercutir tal como numa câmara de eco praticamente todas essas microideologias e propagandas. Os indivíduos se embolham e defendem seus espaços como se estivessem se protegendo de uma ameaça de aniquilação das suas próprias identidades. Então, acredito que essa nova extrema-direita tem o seu DNA, sim, nas ideias projetadas e executadas pelos grandes CEOs do Vale do Silício. Não é à toa que eles cultuam a liberdade de expressão, tal como uma bandeira calcada na Declaração da Internet e da Cibercultura (Uma Declaração de Independência do Ciberespaço/1996), uma liberdade total e plena. Eles têm essa declaração de 1996 como máxima”, detalha.
Nas redes da guerra: uma negligência programada

Manipulação de corações e mentes

Episódios recentes como os ataques ao Capitólio, sede do legislativo dos EUA, em 06/01/21, e do golpe fracassado no Brasil, em 08/01/23, mostram o grau de manipulação da extrema-direita sobre seus militantes, que foram condicionados a exercerem o culto da personalidade de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, como aconteceu no passado com Hitler e Mussolini.
Extremistas falavam em ataque ao Capitólio nas redes sociais semanas antes de invasão
“Recorro ao episódio do Capitólio, quando você observa o ‘cidadão comum’, com sua bandeira, se declarando patriota, arremessando tijolos na vidraça de um prédio que é a sede do órgão máximo do país, acreditando que ao fazer aquilo ele contribuiria para uma solução, em um ambiente de ‘Mad Max’, onde quem manda é o mais violento. Isso é quase uma reprogramação das mentes dentro de uma cultura do ódio e da ignorância. Muitos desses são ignorantes mesmo, eles são conduzidos como num mundo paralelo, onde aquele tipo de manifestação os fosse levar para uma ‘terra melhor’. Erroneamente, se tem uma ideia de que todas essas pessoas orquestram golpes de estado, porém os cabeças nunca vão à frente, ainda mais numa era como essa de alta tecnologia digital informatizada. Os cabeças não vão na frente, ficam por detrás para operacionalizar os peões”, avalia Massafferri.

Leia aqui todos os artigos de Lucio Massafferri Salles

O pesquisador considera que há toda uma gama de especialistas que dão suporte para a extrema-direita na elaboração de estratégias e ações de campanha para atingir seus objetivos e públicos.

“Agora, fatores importantes como montar essas estratégias vão compor essa construção. São os cientistas políticos, profissionais da Ciência da Computação, militares, profissionais da Ciência da Psicologia, para a produção de propaganda que possa atingir uma camada baixo limiar da consciência, subliminar, uma espécie de “inconsciente digital” da população, não sendo esse um conceito que pode ser considerado algo muito espantoso, que altere a ideia nuclear do inconsciente freudiano, de modo algum! Isso é pautado na própria distorção da apropriação que o sobrinho do Freud, Edward Bernays (propagandista do anticomunismo nos EUA, no início da Guerra Fria, nos anos 1950) fez do conceito de inconsciente, visando a implementação de estratégias de propaganda capazes de atingir medos e desejos, fabricando consenso e consentimento. Ou seja, no momento que você detecta medos e desejos que as pessoas deixam como rastro de milhões de traços na grande rede, os seus vestígios, as suas inclinações registradas, essa atual máquina de leitura com inteligência metódica, artificial, é capaz de perfilizar a pessoa. Ao longo de um tempo, essas pessoas têm uma descrição minuciosa que outras pessoas próximas não conseguem ter, tal é a gama de informações, tendências e inclinações que estão armazenadas neste grande bigdata”, descreve.

Massafferri continua, “Diante disso percebemos como é fácil elaborar, para quem tem a tecnologia, o desejo e a ânsia do poder do controle e domínio, viabilizar estratégias de propaganda e persuasão, usando esse tipo de instrumental, o marketing digital, a comunicação preditiva, ou target direcionado para grandes públicos e microtargeting, individualmente. O Facebook já mostrava isso em 2006, quando descobriu a máquina de engajamento na plataforma com a criação do feed de notícias personalizado”.

Neoliberalismo e extrema direita

Lucio Massafferri é autor do livro “A arquitetura do caos – guerra híbrida, operações psicológicas e manipulação digital”, lançado em 2023 pela Editora Filoczar. Na obra, o pesquisador usa o terreno da “Psicopolítica” para discorrer sobre como é arquitetada e realizada a tomada de poder em golpes de estado, tendo como alavancagem o campo virtual, com as mídias e redes sociais. A instrumentalização das chamadas guerras híbridas visando a caotização e o abalo de regimes políticos, usando instrumentos de linguagem e modelagem comportamental, é uma das principais características dessa contemporânea extrema-direita.

“Essa extrema-direita é voltada para a destruição do território em cujo solo se pretende erigir um tipo de ordenamento sociopolítico em que a força prevalece. Em que a lei da meritocracia de quem já é rico prevalece, do cara que é “bem-nascido”, do sujeito que manda, autoritário, podendo dizer tudo o que pensa não observando prejuízos que isso causa a terceiros ofendidos, fomentando a ausência de respeito de um para com o outro. Esse campo, da extrema-direita, já sabe manejar isso como método, se apoiando numa rede horizontal, por conta da velocidade e necessidade dos ruídos, conflitos e ressentimentos constantes, que gerados acabam agrupando os afetos e sentimentos, formando redes em torno dessa ideia ou ideologia, a sua causa”, discorre o pesquisador.

Massafferri descreve como o uso da emoção é fundamental na cooptação de pessoas pela extrema direita.

“Qual é a diferença entre afetos, emoção e sentimento? O luto é um sentimento. Ele demanda tempo para ser elaborado e organizado, possuindo uma simbologia de perda. Por outro lado, a tristeza momentânea, a emoção e a raiva são causadas a partir de um fato gerado que possa manipular isso, a manipulação das emoções, como faz essa rede de extrema-direita baseada na emoção do indivíduo, funcionando na base da explosão emocional. Engaja com ressentimento, ódio e raiva. A rede forma ondas de indignação, chamadas pelo filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han de Shitstorm, as “tempestades de merda”, citando o filósofo oriental radicado na Alemanha, autor de “Psicopolítica” e “A sociedade do cansaço”, seu livro mais conhecido.

A Engenharia do Consentimento

É claro e evidente que as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICS) são um campo fértil para atuação dessa dita nova extrema-direita que incorporou premissas liberais ao seu discurso, como analisa Lucio Massafferri.

“Diante dessa instrumentalização, desse tipo de arma, baseado em linguagem, com acesso às mentes de forma individualizada ou coletiva, vale tudo. Usar robô, conta falsa e perfilização. E quando se tem o objetivo de destruir um campo onde a regulação é o respeito, a empatia e o acolhimento, fica óbvio que essas premissas vão ser descartadas num ambiente de guerra, como faz a extrema-direita, valendo praticamente tudo para que se possa alcançar o objetivo do domínio e vitória. Daí você percebe a aplicação da chamada “engenharia do consentimento ou consenso”, uma engenharia baseada na propaganda, na persuasão instrumentalizada nas e pelas linguagens. Uma pessoa, antes religiosa e pacifista, pode se tornar um belicista porque ela passa a ter medo, impulsionado e amplificado por trabalhos de persuasão desse tipo. Esse é um conceito que existe há tempos, sendo discutido por pesquisadores da Ciência Política como Walter Lippmann, um dos primeiros a aplicar o conceito, assim como hoje ainda faz o linguista Noam Chomsky no seu livro “Mídia”, mostrando como essa teoria da Engenharia do Consentimento está presente nas democracias liberais, dessa Era Digital, como estratégia”. Chomsky analisa o uso dessa técnica, por Edward Bernays, com preocupação o como que a Engenharia de Consentimento atua na mudança de comportamento dos indivíduos em sociedade.

Falta uma organização horizontal para a esquerda progressista para ser o contraponto a essa realidade

Apesar da existência de um ecossistema comunicacional que agrega comunicadores das mais variáveis tendências de esquerda, a realidade é que esse campo não consegue ainda ter um discurso potente e unificado e que possa ser massificado para ser um contraponto para combater a extrema direita.

“Acredito que falta para o chamado campo ideológico progressista uma reunião em rede, horizontalizada. Ao dito campo de esquerda, serei nietzschiano ao afirmar isso: falta o desejo, uma vontade para organizar esse contraponto. Até existe uma organização verticalizada, mas falo de uma organização de mútuo apoio, formando uma rede para que se construa a médio e longo prazo, não só uma conscientização, mas uma educação. Educação para um mundo que necessita de estabilidade, de cuidado, de um mundo de pessoas que precisam se proteger, se cuidar para poder viver. De um mundo em que elementos naturais que compõem esse mundo não podem faltar sob o risco da possibilidade de vida acabar, sem a preservação das riquezas e recursos naturais. Então, tudo isso está no pacote de uma Paidéia, de uma educação que essa grande rede de formadores de conteúdo, influenciadores, do campo progressista de esquerda deveria organizar para ser o contraponto de tudo isso que está aí”, reflete o pesquisador.

É preciso entender o contexto

O filósofo não se vê como um marxista, mas acredita que falta ao campo da esquerda entender da necessidade de relacionar o chamado conceito de Luta de Classe a realidade do atual contexto das pessoas, em um mundo digital.

“Hoje, tem especialistas dizendo que falamos pouco sobre a Luta de Classe, da importância do trabalhador se posicionar sobre a sua realidade. Porém, mais importante do que isso, é entender esse contexto da Luta de Classe na atualidade, com o jovem, com a moça, com o cara e o trabalhador, alugando a bicicleta de ‘X’, para entregar a comida que é feita em ‘Y’, na casa de ‘W’, no horário que ela quer, deitada com seu smartphone, usando um aplicativo, em bolhas, recebendo informações com um certo viés, dia e noite, sendo doutrinados e persuadidos. Nós estamos em uma outra Era, se vivos fossem, Freud e Marx, talvez levantassem essa bandeira da necessidade de entender mais de perto essa revolução tecnológica do campo da comunicação, pensando junto a questão do trabalho, com a questão do trabalho psíquico, da economia psíquica, e a questão da persuasão e do impacto da palavra, das linguagens na mente e nas mentes do coletivo, e a sua instrumentalização como possibilidade de formação psicossocial nessa Era Digital”, finaliza.

*Lucio Massafferri possui um canal no Youtube onde debate questões relacionadas à psicopolítica, filosofia da tecnologia, saúde mental e internet, tendo, entre outras, uma série de vídeos chamada “Reagindo à Máquina do Caos” e uma outra série sobre Edward Bernays. Para saber mais, acesse o canal Portal Fio do Tempo

Leia também:

Comunicação e psicologia das massas na geopolítica da internet
Artefatos semióticos e catarse do riso nas guerras híbridas
O poder da linguagem da arquitetura do caos

*Lucio Massafferri Salles é psicólogo/psicanalista, filósofo, jornalista e professor da rede pública de ensino/RJ. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU, realizou o seu estágio de Pós-Doutorado em Filosofia Contemporânea na UERJ. É o criador e responsável pelo canal Portal Fio do Tempo, no YouTube.

→ SE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI… Saiba que o Pragmatismo não tem investidores e não está entre os veículos que recebem publicidade estatal do governo. Fazer jornalismo custa caro. Com apenas R$ 1 REAL você nos ajuda a pagar nossos profissionais e a estrutura. Seu apoio é muito importante e fortalece a mídia independente. Doe através da chave-pix: pragmatismopolitico@gmail.com