Redação Pragmatismo
Política 16/Jul/2018 às 09:34 COMENTÁRIOS
Política

Mulher denota o infinito poder das palavras

Publicado em 16 Jul, 2018 às 09h34
Mulher infinito poder das palavras

Eduardo Bonzatto, Pragmatismo Político

O lugar mais sombrio é o que está debaixo da lâmpada” – provérbio chinês.

Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” – GALATAS 3:28.

Você vê o meu corpo e pensa que sou eu
Ele não é eu ele não é meu
É só uma dádiva dada emprestada
Deus foi quem me deu por breve temporada
É só uma roupagem, densa embalagem
Que não me pertence
Aliás, nada me pertence nesse mundo
Tudo é transitório, tudo é ilusório
Ainda que se pense que o que se vê é pura realidade
Na verdade, o que se está a ver
Não é mais que um lapso
Distorcido da eternidade.
Além do véu de Maya, Tribo de Jah.

Mulher é uma palavra que evoca delicadeza e nos convida ao lugar da emoção, ao acolhimento, à generosidade, senhora do feminino primordial em que, mesmo dentro de nós, homens, há um habitar, um nicho, um santuário. Buscamos na mulher um alento para nossas aflições, na mãe que é fonte de amor e perdão, na filha, a quem desejamos plena felicidade contra as vicissitudes da vida, de uma vida que está ali, aguardando, espreitando, como um animal predador de olhos furtivos.

Dizer mulher é parte de um universo e de um controverso que manifesta, pela própria inflexão da palavra, um acalanto, uma pacificação, uma discrição tão silenciosa que se desfaz quando mergulhamos nas relações tecidas entre os sexos. Aí toda idealização dos enunciados encontra uma espécie de entropia. Aí, no controverso da relação, Mulher passa a ser uma palavra maculada. Quando a buscamos na história, a ideologia assume uma sórdida primazia.

Será a memória construída pela instituição da família nuclear burguesa que vai prevalecer e não a da família extensa, que a todos acolhe.

Aí, Mulher não é mais só uma palavra. E em sua provocativa normatização não há interstícios. Por isso é também uma condenação. Um significado completo executado pela história e pelas relações. Mulher é submissão. É uma história da submissão. A palavra é tão poderosa que sugere que sempre existiu. Que a submissão da mulher sempre existiu, já que o termo, a palavra sempre existiu. O termo mulher não é neutro, absolutamente. Está carregado de valor e o valor é um eufemismo para a submissão. O determinismo é tão completo que qualquer luta para alterar as relações será sempre pífia. Parece até que o DNA da palavra está carregado desse determinismo.

O termo mulher é usado tanto para indicar distinções sexuais e biológicas quanto distinções socioculturais. Presença constante e uniforme na bíblia, nas artes, na literatura, na história carregando tais distinções que o são, sempre, hierarquicamente inferiores.

Na medicina, o clitóris foi transformado delicadamente num pênis atrofiado. Seus atributos físicos, aliás, foram realçados como sinais de fraqueza e inferioridade ou, no melhor dos casos, como sintomas de sua sensibilidade exacerbada. Na arqueologia infere-se que recebiam tratamento igualmente menor diante nas tarefas necessárias para a evolução. Na mitologia, transita entre suas definições dóceis ou guerreiras masculinizadas. Os princípios fundantes do masculino e do feminino, marte e vênus, agressividade e sensibilidade que orientam a acomodação sempre finalista e ancestral da ordem “natural” das relações.

Segundo esses princípios, pode parecer absurdo sugerir que essa mulher nem sempre existiu e que sua historicidade é recente diante de sua natureza humana. O mundo do masculino como um império da sociabilidade privilegiada não contempla sequer o moderno dessa história eurocêntrica, embora seu avanço nas colunas da colonização tenha sido avassalador no último século. Primeiramente foi preciso separar os humanos dos outros seres vivos e criaram o especismo, que diz que somos os mais evoluídos; depois criaram a separação entre os adultos e os não adultos e chamaram de crianças; depois criaram o gênero, que separou os próprios adultos em homens e mulheres. Depois separaram as gerações rompendo as linhagens e enfim criaram as nações, separando os irmãos. Por fim, criaram o futebol e a guerra, as armas de fogo e os automóveis, as bonecas e os soldadinhos de chumbo. Estava criada a desigualdade, que é um trauma entre os seres.

Somos seres viventes completos para além da semântica ideológica que nos separou. E essa separação foi a causa da hierarquia que condena o termo mulher como sinônimo de submissão.

Essa logística semântica carregada de vínculos com a submissão demorou a se compactar. Experiências matrilineares em muitas sociabilidades se preservaram até hoje em dia. Pacha Mama é evocada sempre que se procura driblar as naturalizações do feminino. As curandeiras, as benzedeiras, as parteiras, as rendeiras, as tecelãs, as bruxas, as humano terra que zanzam pelas margens da história ainda mantém-se ativas em mapas ainda desconhecidos por nós nesse tempo de acomodação.

Prestidigitadoras de outros tempos desapareceram como mágica de outras histórias. Etta Ion, conhecida como Vonetta, inglesa do fim do século XIX; Mary Ann Ford, outra inglesa de meados do século XIX, conhecida como “rainha das moedas”; Adelaide Herrmann, Victoria Berland, Mercedes Talma foram mágicas que romperam, com as mãos, a coesão de uma história do masculino. Outras tantas, guerreiras africanas, muçulmanas de burka, indígenas de quase toda a terra não podem ser chamadas de mulheres. São humano terra cujas vidas não foram menosprezadas pelo mundo masculino.

A luta pela emancipação será infinita nesse paradoxo em que a palavra define o lugar social que ocupa. A palavra é fascista porque não admite ser negada, contornada, evitada. Se impõe com um poder unificador, danificando as conexões.

A palavra homem também está em relação e determina uma posição social fixa. A mãe ensina à filha e ao filho seu lugar na desigualdade. As tarefas traduzem essas posições. Repetem um ritual antigo, mas nem tanto. Prolongam uma história que promete sempre desigualdade, pois é no interior da casa que se trama a primeira submissão.

Na Inglaterra anterior ao século XX, os meninos eram vestidos de menina até idade avançada. Ernest Hemingway e Franklin D. Roosevelt possuem fotos de infância usando saias brancas, consideradas neutras na época.

Aos sete anos, aproximadamente, os garotos atingiam o que era conhecido como “a idade da razão” e não precisavam mais usar vestidos. Para a família, era um momento especial, chamado de “Breeching”, e significava que o garoto estava alcançando sua masculinidade. Seu cabelo era cortado, ele colocava calças pela primeira vez e caminhava pela vizinhança, mostrando seu novo visual. As meninas continuavam com seus vestidos vistosos, que as manterão numa espécie de infância humana para sempre.

É preciso esvaziar os valores consagrados que se aderem aos seres. Quando testemunhamos a cópula entre os animais, não colamos neles valor algum. São seres copulando. Não estão em relação. Estão em conexão. As relações, também por naturalizações, implicam em hierarquias. Também as palavras estão em relação e nunca em conexão. As palavras implicam em pensamentos e em valorações. Os sentimentos, ao contrário, anotam conexões.

Mulher é uma palavra carregada de valor. Toda a luta para que alguma forma de equidade seja conquistada será inútil, em alguma medida, enquanto o termo mulher permanecer em relação ao termo homem. Os termos determinam, historicamente, lugares de poder e não abrem mão desses determinismos.

A resistência à submissão é o empoderamento, essa alteração que salta pela lacuna da humanização e desumaniza do outro lado, mantendo a desigualdade. E quando se busca uma alternativa íntima, em que o desempenho projeta a emancipação num universo cuja perversão é justamente a manutenção da ordem hierárquica, a masculinização acolhe com alegria essa nova e competente gerente. O que se disputa não é a humanização, mas o poder. Não é a conexão, mas a relação, a posição onde nos sentimos confortáveis num mundo de desconforto e lutas incessantes. Ser mulher é padecer no paraíso, dizia um velho dito popular, pouco importa se és mãe ou não.

É preciso desaprender o aprendido até que os pensamentos que ordenam os pré conceitos sejam desativados e os sentimentos assumam nossas conexões. Conexões entre humanos terra, erradicando os valores de um mundo feito para o sofrimento que o poder impõe. Impõe a todos, mas as mulheres recebem indubitavelmente a maior carga.

Desaprender como política para a emergência do império dos afetos reumanizadores, de uma ecologia da generosidade e da colaboração entre os seres que vivem em igual expressão de energias. As energias podem então expandir em leveza, alegria e felicidade e o deus da festa poderá enfim se regozijar com a criação.

Em seu Dicionário das Tristezas Obscuras, John Koenig nos solicita para que emoções ainda não discricionárias sejam contempladas com palavras. Ali podemos encontrar a palavra para determinar o medo que temos de aprender o nome de algo – um pássaro, uma constelação, uma pessoa bonita – de estragar tudo por conta dessa pronúncia, transformando uma descoberta do acaso, numa casca conceitual vazia. A esse medo ele chama de aimonimia. Portanto, solicito que despir os valores atribuídos à mulher seja parte das urgências para a elaboração não de um novo léxico, mas das evocações de uma multidão de sentimentos que nos liguem a todas as formas de vida em conexões, sobretudo aqueles seres que sabem abraçar.

O abraço supera as formas dicotômicas de nossos pensamentos e nos abre para o caos das conexões. As conexões são randômicas e imprevisíveis e ligam nossos sentimentos numa vasta rede de acasos. Podemos, no abraço, abandonar nossas formas identitárias e nossas misoginias veladas, animadas pelos valores que naturalizam a inferioridade da mulher.

Entre o esclarecimento e a clarividência, entre a pedagogia e a inspiração, entre o instrumental e a intuição, entre o pensamento, manifestação da racionalidade e o sentimento, manifestação da energia, se movem nossos constrangimentos e nossas ousadias para que o presente, mais que um pressentimento, trinque em nosso coração uma irmandade, uma fraternidade e uma tessitura inconsútil, sem separação, sem remendos, sem distâncias.

Mulher denota o infinito poder das palavras. Jorge Luis Borges escreveu um dia que “quem viu o Zahir pronto verá uma rosa: o Zahir é a sombra da rosa e o rasgo do Velo”.

Se vivemos sob a ditadura das palavras, talvez não nos reste alternativa a não ser evocar palavras ditas e brandas. Max Ehrmann escreveu um dos poemas mais importantes a alimentar a geração do amor dos anos 1960 e com o qual interrompo essa reflexão de duvidosa e inconclusa resolução:

Desiderata (do latim, “coisas que são desejadas”)

Siga tranquilamente entre a inquietude e a pressa, lembrando-se que há sempre paz no silêncio. Tanto que possível, sem humilhar-se, viva em harmonia com todos os que o cercam.

Fale a sua verdade mansa e calmamente e ouça a dos outros, mesmo a dos insensatos e ignorantes – eles também tem sua própria história.

Evite as pessoas agressivas e transtornadas, elas afligem nosso espírito. Se você se comparar com os outros você se tornará presunçoso e magoado, pois haverá sempre alguém inferior e alguém superior a você. Viva intensamente o que já pode realizar.

Mantenha-se interessado em seu trabalho, ainda que humilde, ele é o que de real existe ao longo de todo tempo. Seja cauteloso nos negócios, porque o mundo está cheio de astúcia, mas não caia na descrença, a virtude existirá sempre.
Você é filho do Universo, irmão das estrelas e árvores. Você merece estar aqui e mesmo que você não possa perceber a terra e o universo vão cumprindo o seu destino.”

Muita gente luta por altos ideais e em toda parte a vida está cheia de heroísmos.

Seja você mesmo, principalmente, não simule afeição nem seja descrente do amor; porque mesmo diante de tanta aridez e desencanto ele é tão perene quanto a relva.

Aceite com carinho o conselho dos mais velhos, mas seja compreensível aos impulsos inovadores da juventude.
Alimente a força do Espírito que o protegerá no infortúnio inesperado, mas não se desespere com perigos imaginários, muitos temores nascem do cansaço e da solidão.

E a despeito de uma disciplina rigorosa, seja gentil para consigo mesmo. Portanto esteja em paz com Deus, como quer que você O conceba, e quaisquer que sejam seus trabalhos e aspirações, na fatigante jornada da vida, mantenha-se em paz com sua própria alma.

Acima da falsidade, dos desencantos e agruras, o mundo ainda é bonito, seja prudente.

FAÇA TUDO PARA SER FELIZ

Milton Santos dizia que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”.

É preciso assumir o que nos aproxima e não o que nos afasta.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade do Sul da Bahia, permacultor e colaborou para Pragmatismo Político

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