O principal motor da sujeição é a ignorância
E isso é a prova mais clara do autoritarismo que está por vir. É a característica central de todo projeto obscuro.
João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político
Na novela A Metamorfose, Kafka começa a narrativa de uma forma direta. O clímax do enredo é apresentado logo de início, e todos os acontecimentos posteriores são desdobramentos desse primeiro momento. Conta Kafka que, numa certa manhã, Gregor Samsa acorda metamorfoseado num inseto monstruoso e gigantesco.
Muitas e muitos interpretam a obra como não-realista. De fato, parece pouco verossímil alguém numa certa manhã acordar na forma de uma barata gigante. Contudo, a falta de explicação para o que ocorreu com Gregor é o que dá verossimilhança à novela. Afinal, nada mais real, no mundo contemporâneo, do que ser condenado e não saber o porquê da condenação; e, pior, não ter o direito de saber.
Toda a campanha da chapa dos militares Jair Bolsonaro (PSL) e Hamilton Mourão (PRTB) seguiu esse mote. A campanha toda foi feita para esconder as decisões. As decisões só apareciam esporadicamente.
Para lembrar de como as decisões só apareciam esporadicamente podemos recordar as falas do general Mourão atacando o 13º salário, direito histórico e arduamente conquistado pelo conjunto da classe trabalhadora. Na última vez, afirmou que “no fim todos se prejudicam” com o benefício. Para ele, esse direito das trabalhadoras e dos trabalhadores é “um custo”.
Podemos lembrar também de quando Paulo Guedes, o “guru econômico” do Bolsonaro, defendeu mais impostos para os mais pobres. Em encontro de empresários realizado em setembro, o economista anunciou a intenção de aumentar a alíquota do Imposto de Renda (IR), criando uma taxa única de 20% para pessoas físicas e jurídicas.
O sistema tributário atual é dividido em faixas, com isenção de IR para aqueles que recebem até R$ 1.903,98, e com cobrança progressiva para quem recebe até R$ 4.664.68. No entanto, com a sugestão feita pelo “posto Ipiranga” do Bolsonaro, todas as faixas passariam a pagar 20% na alíquota do imposto de renda, ou seja, quem ganha dois salários mínimos pagaria valor proporcionalmente igual àqueles que ganham mais de 30 salários mínimos.
Logo em seguida a essas e outras declarações, Bolsonaro correu para apagar o fogo. Assim, a campanha foi toda organizada para que as pessoas, sejam elas bolsonaristas ou não, não saibam em quem podem confiar. O que é real, ou apenas uma bravata? Ninguém sabe, a não ser eles mesmos. O tempo todo era um diz e desdiz.
Outro fato que evidencia isso é Bolsonaro só falar em espaços onde não será questionado. Fugiu dos debates como se foge da peste e só deu entrevistas para amigos. Na maior parte do tempo, para ouvi-lo temos que nos submeter ao exercício masoquista de assistir às suas lives no facebook, as quais, diga-se de passagem, adotam uma estética horrorosa ao estilo Al-Qaeda, fazendo parecer que estão numa espécie de bunker. Quando o “mito” falava na TV, parecia estar lendo, porque de fato estava repassando um discurso decorado escrito por algum assessor e marqueteiro.
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Além disso, outro acontecimento que demonstra o quão obscuro é o projeto de Jair Bolsonaro é o fato de a maior parte das informações que circulavam nas redes sociais serem falsas. As fake news formam hoje mais opinião do que os meios de comunicação tradicionais, como telejornais, jornais, revistas. As notícias falsas tiveram papel determinante nas eleições. Elas foram fortemente criadas e intensamente espalhadas com recursos advindos de um esquema criminoso de caixa dois montado por empresários que apoiam Bolsonaro. Investiram milhões para disparar mensagens no Whatsapp contra o PT e as pessoas que compunham a chapa presidencial: Fernando Haddad e Manuela D’ávila. Foi assim que um candidato que, no primeiro turno, só possuía oito segundos de tempo de TV, conseguiu uma votação massificada. Enquanto isso, Geraldo Alckmin (PSDB), que tinha tempo de sobra de TV, recebeu uma votação irrisória e o seu partido saiu completamente arrasado dessa eleição.
Não seria necessário muito esforço mental para prever que Bolsonaro, em seu governo, adotará esse modus operandi em que concentra todas as decisões em si mesmo, completamente centralizador, personalista, sem transparência, sem democracia, sem diálogo, sem interlocução com as pessoas que votaram nele e com as pessoas que fazem oposição a ele.
Não é à toa que fazem de tudo para fiscalizar professoras e professores, incentivando colegas de profissão e estudantes a vigiar e filmar aquelas e aqueles que, supostamente, poderiam estar realizando “doutrinação ideológica e política” em sala de aula. Não é à toa que querem que os livros se mantenham fechados, como foi a campanha sensacionalista contra a obra intitulada difamatoriamente como “Kit Gay”. Não é à toa que querem barrar a liberdade dos cursos de humanas das universidades.
Não é à toa que Bolsonaro ataca sempre que pode intelectuais, militantes, ativistas, enfim, pessoas que discordam ou possam vir a discordar dele. Em suas diversas variações nacionais, o fascismo possui sempre um forte elemento de anti-intelectualismo, de anti-pensamento crítico de oposição. Em geral, os políticos e ideólogos fascistas reprovam o pensamento crítico de oposição por acharem que os mesmos não possuem “função” na sociedade, acusando-os de não contribuírem para o poder e a unidade do estado nacional.
Bolsonaro e cia expelem uma nuvem de fumaça tóxica no ar para ocultar intenções inconfessáveis, pois sabem que navegam melhor por entre brumas e cerração; pois sabem que se as pessoas de fato entendessem o que esse novo governo fará com elas, nunca votariam nesses algozes. O principal motor da sujeição é a ignorância. E isso é a prova mais clara do autoritarismo que está por vir; é a característica central de todo projeto obscuro. Escreve Vladimir Safatle em O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo que, “quanto menos se souber sobre as leis, sobre seu fundamento e modos de aplicação, mais fácil condenar e submeter alguém”.
Obviamente, a maneira como Bolsonaro promete reorganizar os ministérios reflete isso. O presidente eleito vai fundir pelo menos 11 pastas para criar quatro superministérios. Criará o ministério da Economia juntando as pastas da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio Exterior; juntará os ministérios da Casa Civil com a Secretaria de Governo; o da Infraestrutura com o dos Transportes; a pasta da Educação com a de Cultura e Esporte; o da Justiça com o da Segurança Pública; e fundirá o da Agricultura e do Meio Ambiente.
Bolsonaro justificou essa reorganização com a retórica supostamente em defesa do pragmatismo e da eficiência. Ele diz que quer gente eficiente perto dele, quer reduzir gastos, acabar com a corrupção. Paradoxalmente, convidou Alberto Fraga, condenado em primeira instância a 3 anos e 2 meses de prisão por uso do cargo em troca de vantagens pessoais, para coordenar a bancada da bala no Planalto.
Essas justificas para a fusão dos ministérios não passam de inverdades. Bolsonaro quer sim é centralizar o poder em si mesmo. Sinceramente, nada disso me surpreende. Não esperava algo diferente de alguém como Bolsonaro, que não tem tradição democrática; pelo contrário, ataca o sistema democrático sempre que pode.
Bolsonaro ser um fascista não é novidade para mim, mas me preocupa e me assusta profundamente saber que ele subirá a rampa do planalto em janeiro com a faixa presidencial para comandar o país. A democracia brasileira, que já é extremamente falha, se verá ainda mais deturpada no seu governo. O fosso existente entre a população e o sistema político será aumentado ainda mais, pois as poucas pontes construídas até aqui serão destruídas.
O mais assustador é que, a partir do dia 1º de janeiro, será oficialmente iniciado um governo em que, quem faz oposição, corre o risco de ser atacado, de desaparecer, de morrer. Risco que sempre existiu, especialmente para quem é periférico, quem é mulher, quem é negro, quem pertence à comunidade LGBT. Contudo, o tijolo agora será muito maior e virá direto contra a cabeça de quem traz no bolso a contravenção/Muambas, baganas e nem um tostão/A lei te vigia/Com seus olhos de raios X.
Esse ataque poderá vir direto do governo, ou do movimento bolsonarista, composto pelos eleitores do Bolsonaro mais convictos e radicais, fascistas, que estão longe de agir dentro do universo da divergência política aceitável, como já demonstraram matando o mestre de capoeira e militante Romualdo Rosário da Costa, de 63 anos, conhecido como Moa do Katendê, que foi esfaqueado e morto em um bar por um apoiador de Bolsonaro. Esse grupo de eleitores, vale ressaltar, é uma parcela pequena do conjunto de pessoas que votaram no candidato do PSL, como já apontei aqui.
O terreno para o massacre já está sendo preparado. Já está na ordem o acirramento da Lei Anti-terrorismo que criminaliza movimentos sociais, o Projeto Escola Sem Partido e o fim do atual Estatuto do Desarmamento. Além de promover um discurso de ódio, que inflama e instiga os setores mais autoritários e retrógrados da sociedade brasileira, Bolsonaro quer ainda armar a população, dando também carta branca aos policiais para matarem quem quiserem.
O risco contra nós é grande. De repente, algo se esgarçou e se tornou inaceitável para uma parte da sociedade. E este algo inaceitável marca e determina um inimigo: a esquerda brasileira. De repente, nós de esquerda passamos a ser vistos por uma parcela considerável da população como baratas gigantescas horrorosas. Assim como Gregor Samsa, estamos condenados sem o direito de saber o porquê.
Contudo, está muito enganado quem crê que recuaremos. De fato, a tática e a estratégia precisam ser repensadas por conta da segurança. Mas, engana-se quem imagina que ficaremos de braços cruzados em casa lambendo as feridas.
Já estamos nos estruturando para mobilizar o conjunto da classe trabalhadora profunda e legitimamente insatisfeita com o sistema político, organizando-os, de modo que entendam que fazem parte da resistência e construam conosco a força necessária para barrar os rojões.
Bem unidos façamos, nesta luta, uma terra sem amos. Nesse processo, podem até tentar nos enterrar, mas saibam desde já que somos sementes.
*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, trabalha na rede pública do Estado do Paraná e milita na Frente Povo Sem Medo, Frente Ampla Antifascista e Intersindical. Email: [email protected]
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