A Afro-Ásia: O bairro da Liberdade e o atropelo da História
Eis os eventos e marcos da memória dos negros na São Paulo de outros tempos, especificamente no atual bairro da Liberdade, que os administradores públicos negligenciaram
Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Walter Benjamin
Quem passeia pelo famoso bairro da Liberdade em São Paulo nota uma massiva presença asiática. Além de japoneses, chineses e coreanos transitando apressadamente pelas vias, são diversos restaurantes, mercados, escolas e numerosos outros estabelecimentos comerciais e culturais que confirmam a predominância oriental. Com ruas e avenidas repletas de elementos orientais, sem contar as muitas placas escritas em língua japonesa, a região também é conhecida por ser um dos maiores redutos nipônicos fora do Japão.
Recentemente, para fazer jus ao oportunismo característico dos operadores políticos, um projeto de lei capitaneado pelos vereadores George Hato (MDB), Milton Leite (DEM), OTA (PSB) e Rodrigo Goulart (PSD) defendia a alteração do nome de uma praça da região – a Praça da Liberdade –, propondo o acréscimo da palavra Japão ao nome original acompanhada pelo devido hífen.
Aprovada pela Câmara Municipal em julho de 2018, a lei foi sancionada pelo prefeito Bruno Covas (PSDB). Em seguida, no rastro do prefeito, o então governador Marcio França (PSB), decretou que a Estação Liberdade, da Linha 1 – Azul do metrô, também fosse rebatizada para “Japão-Liberdade”. A mudança dos nomes veio a reboque das comemorações dos 110 anos da imigração japonesa no Brasil. No entanto, embora a presença e a importância da colônia japonesa no bairro sejam incontestáveis, a história da Liberdade foi construída à custa de sangue derramado de outros grupos étnicos.
De um ato aparentemente trivial de administradores públicos, se esconde algo nefasto para a população negra: o apagamento da memória de centenas de escravizados locados na região, que durante cerca de 100 anos foram supliciados no Largo do Pelourinho (atual Largo Sete de Setembro), assassinados no Largo da Forca (atual Praça da Liberdade) e enterrados no Cemitério dos Aflitos (atuais Rua da Glória e Rua Galvão Bueno).
O Largo da Forca funcionou como ponto de enforcamento de condenados até meados do século XIX e era um espaço de fluxo constante de pessoas. Ao assassinar escravizados fugitivos ou rebelados em praça pública, as autoridades tinham como objetivo inibir a rebelião dos demais cativos. A mensagem era clara: caso se rebelassem, o destino era o mesmo, ou seja, a morte por enforcamento.
O local de instalação da forca foi escolhido devido à proximidade com o Cemitério dos Aflitos (1779-1858), reconhecido como o primeiro cemitério público da cidade, e construído para evitar que os pobres fossem enterrados dentro das igrejas. As sepulturas eram rústicas e levavam uma cruz de pau, sem identificações, datas ou bênçãos. Era o cemitério dos anônimos, dos indignos, dos desprezíveis, em suma, o destino final dos escravizados.
Havia uma capela nesse cemitério, chamada Igreja dos Aflitos (atual Capela dos Aflitos), lugar devocional da religiosidade popular. Repleta de sacralidade e de forte apelo místico, corria-se na época uma lenda de que velas acesas em volta da igreja jamais se apagavam, mesmo sob fortes ventos e chuvas torrenciais. Tal lenda foi tecida após a morte do negro Francisco José das Chagas, o “Chaguinha”. Em 1821, Chaguinha e o soldado Joaquim José Cotindiba, também negro, encabeçaram um motim pelo pagamento de soldos atrasados. Fracassada a rebelião, ambos foram presos e condenados à morte. Segundo a lenda, quando os algozes procederam ao enforcamento do cabo Chagas, a corda se rompeu por três vezes seguidas. A vítima foi então executada no chão a pancadas para revolta dos populares presentes, que exigiam a comutação da pena capital e gritavam “Liberdade, Liberdade!”. O grito de liberdade, inclusive, seria uma das hipóteses para o posterior nome do bairro.
Chaguinha teria se tornado um mártir e um santo na devoção da população local, que ascendia velas em sua homenagem. Até hoje, na Capela Santa Cruz das Almas dos Enforcados, que fica próxima à Capela dos Aflitos, fiéis ascendem velas e depositam flores às pessoas que sofreram mortes violentas.
Leia aqui todos os textos de Luis Gustavo Reis
A poucos passos do Largo da Forca, funcionava o Largo do Pelourinho, onde escravizados eram açoitados. Monumento semelhante a esse, presente em muitas regiões do Brasil, foi retratado por Jean-Baptiste Debret. O pintor francês representou um negro amarrado num poste de pedra sendo seviciado por um feitor com chicote em riste, assistido por outros trôpegos cativos e por transeuntes que passavam pelo local.
Eis os eventos e marcos da memória dos negros na São Paulo de outros tempos, especificamente no atual bairro da Liberdade, que os administradores públicos negligenciaram. No afã de emplacar alguns pontos com a comunidade oriental, atropelaram a História e escamotearam séculos de vivências gestadas por centenas de agentes sociais, seja por desconhecimento, preguiça ou descomprometimento.
A chegada de imigrantes japoneses ocorreu nos primeiros anos do século XX. Na bagagem, eles trouxeram suas tradições, crenças, hábitos alimentares e diferentes aspectos culturais que foram fundamentais para construção da cultura brasileira. Passados alguns anos, em meados da década de 1950, desembarcaram aqui chineses e coreanos, que contribuíram radicalmente para a alteração do bairro, algo que estava em curso desde a chegada dos nipônicos.
É evidente que o objetivo aqui não é criar fendas entre afrodescendentes e asiáticos ou descartar a significativa contribuição dos povos orientais, pelo contrário, o intuito é reconhecer os territórios negros da cidade, que por anos foram relegados ao esquecimento, tornados invisíveis e desconsiderados pelas elites.
George Orwell escreveu em seu livro 1984 que “quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado“. Com essa reflexão, o autor mostra como a informação é transformada em um poderoso mecanismo para transmitir e descrever fatos históricos de acordo com as conveniências.
As falsificações da História pululam a todo momento e o passado está em constante disputa. Há um provérbio africano que diz: “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.”.
Já passou da hora de os leões falarem para que suas façanhas ganhem lume e não permaneçam cimentadas em grossas camadas do esquecimento.
*Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos