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Lula 17/Ago/2018 às 16:35 COMENTÁRIOS
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Artigo de Lula no New York Times deixa Miriam Leitão furiosa

Publicado em 17 Ago, 2018 às 16h35

Artigo de Lula no The New York Times havia de merecer defeitos e uma desfeita. Afinal, trata-se do mais ilustre preso de todo o mundo

Artigo de Lula no New York Times Miriam Leitão

por Urariano Mota*

Na quarta-feira 15 de agosto, o jornal O Globo publicou um típico artigo de Miriam Leitão. Nele, a senhora que um dia militou contra a ditadura comentou o texto de Lula, publicado no New York Times. É claro, o artigo de Lula, o mais ilustre preso de todo o mundo, foi um feito. Portanto, havia de merecer defeitos e uma desfeita. E Míriam Leitão cumpriu o mandado. Comecemos por uma das suas pérolas:

Essa divisão do mundo entre esquerda que quer combater as desigualdades e direita que conspira contra o progresso social, e por isso está dando um golpe, é uma simplificação que convence estrangeiros…”.

Ora, a divisão do mundo entre esquerda que combate as desigualdades sociais, o que não é só um querer, pois vai mais longe, e a direita que conspira contra o progresso social, não é simples, nem muito menos uma simplificação. Na história, pelo menos desde a Revolução Francesa, a pisada é essa. Desconfio, até em nome da boa-fé, que Míriam Leitão deve saber disso. Mais, se ela pudesse manter uma independência de análise, não deixaria de reconhecer que as ditaduras no Chile, no Brasil, e na sua mais recente versão de golpe à brasileira, bem ilustram a “simplificação” de que a direita conspira e tenta derrubar as conquistas populares mais elementares. Mas manter um posto bem pago na mídia do capital tem seus custos pessoais, dolorosos para quem tem consciência, mas quem não a possui renuncia de bom grado ao pensamento livre. Compreendemos. Mas compreender não é perdoar, porque em outro trecho a jornalista de mercado comete:

Lula defende a tese de que o país vive um ‘golpe de Estado em câmera lenta’, no qual a sua prisão é a última fase. Diz que sua condenação se baseia apenas no depoimento de uma testemunha que recebeu redução da pena pelo que disse sobre ele…. Segundo Lula, o juiz Sérgio Moro se tornou um intocável graças à blindagem da imprensa de direita. Esqueceu de dizer que as decisões de Moro foram confirmadas por um tribunal de segunda instância e têm sido mantidas em todos os recursos à terceira instância e à Suprema Corte. E que no Supremo a maioria dos ministros foi indicada em governos do PT, e inclusive um deles foi advogado do partido”.

Um dos recursos mais frequentes da direita é difamar dizendo que combate a difamação. De passagem, anoto. Quando narrei em “Soledad no Recife” e no mais recente “A mais longa duração da juventude”, que Soledad Barrett havia sido morta grávida, com um feto expulso na tortura, houve quem comentasse que isso era calúnia plantada pela esquerda para fazer propaganda política. E no entanto, na história pesquisada fora do romance a gravidez da bravíssima Soledad estava e está documentada em muitos depoimentos.

Assim, quando Lula escreve que o país vive um golpe de Estado, no qual a sua prisão é uma fase, em que o juiz Sérgio Moro se tornou intocável, blindado pela direita na imprensa, isso não é montagem do Brasil nem invenção de conveniência. Chega a ser constrangedor, pela mediocridade e miopia, Míriam Leitão afirmar que “decisões de Moro foram confirmadas por um tribunal de segunda instância e têm sido mantidas em todos os recursos à terceira instância e à Suprema Corte”. Ora, ver as decisões do judiciário brasileiro como expressão da Justiça é o mesmo que adorar como reencarnação divina a perseguição do Lawfare, a guerra jurídica que se faz contra Lula. Ele é o personagem que ainda não foi morto em razão da sua extraordinária popularidade. Mas enquanto isso, judiciário e mídia do capital tratam de lhe destruir a moral e o moral, aniquilar o seu ânimo. Os comentaristas da tevê falham em ato falho frase flagrante mais de uma vez, quando falam “enquanto a candidatura de Lula não for derrubada…”.

Pouco importa na visão do judiciário divino do Brasil um juizeco que se sobrepõe a um desembargador de instância mais alta, ou a pressa da Procuradora Geral da República em reduzir prazos para a defesa do ex-presidente contra impugnação da sua candidatura, nem a devassa de telefonemas de advogados de Lula em pleno exercício. Tampouco interessa ver – porque seria exigir o impossível da mais fantasiosa fábula – a condenação sem provas, na base da delação, ou do ouvir dizer. Não, estamos no reino em que tudo se faz em obediência ao “devido processo legal”. Pois leis não faltam, elas apenas devem se voltar contra quem foi apontado como inimigo. E a Constituição Federal se cumpre, e deve ser cumprida com todo rigor, se for espertamente interpretada. Hoje, na justiça à brasileira, dois mais dois deixaram de ser quatro. Podem ser cinco, seis, nada ou menos. Na verdade, nas ardilosas interpretações, dois mais dois jamais dão quatro. “Justiça não é matemática”, responderia um ministro togado, calvo de pelos, mas cheio de penas.

Então chegamos ao ponto alto, à razão de A Ficção Conveniente, título do artigo de Míriam Leitão, no desfecho:

Tem sido mais fácil contar a ficção conveniente. Lula contou uma história de ficção ao jornal ‘NYT”…” .

Chegado a esse ponto, no que deveria ter sido a frase que coroa o desenvolvimento do texto, caímos numa conclusão distinta, diferente, quero dizer.

Para quem leva a sério a literatura, só existe um dever: falar a verdade. Falar, dizer, escrever, narrar o que não foi falado. Falar o que o autor viveu. Assim é a mistura do imaginado real mergulhado na realidade. A maioria das pessoas, quando falam de ficção, têm uma ideia equivocada, porque acreditam que ficção é mentira. Mas a literatura é fundamentalmente uma investigação do real. Ela é uma prospecção do aprofundamento do real. Ela avança sobre fatos, coisas, que não estavam ditas ou exploradas ainda. Mas o real, amigos, é que é inesgotável. A maior fantasia, a jamais imaginada invenção da vida é a realidade.

Ou como escreveu Máximo Górki num relato magistral sobre a lição que uma vez lhe deu Tolstói:

– Em Moscou, perto da Torre Sukharev, num beco, vi no outono uma mulher embriagada. Estava deitada, bem junto ao passeio. Do pátio de uma casa vinha se escoando um enxurro de água imunda, que escorria mesmo por sua nuca e suas costas. A mulher deitada nesse molho frio resmungava, agitava-se. Seu corpo recaía, agitando na imundície. Ela, porém, não conseguia se levantar.

Tolstói estremeceu, fechou os olhos, balançou a cabeça e propôs afavelmente:

– Sentemo-nos aqui…. Uma mulher embriagada é a coisa mais horrível e ignóbil que há. Eu quis ajuda-la a se levantar, mas não pude me decidir a isso. Tive um excessivo desgosto: ela estava tão pegajosa, tão molhada; quem a tocasse não teria sido bastante um mês para limpar as mãos. Que horror! E durante esse tempo estava sentado no meio – fio da calçada um rapazinho louro, de olhos pardos, as lágrimas corriam ao longo de suas faces, fungava e repetia numa voz desesperada: “Ma-mãe… então, levante-se”. Ela mexia os braços, dava um grunhido, erguia a cabeça e recaía de novo, flac! com a cabeça na lama.

Calou-se, depois olhando bem em volta de si, repetiu ansiosamente, quase num murmúrio:

– Sim, sim, é horrível! Você tem visto muitas mulheres embriagadas? Muitas, sim, ah, meu Deus! Não descreva isto, não é preciso!

– Por quê?

Olhou-me nos olhos e repetiu sorrindo:

– Por quê?

Depois disse lentamente com um ar pensativo:

– Não sei. Eu disse isso assim… tem-se vergonha de escrever porcarias. E, no entanto, por que não? É preciso escrever sobre tudo…

Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Enxugou-as e, sempre sorrindo, olhou o lenço, enquanto as lágrimas continuavam a correr ao longo de suas faces.

– Eu choro. Sou velho e me aperta o coração quando evoco uma lembrança horrorosa.

E me empurrando ligeiramente com o cotovelo:

– Você também quando tiver vivido sua vida, ao passo que tudo permanecerá como dantes, você chorará, e ainda mais do que eu, ‘aos baldes’, como dizem as mulheres do povo. Mas é preciso escrever tudo, sobre tudo. De outra forma o rapazinho louro nos quereria mal, nos censuraria. ‘Não é a verdade, não é toda a verdade’, dirá ele. E ele é severo no que se refere à verdade”.

Portanto, com o devido perdão por lembrar Tolstói para um artigo tão vulgar de nome “A ficção conveniente”, concluo que o eterno Presidente Lula jamais escreveu texto mentiroso, que Míriam Leitão imagina que venha a ser a natureza da literatura. O Brasil real foge dos artigos da mídia do capital. As meias-verdades e montagens da política nacional são grossa mentira. Isso é que não é ficção.

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*Urariano Mota é jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”.

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