Bolsonaro: A escravização dos africanos e nós com isso?
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Bolsonaro disse, no Programa Roda Viva do último dia trinta, que os portugueses nunca pisaram na África, que foram os próprios negros que se entregaram para a escravidão. Essa ideia, obviamente errônea, está relacionada à outra semelhante, mas verdadeira (daí que ele até pode ter feito confusão nos seus equívocos), a de que foram os próprios negros que se escravizaram.
A escravização de homens, por outros homens, evidentemente, existiu legalmente pelo menos desde a Idade Antiga, em todos os lugares. Os motivos mais comumentes eram as dívidas e as prisões de guerra. Desde então, os escravos passaram a ser tratados como mercadoria, tanto, que era o principal “produto econômico” do fortíssimo Império Romano.
Foi justamente a busca por produtos, por especiarias, por novidades que, aliada à nova mentalidade coletiva, inspirada no Renascimento, que motivou o atrevimento de aventureiros ao mar, em fins do século XV. É que, a partir de então, a Terra era redonda e não mais terminava num precipício cheio de monstros e feras silvícolas, como há milênios pregava a Igreja Católica, e desmentiu Copérnico. Doravante, o horizonte era o limite. As riquezas, materiais ou humanas, tinham, agora, vasto campo de exploração.
Ao chegarem na África (sim, eles foram até lá), nesse período conhecido como As Grandes Navegações, os desbravadores europeus se depararam com um produto que já conheciam, os escravos, oferecidos à troca ou venda por seus proprietários, que tinham a mesma cor de pele do que seus cativos.
Ocorre que a escravidão na África daquele período seguia a lógica antiga de ser por motivos bélicos. Ou seja, os prisioneiros de tribos rivais eram transformados em escravos. E, agora, no iniciante capitalismo comercial, transformados em produto de exportação à Europa (que, dali a pouco, colonizaria todo o continente recém descoberto).
Chegando na Europa, os escravizados eram diferentes em suas culturas, hábitos e, principalmente, cor de pele e religião. Bastou para que fossem considerados não “somente” escravos, mas também seres inferiores necessitados de purificação, já que sequer conheciam Deus (o deus dos cristãos).
Historicamente, a ideia de purificação ou libertação da alma está atrelada ao trabalho (mas não à sua conseguinte retribuição pecuniária). No pórtico de entrada do Campo de Concentração de Auschwitz, por exemplo, havia a frase “O Trabalho Liberta”. E, aqui no Brasil, um presidente golpista (que tomou o poder apoiado por Bolsonaro) sugeriu: “não reclame da crise. Trabalhe!”
Sim, foram os próprios negros que escravizaram seus conterrâneos. Mas não por conta da cor da sua pele. Quem tornou as pessoas pretas escravas por serem pretas foram os europeus brancos capitalistas. Com o apoio da então religião oficial ocidental, a Igreja Católica.
Bolsonaro culpa os negros pela sua própria escravidão. Afirma nada ter a ver com o fato. Por isso é contra as políticas de cotas.
Assim como os brancos de hoje não escravizaram ninguém (exceto em algumas fazendas inclusive de deputados da direita), os negros de hoje também não se deixaram escravizar. Só que brancos e negros de hoje são diretamente influenciados pelos acontecimentos idos. Um grupo tem historicamente mais chances de ascensão social do que o outro, que, mesmo sendo liberto, ainda sofre racismo velado ou mesmo explícito. Inclusive de candidatos à presidência.
A história nos tornou o que hoje somos socialmente. Temos, portanto, muito a ver com isso.
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*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”