Getúlio Vargas, o cadáver insepulto
Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
Segundo o escritor e jornalista Lira Neto, “para o bem e para o mal, Getúlio Vargas é uma das maiores figuras políticas da História do Brasil”. Cento e trinta e seis anos após seu nascimento, ocorrido em 19 de abril de 1882, sessenta e quatro após seu suicídio em 1954, o legado varguista é controverso, discutido por diferentes estudiosos.
Getúlio Dornelles Vargas chegou pela primeira vez ao poder em 1930. Mesmo perdendo as eleições para o paulista Júlio Prestes, não aceitou o resultado, empunhou armas, aliou-se às elites mineiras, gaúchas e nordestinas que tinham interesse em varrer os paulistas da Presidência da República e, juntos, marcharam do Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro. Ao chegarem à então capital do Brasil, o grupo liderado por Vargas destituiu o presidente Washington Luís e evitou a posse de Júlio Prestes. Começava a chamada Era Vargas, período que se estenderia até seu suicídio em 1954, com uma breve interrupção entre os anos de 1946 e 1951 governados pelo marechal Eurico Gaspar Dutra.
Assim como em vários países europeus, a década de 1930 também se caracterizou pela ascensão de um governo autoritário no Brasil. A chegada de Getúlio Vargas ao poder deu início, sobretudo a partir de 1937 com o estabelecimento do Estado Novo (1937-1945), a um período marcado por grande intervenção do Estado em todos os níveis da sociedade: na economia, na política, na cultura entre outros. Além disso, não havia liberdade de expressão e os opositores do regime eram perseguidos, presos, torturados e assassinados. Caso emblemático desse período, foram os militantes comunistas Luís Carlos Prestes e sua esposa, Olga Benário, uma judia que havia entrado clandestinamente no Brasil vindo da União Soviética. Olga foi presa pela polícia e deportada para a Alemanha nazista, onde foi executada em um campo de concentração.
Por suas características, o governo Vargas se enquadrava num contexto sociopolítico mundial em que o autoritarismo superou os governos democráticos, como ocorreu na Espanha, na Itália, na Alemanha e em Portugal.
O Brasil se identificava politicamente com os governos autoritários, mas acabou se alinhando aos países que lutavam contra eles (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e União Soviética) quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial.
Havia uma contradição no envolvimento do Brasil na guerra. Os soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) foram lutar na Campanha da Itália em nome da liberdade, mas esse conceito estava obstruído em seu país de origem, tragado por uma ditadura autoritária e paternalista. Terminada a guerra, a vitória dos aliados provocou diversos questionamentos que desembocaram na deposição de Getúlio Vargas em 1945. Estava restabelecida a democracia no Brasil, quinze anos depois do golpe getulista.
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Por mais ditatorial que seja, nenhum governo sobrevive apenas pelo uso da força e a Era Vargas não foi diferente. A pressão do movimento operário, organizado desde os primeiros anos do século XX, fez com que o presidente tomasse uma série de medidas que beneficiassem os trabalhadores. Na Constituição de 1934, foram garantidos aos trabalhadores direitos até então inexistentes, tais como salário mínimo, jornada de trabalho de oito horas diárias, férias anuais remuneradas, proibição de trabalho a menores de 14 anos. Além disso, criou-se a Justiça do Trabalho, órgão responsável por mediar as querelas entre os donos das fábricas e os trabalhadores.
O governo Vargas também ficou marcado pelo estímulo à industrialização. Entre os anos de 1940 e 1945 foram fundadas algumas empresas estatais importantes, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (de mineração) e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco. Um pouco mais tarde, em 1953, o governo encampou a campanha “o petróleo é nosso” e criou a empresa estatal Petróleo Brasileiro S.A (Petrobrás), cuja responsabilidade era explorar o petróleo nacional, tarefa que leva adiante até os dias atuais.
Devido a uma série de questões políticas e pressões da sociedade civil, Vargas decidiu pelo suicídio em 24 de agosto de 1954. Segundo suas palavras, escritas em carta testamento deixada na cabeceira de sua cama, saiu “da vida para entrar para História”. Sua morte provocou enorme comoção na sociedade brasileira, sobretudo porque durante seus governos fez questão de propagar a imagem daquele que estava ao lado dos pobres, defensor dos desprotegidos.
São vários os legados da Era Vargas que chegam aos dias atuais, mas um em especial está na ordem do dia.
Em 1943, Vargas outorgou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), reunindo as leis que havia publicado na Constituição de 1934. A CLT assegurava ao trabalhador, conforme já citado, Carteira de Trabalho, direito a férias, igualdade salarial entre homens e mulheres e regulamentação da jornada de oito horas diárias. Recentemente, o Congresso Nacional brasileiro reviu a CLT e aprovou a chamada “reforma trabalhista”, onde diversos direitos foram flexibilizados – leia-se, diminuídos. A reforma possibilitou parcelamento de férias, aumento da jornada de trabalho, redução no intervalo para almoço, contratação de trabalho temporário, remuneração por produtividade, trabalho em ambientes insalubres entre outros artifícios.
Em suma, aprovaram a precarização das relações trabalhistas. O poeta Victor Giudice escreveu que “a expressão flexibilização trabalhista, é o eufemismo consagrado pelos cardeais do neoliberalismo para promover diálogo entre pescoço e guilhotina.”
A herança Varguista, sobretudo a valorização das empresas nacionais e os ganhos trabalhista têm sido implodidos pela política neoliberal, levada à cabo no Brasil de forma ininterrupta desde 1990.
Como pontuou Eduardo Antonio Bonzatto, “o ciclo neoliberal é facilmente identificado: privatização ou concessão, desregulamentação das leis trabalhistas, desemprego estrutural, reengenharia, desindustrialização, globalização com eliminação das leis protecionistas, bens obsolescentes, ampliação do setor de serviços, democratização do crédito e do consumo, além de endividamento do trabalhador, o que demanda muito trabalho, pouco dinheiro, muito consumo, muito endividamento, muita submissão.” Ora, o que são as políticas governamentais desde a redemocratização se não levar à cabo esse receituário?
Ainda que se tente falsificar a história e atribuir à determinados personagens contemporâneos similaridades com a Era Vargas, é preciso considerar que os tempos históricos são outros e que o passado é sempre manipulável a depender dos interesses do presente.
A aproximação possível entre Vargas e os dirigentes políticos atuais é que as questões basilares da sociedade brasileira não foram enfrentadas: reforma agrária, demarcação de terras indígenas, combate ao racismo, taxação das grandes fortunas e tantos outros temas que mancham a história do país continuam incólumes.
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*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político