A crise humanitária que matou 85 mil crianças de fome e doenças evitáveis
Iêmen: O país assolado por uma crise humanitária de verdade, mas que não desperta interesse dos EUA
César Locatelli, Jornal GGN
O dia do juízo final
“Eu vi tragédia. Os homens que enchiam o lugar de felicidade e dança estavam em pedaços dispersos de carne carbonizada. O sangue estava em todo lugar. Havia dedos e intestinos em todas as direções… Partes dos corpos estavam nas árvores e nas pedras e as pessoas tentavam recolher tantas quantas conseguissem e as partes restantes dos corpos eram comidas pelos cães.”
Esse é o depoimento de Amina Al-Shahb, 50 anos, mãe do noivo. A festa de casamento foi atingida por uma bomba de fabricação dos EUA (GBU-12 Paveway II) que matou 21 pessoas, das quais 11 eram crianças, e feriu 97, das quais 48 eram crianças.
“Todos que tocavam seus tambores e dançavam foram mortos, a alegria transformou-se em pesar e tristeza”, contou Fadhl Al-Musabi, 55 anos, um dos convidados da festa de casamento. Não se pode atribuir o bombardeio a um erro de cálculo: a área militar mais próxima era um bloqueio em uma estrada e estava a mais de 25 quilômetros de distância.
Esses relatos constam de um dos 27 ataques computados no relatório, publicado na quarta, 6 de março, no site da Universidade de Stanford, denominado “Dia do Juízo Final: o papel dos EUA e da Europa na morte de civis, destruição e trauma no Iêmen”, patrocinado por Mwatana for Human Rights, University Network for Human Rights e Pax for Peace.
O sofrimento por quatro anos de guerra
Diz o relatório:
“Desde 26 de março de 2015, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos (EAU) lideram uma coalizão de países em uma campanha militar contra os rebeldes Ansar Allah (Houthi) no Iêmen. Conforme documentado por várias organizações de direitos humanos e pela ONU, a coalizão tem, consistentemente, atacado civis e infraestruturas civis críticas – incluindo hospitais, escolas, crianças estudantes, casamentos, fazendas e poços de água – em violação das leis de guerra. A coalizão também impôs um bloqueio naval nos principais portos das áreas controladas pelo Houthi, obstruindo as importações de alimentos vitais e suprimentos médicos para o país devastado pela guerra. Em áreas do Iêmen sob seu controle, as forças de coalizão se engajaram em outras violações dos direitos humanos, incluindo a detenção arbitrária generalizada.
O grupo armado Houthi, que assumiu a capital Sana’a pela força, no final de 2014, e expandiu seu controle para grande parte do país, também violou as leis de guerra, incluindo o bombardeio indiscriminado contra civis, a colocação de minas terrestres, o bloqueio de suprimentos humanitários, a detenção arbitrária de pessoas, a prática atos de tortura e o recrutamento de crianças soldados.
Em quatro anos de conflito, cerca de 20 mil civis iemenitas foram mortos ou feridos e metade da população – 14 milhões de pessoas – está em risco de fome, segundo a ONU. Outras estimativas, no entanto, variam muito mais: o ACLED (Armed Conflict Location & Event Data Project) registrou mais de 50.000 mortes relatadas como resultado direto dos combates e, de acordo com a Save the Children, 85.000 crianças podem ter morrido de fome e de doenças evitáveis.
Apesar de acontecer a milhares de quilômetros das costas dos Estados Unidos e a centenas de quilômetros da Europa, a guerra no Iêmen está mais perto de casa do que parece. De fato, os EUA e o Reino Unido ativamente possibilitam os bombardeios ilegais de civis iemenitas pelas forças de coalizão lideradas pelos sauditas / EAU. Durante décadas, os EUA forneceram, à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos, armas e treinamento militar. Apesar de anos de relatórios confiáveis sobre abusos de coalizão no Iêmen – e em flagrante violação da lei de comércio de armas dos EUA e do direito internacional, como este relatório detalha – os EUA continuam vendendo armas para Arábia Saudita e EAU usarem no Iêmen. Os militares dos EUA também forneceram à Coalizão inteligência, apoio logístico, assistência para determinação de alvos e treinamento. Essa assistência continuou por anos sem a autorização do Congresso exigida pela lei dos EUA. O Reino Unido também continua a vender armas dos países da Coalizão para uso no Iêmen, em violação direta de suas obrigações sob o Tratado de Comércio de Armas e da Posição Comum da UE sobre as exportações militares.”
O Congresso dos EUA pode encerrar essa guerra
Radhya Al-Mutawakel, presidente da Mwatana for Human Rights, o grupo iemenita que ajudou a escrever o relatório, depôs na quarta-feira, 6 de março, perante um subcomitê da Câmara dos EUA sobre as conclusões do relatório. Ela conta à Amy Goodman, do DemocracyNow!:
“Bem, foi estranho para mim que muitos membros do Congresso se concentraram apenas no acesso humanitário. O acesso humanitário é importante, mas enquanto estivermos no Congresso, podemos falar sobre como parar a guerra, não apenas como facilitar o acesso humanitário, porque até ONGs humanitárias estão dizendo que a ajuda humanitária não resolverá o problema no Iêmen. Em 2018, havia 22 milhões de pessoas que precisavam de assistência humanitária. E agora, em 2019, o número aumentou para 24 milhões. Não conseguiremos alimentar uma nação. Estou com tanto medo de estar aqui em 2020 dizendo que o número aumentou. Isso deve parar. E tentei explicar aos congressistas, que eles podem fazer muito para impedir a guerra no Iêmen. É um desastre humanitário, que eles tenham o poder de pará-lo. Eles podem – o Iêmen pode se beneficiar do poder que têm para fazer isso.”
“Nós matamos centenas de milhares de pessoas”
Andrew Bacevich, coronel aposentado e veterano da Guerra do Vietnã, autor e professor emérito de relações internacionais e história na Universidade de Boston, também participou da entrevista com Amy Goodman, do DemocracyNow!. Diz ele:
“Eu gostaria de ter vindo armado com estatísticas, porque elas são deprimentes. Mas se tomarmos 2003 como a data de início – 2001 talvez melhor, quando invadirmos o Afeganistão, como a data inicial para este projeto militar desestabilizador no qual estamos envolvidos desde então, nós matamos centenas de milhares de pessoas. Nós deslocamos milhões de pessoas, criando enormes problemas de refugiados. Se os americanos se preocupam com isso, gastamos trilhões de dólares em dinheiro dos contribuintes americanos. Evidentemente, perdemos milhares de nossos próprios soldados e dezenas de milhares de veteranos tiveram suas vidas destruídas, irremediavelmente destruídas, como resultado de seu serviço militar em lugares como o Iraque e o Afeganistão.
Eu tenho que dizer, uma das coisas que eu acho tão perturbadoras sobre o presente momento político, como nós estamos obcecados com Donald Trump – e há muitos motivos para ficarmos obcecados com Donald Trump – é que todas as outras coisas, essa sequência de eventos, de alguma forma se perdem, não encontram nenhum apoio na consciência coletiva americana. E acho que esse fracasso, essa falha moral de nossa parte, de medir o mal que cometemos nos últimos anos é um castigo para o povo americano. Nós não ligamos a mínima, para ser franco – “nós” em termos coletivos. Não nos importamos com o caos que causamos em grande parte do mundo. E nós nos esquecemos muito facilmente e seguimos em frente, ou voltamos nossa atenção para outros assuntos, como Donald Trump.”
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