O morro desceu e não é carnaval, não é locaute, é greve!
João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político
Não raro, quando buscamos analisar fenômenos recentes, podemos cair em interpretações apressadas realizadas sob o impacto de situações acaloradas. Por isso, considero fundamental refletir sobre o movimento dos caminhoneiros tendo consciência de que grande parte das análises têm se pautado mais em especulações, do que em fatos; mais em cosmovisões, do que em epistemologia; mais em sístole e diástole, do que em sinapses. Esse cuidado pode ser uma boa forma de escapar da histeria de interpretações apressadas.
À primeira vista, a mobilização dos caminhoneiros se mostra ser um movimento com grande adesão popular, interpretado como incontrolável pelas forças ostensivas – e que tem potencial de se tornar um movimento que furaria a blindagem do sistema institucional, abrindo a possibilidade para a implementação de novos projetos. Por conta do Brasil ser predominantemente rodoviário, a mobilização conseguiu, em poucos dias, abalar o sistema e parar o país.
As informações indicam que o movimento começou de forma espontânea, via redes sociais, espalhando-se e mobilizando as associações de classe. Em seguida, houve a adesão das associações patronais. As interpretações que se pautam unicamente no pressuposto de que o movimento não é uma greve, e sim um “locaute” organizado pela direita, são apressadas. E não seria necessário dizer muito para comprovar isso. Basta olhar a direita e constatar que ela não tem força e capilaridade suficientes para organizar uma mobilização com 1 milhão de trabalhadores e que conseguiu parar o país.
Em resposta a greve dos caminhoneiros, o governo Temer, sempre passando ao largo dos interesses da população, começa a tentativa de esvaziar as vias através de forças repressivas e, assim, impor o medo e a desmobilização.
Diante disso, de um lado está grande parte da esquerda dando mostras constantes de sua desorganização e de sua incapacidade de se inserir num movimento popular, de modo que possa organizá-lo, tirá-lo do seu estado bruto e lhe dar plasticidade. Essas dificuldades da esquerda têm origem, em grande medida, em sua fragmentação e, principalmente, por conta dela, como forma de proteção, ter adotado uma lógica de condomínio, sectária, onde só se entra quem compreende as palavras-chave; onde só transita quem for espelho. Em consequência, rejeitam o que não podem controlar, apontando, por exemplo, as pautas que não estão presentes na mobilização dos caminhoneiros, como a defesa da democracia e dos direitos trabalhistas. Assim, a esquerda não consegue se recompor, se revitalizar e, consequentemente, construir movimentos de massa e se inserir nos que se apresentam.
Enquanto a extrema direita rapidamente visita as concentrações, servindo água e café, formando uma rede de apoio, grande parte da esquerda está nas redes sociais compartilhando análises apressadas que desmoralizam o movimento dos caminhoneiros, apontando-o como uma conspiração das empresas que levaria a uma nova etapa do golpe. Ao invés de mobilizar um número ainda maior de trabalhadores, essa esquerda está fazendo o contrário, atribuindo aos caminhoneiros o estigma de “massa de manobra” das associações patronais. O erro de análise de conjuntura, como tudo indica, está saindo caro. Basta observar que, ao mesmo tempo em que essa esquerda reacionária fica de preciosismo, procrastinando a sua adesão ou não ao movimento, Bolsonaro faz vídeos falando diretamente com os caminhoneiros, fazendo uma série de elogios e, assim, conquistando seus corações e mentes.
Ao mesmo tempo em que a ultradireita dá, infelizmente, um grande passo se inserindo no movimento dos caminhoneiros, procura aproveitar o caos social para inserir as suas pautas, sendo a principal delas a quebra da institucionalidade, via intervenção militar. Pequenos em número, mas grande em questão de barulho, essa direita está conseguindo falar diretamente com os caminhoneiros, enquanto a esquerda faz um papel ridículo. Felizmente, a extrema direita não conseguiu, até o momento, conquistar o apoio generalizado.
Em meio a tudo isso, setores mais à esquerda buscam construir mobilizações conjuntamente com centrais sindicais para convergir com o movimento dos caminhoneiros. Se isso dará certo, é o tempo que dirá. Mas, já é possível observar que essa mobilização dessa esquerda é fundamental, pois, na linha da revolução socialista, ela tem potencial para radicalizar a luta, construir a greve geral, em defesa do trabalhador e contra o nosso inimigo em comum: o capital.
Nesta frente de luta é imprescindível que todos estejamos lutando em conjunto. Em especial, é importantíssimo o papel dos petroleiros, pois é a categoria de trabalhadores que hoje tem uma relação mais direta com as pautas dos caminhoneiros: redução do preço dos combustíveis, defesa da soberania da Petrobras. Além disso, essa categoria tem um grande acúmulo programático de soluções para os problemas históricos e imediatos em relação ao setor. Todo esse conhecimento é imprescindível para transcendermos proposições declaradas como soluções para a crise dos combustíveis, mas que, na realidade, só servirão para o enriquecimento da burguesia, em detrimento do proletariado; como é o caso do fim da cobrança do PIS e Cofins no preço dos combustíveis (pauta dos caminhoneiros) e que só arrebentaria ainda mais a classe trabalhadora e beneficiaria as associações patronais, pois ambos instrumentos financiam a seguridade social, a qual está sob ataque violento.
No geral, o que se observa é a grande velocidade das transformações que impactam e desorientam os nossos sentidos. Trata-se, sem dúvida, de um momento extraordinário. Por isso, interpretar os caminhoneiros unicamente como reacionários é puro simplismo. O movimento é mais complexo do que isso, dada a heterogeneidade da categoria.
A massa dos caminhoneiros que se concentra nos bloqueios é popular, negra, parda, muitos vieram da pobreza, espalhando pelas vias de asfalto e de bytes a revolta de quem não teve direito a indenização, de quem sente uma profunda revolta por todas as adversidades que passaram e que passam. É o negro de “Casa-grande & Senzala” e a vasta bibliografia sociológica e historiográfica que veio a seguir; é Macabéa de “A hora da estrela”; é o sertanejo de “Os sertões”; é Manuel e Rosa de “Deus e o diabo na terra do sol”; é Fabiano de “Vidas Secas”; é o povo que agora coloca em ação direta contra o governo a potência da revolta social, anticapitalista em instinto, embora não ainda em consciência. O morro desceu e não é carnaval, não é locaute, é greve!
Percorrem as margens de toda a pulsão transformadora e avassaladora dos caminhoneiros a disputa do movimento, via uma guerra ideológica – o que é comum em todo fenômeno espontâneo. O vazio está em demasia e muitos gritam para preenchê-lo, sem conseguir, por enquanto, apropriar-se dele em sua completude. A direita avança, mas, felizmente, neste instante em que escrevo ainda se mantém a falta de tudo – o que, por sua vez, pode reservar surpresas, como a regressão fascista gestada pelo mesmo elenco de sempre, parecido com a de 1964; ou, espero, pode gerar bons frutos, com a mobilização da classe trabalhadora via greve geral, em nome da soberania nacional contra o imperialismo, em nome da destituição do instituído, enfim, em nome de uma nova sociedade, porque, eles sabem, há muito tempo, que atual em que vivemos está nos matando.
O caminho que seguirá esse movimento dependerá da capacidade de ambos os lados (esquerda e direita) em conseguir refletir uma gramática e estética avassaladora que conquiste os corações dos brasileiros para ocuparem as ruas. Portanto, nós de esquerda precisamos reaprender a mobilizar, a construir de baixo para cima um futuro onde se possa viver e onde se queira viver. A pergunta que paira no ar é: isso ainda é uma possibilidade?
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*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e milita na Frente Povo Sem Medo e Intersindical.