Os últimos instantes de Mestre Moa antes de ser morto pela barbárie
Em seu debate com o homem que lhe tiraria a vida, mestre Moa disse ter consciência do quanto o negro lutou para chegar onde chegou e o quanto Bolsonaro poderia tirar essas conquistas se chegasse ao poder. Para ele, a defesa de uma sociedade plural foi ponto final do seu discurso engajado
Eliana Alves Cruz, TheIntercept
Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Mestre Moa do Katendê, famoso capoeirista de 63 anos, recebeu 12 facadas nas costas depois de dizer que havia votado em Fernando Haddah, candidato do PT à Presidência, em um bar de Salvador. Moa cometeu o “hediondo” crime de discordar, e seu assassinato simboliza o perigo do pensamento extremista à direita que emergiu das urnas. Mestre Moa foi morto por um eleitor de Jair Bolsonaro, o barbeiro Paulo Sérgio Ferreira Santana, que estava no mesmo bar que o capoeirista no Engenho Velho de Brotas. Santana foi até sua casa, pegou uma faca, voltou ao bar e esfaqueou Moa 12 vezes.
A briga feriu também o primo do capoeirista, Germínio do Amor Divino Pereira, atingido no braço. Em tempos normais, um simples bate boca por divergências de visões políticas após uma eleição não acabaria em tragédia. Mas em um clima bélico cresce no país, inflado por discursos bolsonaristas que apelam às armas e ao ataque.
Entre as muitas declarações que ultrapassam o limite da polêmica, o candidato Jair Bolsonaro disse em entrevista no ano passado: “Nós vamos brigar pelo excludente de ilicitude. O policial militar em ação responde, mas não tem punição. Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim (…)”.
Poucos dias depois, amenizou a declaração. Mas em tempos de redes sociais, o recado já estava dado. Essa fala, somada a outras frases feitas que são reproduzidas à exaustão por seguidores do capitão reformado do Exército, em especial a que diz que vai armar o “cidadão de bem”, são combustível que atiçam mais que debates acalorados, mas que produzem algo, como disse a filósofa judia alemã Hannah Arendt, quando falou sobre a “banalização do mal”. Os ouvidos da nação estão se tornando insensíveis à brutalidade.
Paradoxalmente, a alta dose de cólera destilada em entrevistas terminou também se materializando em violência contra o próprio candidato que se orgulha delas. Semanas antes, ironicamente, também uma facada perfurou Jair Bolsonaro e o levou ao hospital por quase um mês. No entanto, embora os dois atentados tenham a mesma motivação, diferentemente da comoção midiática gerada pelos admiradores do candidato do PSL, a facada que vitimou mestre Moa não rende tantas manchetes ou chamadas televisivas, mas enche de lágrimas os olhos de quem o conhecia ou dos que acompanhavam seu trabalho e seu ativismo antirracial.
Na sua primeira fala após o resultado do último domingo, Bolsonaro se apressou a dizer que irá abolir todo ativismo do país. O que isso realmente significa, visto que um ativista é todo aquele que busca voz para uma causa? Não é o ativismo a base de uma democracia sadia? Ter liberdade para procurar ter voz ativa na sociedade brasileira passou a ser crime antes mesmo do resultado final das eleições 2018. A morte de mestre Moa deveria servir de alerta para o que tem sido uma preocupação dentro do país e fora dele: uma espécie de licença, de permissão, para bradar preconceitos sem ser punido e calar vozes contrárias. É a morte lenta da democracia.
O ativismo de diversos novos e novas componentes do parlamento nacional foi o que os levou a votações tão expressivas de mulheres, que aumentaram em 50% sua bancada em comparação a 2014. Serão 13 mulheres negras e a primeira indígena em meio a 63 mulheres brancas. No total, são 77 deputadas federais, 26 a mais que em 2014. Em relação a homens, a bancada conta com 113 deputados negros e 321 brancos. Ainda no terreno dos avanços, São Paulo terá sua primeira deputada estadual trans: Erica Malunguinho.
Eliminar o direito a lutar por uma causa é eliminar a chance de formação de lideranças e fazer valer pela força apenas uma visão de mundo. Isso tem um nome: ditadura.
Segundo contam as testemunhas do crime, em seu debate com o agressor, mestre Moa teria dito ter consciência do quanto o negro lutou para chegar onde chegou e o quanto Bolsonaro poderia tirar essas conquistas se chegasse ao poder. Para ele, a defesa de uma sociedade plural foi ponto final do seu discurso engajado.
Para a sociedade brasileira, pode significar o começo de um drama ainda maior do que o que temos vivido.
Homenagem de Chico César:
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