Fascismo
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
O fascismo é um mecanismo de contágio. Como Midas, tudo que toca se transforma, assimilando. É sintoma de um tempo em que os discursos estão fortalecidos. O fascismo exige que tu se torne fascista para confrontá-lo. Ao se defender do fascismo, tu te tornas fascista. Ao atacar o fascismo se torna fascista. Ao tentar evitar o fascismo, se torna fascista. O fascismo é eficiente porque contamina a todos de fora pra dentro e de dentro pra fora. O fascismo é uma disposição para o ódio. Coagula num movimento sincrônico as pulsões disponíveis para odiar. Não há defesa para o ódio. O ódio contagia tudo e todos que toca. O ódio é uma aversão intensa motivada pelo medo.
Na primeira vez que foi colocado em movimento, as condições históricas convidavam para a união em feixes (fascio – união em torno do poder e reverência à autoridade). Agora há uma outra questão para seu alastramento.
Hoje em dia, os seres humanos estão sujeitos a condições peculiares. A depressão em nível social, a ambição como mecanismo cotidiano, a vitimização e o empoderamento constituem as formas patológicas que acediam grande parte das pessoas.
A depressão causa impotência num nível ainda pouco estudado. A ambição causa subserviência como forma de preencher as poucas oportunidades disponíveis. A vitimização causa arrogância em sua forma mais comum, pois é como as pessoas reagem quando não são compreendidas ou aceitas. E finalmente o empoderamento, causa fundamental do ódio.
Essas são as condições que transitam do interior para o exterior de cada indivíduo. Historicamente foram produzidas por um tempo de escassez, em que a falta marcou as relações.
A primeira vez em que o fascismo foi entronado, os estados totalitários nazista alemão, fascista italiano e stalinista soviético coincide com o convite a que uma grande parcela da população fizesse parte da burocracia do estado, daí que os ganhos eram muito mais do que simbólicos. Hoje as condições são muito adversas.
Aparentemente não há ganhos reais. E isso é constrangedor de um ponto de vista bem pragmático.
Explico. O neoliberalismo surge num momento chave de nossa trajetória histórica. É violentamente excludente, mas ao mesmo tempo inclui uma grande parcela exclusivamente pelo consumo (exclui incluindo). Nesse sentido, a ideologia do consumismo é parte fundamental de sua ecologia. Mas o consumismo é um momento econômico muito restrito, pois exige condições materiais limitadas. Não é possível consumismo eterno nem pra todos.
De fato, é o motor do neoliberalismo. Governos encontraram na dinâmica social uma pauta de prosperidade camuflada e provisória, mas que impacta o indivíduo de modo muito profundo.
Promove um circuito perverso ao estimular o consumo com cartão de crédito pra muitos, no exato momento em que erradica parte dos empregos. Então temos um movimento de alto consumo, alto endividamento, pouco emprego e muito trabalho. Muito desejo e muito sofrimento. A engenharia social neoliberal promove verdadeiras máquinas desejantes cujo resultado é muito sofrimento. Essa gangorra entre o desejo e o sofrimento é muito desgastante.
Numa só jogada se elimina a pressão dos sindicatos, já que o colaborador agora é o endividado que está fragilizado pelas contas a pagar; os movimentos sociais, que são isolados em pautas muito limitadas; colocando a serviço do mercado um estado tímido e minúsculo, enquanto amplia a ciranda da corrupção.
Esse movimento coloca o indivíduo na posição daquele que precisa resolver seus próprios problemas, já que a culpa pelo lugar frágil em que se encontra é dele, assim como é dele o seu fracasso. Um mercado de trabalho escasso em que a lógica se alterou no momento em que o mundo do serviço assumiu a soberania das vagas disponíveis, as profissões desaparecem e as formações são tão somente adereços inúteis no jogo decadente das colocações de emprego.
Então não é difícil imaginar que esse colosso impacta o indivíduo de modo brutal.
A depressão é a grande estrela desse cenário. Sua consequência imediata é a impotência. Incapaz de sair da roda de sansara que o mercado impõe, o indivíduo se fragiliza sem perspectiva, endividado, incapaz de deixar essa posição, vai se encapsulando dentro de si mesmo, cercado por julgamentos externos e dele mesmo. É um estado patológico que implica em doenças diversas. Nesse sentido, a competitividade é um engodo.
A ambição, combustível que faz esse tempo funcionar a todo vapor, é um vampiro. Num tempo em que a inclusão existe quase unicamente pelo consumo, ter coisas se tornou seu avatar. Como não há condições disponíveis para uma jornada rumo a um lugar em que o sujeito muda seu status real, ter coisas é o símbolo que traduz sua ambição.
Mas a ambição gera nele uma disposição para a subserviência. É um sujeito que está sempre disposto a acatar as humilhações que o sistema lhe devota. Aceita com um sorriso toda sorte de ofertas ofensivas. Faz o trabalho de muitos, está sempre sorrindo, é asseado, pontual, pró ativo, delicado, está sempre pisando em ovos, nunca diz não, trabalha muito e toda essa carga desumana lhe é internalizada.
O desempenho é seu labor e a meta a cumprir sua diretriz. O assédio daqueles que ocupam um lugar mais privilegiado não o deixa esquecer que ainda há muito a subir na vida. A ambição lhe tira o sono e deve ocultar o cansaço enorme que sente por um verniz apresentável e disposto. Não é difícil imaginar as patologias que carrega dentro de si, num lugar em que deve haver um humano ainda respirando lá dentro.
A vitimização é talvez o mais confuso dos dilemas desse momento em que vivemos. Pois primeiramente imaginamos que o vitimizado tem pena de si mesmo. Isto pode até acontecer, mas não é o mais comum. O sentimento de ser vítima das circunstâncias é contraditório. Temos uma autoimagem de nós mesmos construída por nossa história, mas também por nosso ego. Sabemos quem somos e sabemos que podemos muito. Só nós sabemos. Bastaria uma oportunidade de demonstrarmos nosso potencial e tudo seria revelado, tudo seria público, todos saberiam o que nós sabemos há muito.
Mas, como não nos compreendem, como não entendem essa grandiosidade que somos em potência, não nos deixam exprimir esse ego gritante, então nos tornamos arrogantes e vaidosos. Dizemos a nós mesmo que um dia eles verão e compreenderão o que perderam. Mas toda essa grandiosidade se aloja dentro de nós e vai ali gestando seus malefícios, seus impropérios, seus vilipêndios. Egoístas, frenéticos, assoberbados, empanturrados de vaidade, os vitimistas sofrem com um carma de danação sem fim. Estão sempre prontos a julgar e a abraçar causas danosas.
Finalmente o empoderamento. Certamente foi a melhor estratégia do sistema para manter um circuito de configurações sem saída. As pessoas entendem o empoderamento como algo que produz justiça. Finalmente é chegado o momento em que os que foram negligenciados pela história encontraram seu reconhecimento e valor.
Mas não vivemos em uma sociedade justa. O capitalismo e suas variações é um sistema criado para produzir desigualdade e injustiça. É seu ethos organizar a sociedade de modo hierárquico. Essas hierarquias são de natureza muito fluida. O que importa, mais do que a realidade dos lugares superiores ou inferiores é o símbolo dessa desigualdade.
Todos aqueles que detém o poder de conduzir o planeta para os caminhos que desejam estão imunes do empoderamento. São intocáveis em seus lugares decisórios. Distribuíram o poder para conservar incólume o verdadeiro poder. Pois o empoderamento é um poder falso ou, pelo menos, não tem a força de transformar nada. Seu objetivo é simplesmente cultivar o ódio entre os fracos, entre os sem poder.
É uma versão plasmada do pão e circo romano. Junto das lutas entre os gladiadores. Nessa nova versão, na arena social estão os negros exigindo reparação contra os brancos, as mulheres exigindo reparação contra os homens, as crianças exigindo reparação contra os pais, num infinito de contendas que não vai a lugar algum, exceto ao cultivo do ódio entre os empoderados.
Claro que nessas condições, o fascismo se tornou de fácil azeitamento e proliferação. Os que se beneficiam do mundo fascista continuarão imunes com seus lucros, seus tesouros, seus brinquedos, que sempre são sobre a diversão espetaculosa dos sem poder.
Os recursos tecnológicos disponíveis e as redes sociais tornaram a todos censores, juízes, carrascos, vigilantes numa sociedade de pequenos tiranos. Ninguém escapa desse determinismo.
Foucault diz que o inimigo maior é o fascismo. “Não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini – que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora”.
A recusa do uso do poder é uma das formas de sanearmos nossa sociabilidade. Nos colocarmos a serviço de nossos semelhantes é parte dessa recusa. Servir ao humano e não ao poder é um lema adequado. Nenhuma manifestação do poder, nenhuma defesa contra o fascismo, nenhuma estratégia contra sua emergência, apenas a atitude da inação, da não ação diante do confronto e o servir como atitude política. Deixa o ódio pra quem tem.
Osho diz que “é diante das sombras que a diferença entre um ser desperto e um ainda adormecido se torna evidente. O ser adormecido está preso as ilusões do ego, colocando no outro a culpa pelas frustrações criadas por ele mesmo. Já o ser desperto atingiu a maturidade espiritual da autorresponsabilidade, ao invés de apontar culpados, ele olha para dentro de si mesmo, ele compreendeu que é a fonte das suas alegrias e das suas tristezas“.
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*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade do Sul da Bahia, permacultor e colaborou para Pragmatismo Político