Luis Gustavo Reis
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Cultura 02/Ago/2018 às 15:06 COMENTÁRIOS
Cultura

Os filhos de Jah e o movimento rastafári

Luis Gustavo Reis Luis Gustavo Reis
Publicado em 02 Ago, 2018 às 15h06
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Criança observa vídeo do cantor Bob Marley.

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

Quem nunca ouviu alguma das canções entoadas pelo profeta do reggae, Bob Marley? Com letras altamente politizadas, o cantor denunciava as mazelas do capitalismo, condenava o preconceito, além de se posicionar veementemente contrário à guerra. Outros temas também predominaram nas letras, entre eles a redenção dos marginalizados, a valorização do amor, a cultura de paz e o respeito a personalidades marcantes da história jamaicana e africana.

Robert Nesta Marley, apelidado Tuff Gong (líder de gangue), projetou a Jamaica para os quatro cantos do mundo a partir dos anos 1970. Foi ele também, o principal divulgador de um movimento que já tinha bastante solidez na ilha caribenha desde o começo do século XX, o chamado rastafarismo.

Figura carimbada nas ruas jamaicanas, embora não chegassem a ser predominantes, os rastafáris expandiram seu estilo de vida para além das Américas, com adeptos inclusive no Japão. A história desse movimento começou com um pan-africanista, entusiasta da filosofia “Back to África” (retorno à África), o empresário e jornalista Marcus Mosiah Garvey.

Nascido em 17 de agosto de 1887 na cidade de St. Ann’s Bay (Jamaica), Garvey foi um importante intelectual jamaicano. Influenciado pelo pai, devorava incessantemente dezenas de livros, erudição que lhe rendeu a liderança de grandes greves operárias em Kingston ainda na adolescência. Aos 27 anos, fundou a Associação Universal para o Avanço dos Negros (UNIA), organização que tinha por finalidade unir todos os negros do mundo para estabelecer um país e um governo exclusivamente seus.

Garvey viajou por diferentes países da América Latina, Inglaterra e Estados Unidos. Neste último, fundou em 1920 a Black Star Line, uma companhia marítima que objetivava transportar passageiros negros das Américas para África, assim como construir redes comerciais para circulação de mercadorias fabricadas exclusivamente por afrodescendentes. Apesar dos robustos investimentos, a empresa operou por apenas dois anos. O sonho da conexão América-África naufragou em diversos problemas administrativos, intrigas entre os funcionários e atos de sabotagem, relegando a companhia modestas viagens entre Estados Unidos e Caribe.

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Um dos episódios que também contribuiu para o malogro da companhia de navegação, patrocinado pelo FBI, acusava Marcus Garvey de uso indevido do serviço postal para promover propaganda enganosa das ideias que acreditava. Respondendo a um processo viciado, que incluía provas forjadas e compra de testemunhas, Garvey foi condenado a cinco anos de prisão, confisco dos ativos da Black Star Line e, após cumprida a pena, deportação para Jamaica.

Nos anos de ouro da Black Star Line, a UNIA, que chegou a contar com cerca de dois milhões de filiados, lançou projetos portentosos, mas com resultados inexpressivos. Com o intuito de montar uma grandiosa cadeia de indústrias que englobasse Caribe, África e Estados Unidos, foi criada a Corporação de Fábricas Negras. O objetivo principal da empresa era elaborar os produtos e serviços demandados pelo mercado mundial de africanos e seus descendentes. Em meados de 1920, a organização decidiu patrocinar um programa para estimular o desenvolvimento da Libéria e do Haiti, buscando libertar esses países de suas dívidas, assim como bancar a construção de indústrias, universidades e estradas de ferro. A empreitada fracassou, sobretudo pela oposição dos Estados Unidos e de alguns países europeus, receosos de que seus negócios e influências fossem implodidos nos respectivos países.

Marcus Garvey tinha faro apurado e discurso eletrizante. Antes da fraudulenta condenação nos Estados Unidos, mobilizou milhares de pessoas em uma memorável passeata no Madison Square Garden, onde inflamou a multidão com sua retórica de “Etiópia, Terra dos Nossos Antepassados!”. Empenhado em sua determinação de conseguir respeito para a população negra, aproveitou a repercussão da passeata e enviou uma comissão à Liga das Nações. A finalidade dos emissários, consistia em reivindicar parte dos territórios dominados pelos alemães para os negros americanos, já que estes foram imprescindíveis para a vitória na Primeira Guerra Mundial.

Religioso contumaz, Garvey reverenciava o Império Cristão Etíope. Dizia aos seus seguidores jamaicanos que “nós, negros, acreditamos no Deus da Etiópia, o Deus Eterno” e para voltarem-se para “África, pois lá será coroado o Rei Negro; Ele será o Redentor”. Em 1930, quando Ras Tafari Makonnem tornou-se imperador da Etiópia e foi proclamado Negusa Negast (Rei dos Reis), os garveyistas entenderam o evento como a realização da profecia ditada por Marcus Garvey. Além disso, ao assumir o trono, Ras Tafari Makonnem, que alegava ser descendente direto do rei Salomão, recebeu o título de Hailé Selassie que significa “Poder da Santíssima Trindade”, conotação que ampliou ainda mais a convicção dos garveyistas de que o imperador etíope seria o tão aguardado salvador, o chamado “Messias negro”.

Há várias controvérsias entre as palavras ditas por Marcus Garvey (“Voltem-se para África”) e a chegada de Hailé Selassie ao poder. Diversos estudiosos alegam que Garvey não se referiu a Silassie, figura de quem divergia e criticava abertamente, sobretudo pela forma como conduzia o Império Etíope. Já debilitado após sofrer um grave derrame, Garvey faleceu na Inglaterra em 1940. Apesar da crença inabalável no “Back to Africa”, o principal entusiasta do pan-africanismo morreu sem nunca ter pisado em continente africano.

As ideias de Garvey e a coroação de Silassie, impulsionaram na Jamaica um movimento conhecido como rastafári. O próprio nome do movimento, inclusive, deriva da conjunção do termo ras (“chefe”), com Tafari, nome de batismo de Hailé Silassie. Diversos pregadores populares começaram a propagar a filosofia rastafári, entre eles Leonard Howeel (considerado o “primeiro rasta”), H. Archibald Dunkley, Joseph Nathaniel Hibbert, Claudius Henry e Charles Edward Emmanuel, visto até hoje por muitos rastas como o “Cristo Negro”.

Os rastas formularam um conjunto de preceitos que deveriam ser praticados pelos devotos. Instigavam os membros a evitar a ingestão de álcool, tabaco, todas as carnes (sobretudo a de porco), assim como temperos, especialmente açúcar e sal. Grosso modo, tudo que não fosse “ital”, termo rasta que significa puro, natural ou limpo, deveria ser evitado. Também recomendavam não pentear ou cortar o cabelo, baseados no livro de Levítico 19: “Eles não devem raspar a cabeça, nem devem aparar o canto da barba, nem cortar a própria pele.” Deveriam deixar os cabelos crescerem até formarem dreadlocks, assim chamados para os distinguirem daqueles que não eram rastafári. A ganja (maconha), era entendida como erva da sabedoria, consumida como parte do rito religioso. Os rastas diziam que ela foi encontrada ao lado do túmulo do rei Salomão, conforme versa o Salmo 104: “Ele [Deus] fez a grama crescer para o gado e a erva para o uso do homem, para que ele possa retirar a comida da terra.”

O movimento rastafári ganhou visibilidade após a visita de Hailé Silassie à ilha caribenha em 1966. Milhares de pessoas se espremiam no aeroporto de Kingston para ver a chegada daquele que consideravam, assim como Jesus Cristo, a encarnação de Jah (abreviação de Jeová, Deus). A partir da visita, o rastafarismo passou a ser difundindo também por meio do reggae, cujos maiores expoentes estavam reunidos na banda Bob Marley & The Wailers.

Atualmente há centenas de comunidades rastafáris espalhadas pelo mundo. Uma das mais tradicionais, fundada pelo referido jamaicano Charles Edward Emmanuel, é conhecida como Bobo Ashanti. No Brasil, por exemplo, os bobo ashanti procuram manter os ensinamentos professados pelos pioneiros do movimento rastafári, adaptando e resinificando os preceitos conforme as contingências locais. Desapegados de vícios capitalistas, muitas vezes retirando da terra o que necessitam para sobreviver, muitos bobo ashanti vivem em comunidades coletivas onde predomina o respeito, a solidariedade e a fraternidade entre os membros do grupo.

Priest Tiger, bobo ashanti jamaicano radicado no Brasil, dizia que enquanto vigorasse um sistema que hierarquiza seres humanos, jamais seríamos livres. Passados quase 80 anos da morte de Marcus Garvey, seus ideais permanecem vivos e orientam diariamente os filhos de Jah Rastafári a construírem um mundo livre de qualquer forma de opressão.

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*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político

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