Não é de justiça que estamos falando
Denis Castilho*, Pragmatismo Político
Não sejamos palermas. O episódio da prisão de Lula não se trata de combate à corrupção. O jogo não é este. Também não caiamos no discurso pronto e dissimulado das forças políticas que polarizam o país, porque entorpecem, amarram e tolhem.
Nunca ficou tão claro o modo como se operam os poderes no Brasil. Nunca ficou tão evidente, aliás, a natureza perversa e suja das instituições e seus representantes. Dizem que elas funcionam, mas não dizem para quem. Essa é a questão.
A corrupção do Executivo e do Legislativo, seja nas escalas federal, estadual ou municipal, não pode funcionar tão bem sem a conivência do Judiciário. São fartas as comprovações do envolvimento em corrupção de nomes como Michel Temer e Aécio Neves, mas continuam no poder e sequer são tocados. O que esperar de um judiciário contaminado, que luta por seus próprios privilégios e que deixa escancarado a falta de isonomia?
Alguns camaradas ousam dizer, em sua fértil aura boçal, que tão breve a Justiça alcançará os bicudos. Mas estes, meus caros, não vêm ao caso. Ou não entenderam o jogo?
(J)ustiça não foi feita para fazer (j)ustiça. Usam a lei para justificar uma ação, mas não hesitam em transgredir essa mesma lei caso haja conveniência. O radical da palavra é uma farsa, pois trata-se de um Poder parcial e eivado. Não à toa o Judiciário é moldado por interpretações e convicções que partem do que se diz inalienável, mas que no fundo é absolutamente contornável.
Ao observar os comentários nas redes e em tantos outros meios, não há outro sentimento a não ser a decepção. Os comentários raivosos, perversos e infundados só reforçam a bestialidade que tomou conta do país.
O debate não pode ser feito carregado de mitos. O Judiciário, ao fazer escolhas, manda seu recado. Não há ética na política partidária e muito menos compaixão no poder representativo. No dia em que tudo isso ficar claro, os vermes que se alimentam de Poder, serão contestados e extirpados.
Como almejar democracia e soberania diante de uma mídia parcial e de parlamentares que entregam o território? Os progressistas que foram (ou são) coniventes com isso talvez tenham recebido o choque necessário para se reinventarem. Se isto acontecerá, é uma incógnita. Tudo dependerá do modo como as diferentes forças agirão ou do vácuo que resultará disso tudo. O vácuo, obviamente, abre espaço ao que tem de pior nesse jogo.
Enquanto isso, a jornada entreguista e apátrida segue o desmonte. Ao contrário do que muitos dizem, a coalisão que cooptou os Poderes do Brasil não vem apenas dos setores midiático, financeiro e industrial do país. O peso de empresas como Shell, British Petroleum (BP), Chevrom e Exxon Mobil não pode ser subestimado porque as etapas do entreguismo vêm seguindo à risca a receita do enxofre. Basta lembrar que após assumir o cargo, Temer recebeu os cumprimentos do presidente mundial da Shell, Ben van Beurden, e logo iniciou-se o processo de revisão da Lei do pré-sal. Não demorou e no dia 29 de novembro de 2016, a lei já havia sido sancionada. É pouco? No ano seguinte, enquanto países membros da OCDE aumentavam investimento em ciência e tecnologia, o Brasil realizava cortes absurdos de 76% no orçamento desse setor que é tão estratégico.
Nesse mesmo contexto, a Câmara vota em 2 de dezembro de 2017, a MP 795. Essa medida, que concede isenção de impostos às petrolíferas estrangeiras, fará com que o país deixe de arrecadar R$ 1 trilhão nos próximos 25 anos. Mas como pode haver ataque a setores tão necessários ao país enquanto que noutros se concede privilégios? Para entender, basta lembrar que as beneficiárias serão BP e Shell.
Tirar de cena o projeto que inviabilizava o acesso dessas empresas ao petróleo do país é o jogo. Isso, aliás, explica a maneira desigual como a Operação Lava Jato atinge os partidos. O crime do ex-presidente, na perspectiva dessa coalizão, não foi ter reduzido a pobreza do país. Este discurso é insuficiente porque a dinamização da economia de base movimentou o sistema de mercado brasileiro e enriqueceu muitos grupos país afora. Portanto, seu crime maior foi nacionalizar o pré-sal e, junto, promover o levante de um punhado de empresas que acabaram incomodando suas concorrentes e alterando a geopolítica do mercado mundial.
As forças internas não seriam capazes, sozinhas, de orquestrar o entreguismo. Aos vermes, faltava o alimento certo. E ele veio muito bem servido. Diante disso, tão ingênuo como esperar justiça do Judiciário é esperar retidão de organismos internacionais que recebem influência dessas petrolíferas e da própria inteligência dos EUA. Caso os conteúdos de Geopolítica recebessem mais atenção, a clarividência seria outra. O atraso em países latino americanos – especialmente naqueles que possuem importantes recursos naturais, é estratégico ao domínio que vem de fora. Como muito bem explica Francisco de Oliveira (2003), no Brasil, os setores econômicos não apenas convivem com o atraso, mas o funcionalizam e dele se alimentam.
Tudo isso desarticula frontalmente qualquer possibilidade de autonomia e deixa o país refém dos interesses externos. O que ocorre com o petróleo seguirá com a energia elétrica e o país, inevitavelmente, se tornará ainda mais vulnerável. A ausência de autonomia também é traduzida em uma opinião pública forjada por uma mídia vendida e igualmente entregue aos tiranos. Como diz Eduardo Galeano, “nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos”. Há dolorosas razões em toda parte das américas para crer na “mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa. O bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a maldição de nossas multidões” (2004, p. 17). E assim continua. O império segue sua tirania e o Brasil novamente é colocado em seu lugar de colônia.
Quanto aos boçais e suas convicções vendidas, não serão eles os protagonistas da história porque, do mesmo modo que são orquestrados para falar, serão domados para caminhar. Já a Justiça de que todos falam, não há surpresa alguma. É por isso que Bertolt Brecht foi cirúrgico ao dizer que “muitos juízes são absolutamente incorruptíveis, pois ninguém consegue induzi-los a fazer justiça“. Afinal, não é de justiça que estamos falando.
Leia também:
Defender Lula é defender a democracia
Arrogância de Moro em prender Lula se transformou em tiro no pé
Condenação de Lula não se sustentaria em nenhum sistema judicial sério
A democracia brasileira (e não só ela) está morta
Sergio Moro cometeu desespero em busca de seu troféu maior
Nos EUA, Sergio Moro explica por que não julga políticos do PSDB
Por que escândalos de corrupção envolvendo tucanos não avançam na Justiça?
A corrupção e os lugares de fala do PSDB
PT e PSDB: o fim da farsa de tratamento igual para denúncias iguais
As maquiagens para omitir o PSDB da corrupção na Petrobras
PSDB é o partido mais sujo do Brasil, revela ranking da justiça eleitoral
PSDB censura vídeo em que tucana chama José Serra de palhaço
Rede Globo esconde esquema de corrupção do PSDB
*Denis Castilho é geógrafo, professor da Universidade Federal de Goiás e colaborou para Pragmatismo Político.
Referências
GALEANO, E. Las venas abiertas de America Latina. 76ª edición revisada y corregida. Buenos Aires, Siglo XXI Editores, 2004.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.