Mulheres brasileiras retornam à miséria após cortes em programas sociais
Cortes em programas sociais devolvem mulheres brasileiras à miséria e à violência doméstica. "É um verdadeiro genocídio", diz pesquisadora
Cristina Alves, Regina Eleutério, Agência Pública
A crise econômica e a ausência de políticas públicas eficientes de proteção social impactam principalmente as mulheres, responsáveis, na maioria das vezes, pelo cuidado com a família. Quando, em nome da austeridade fiscal, programas sociais sofrem cortes ou são suspensos, a crise assume uma face ainda mais cruel para as mulheres que necessitam desse apoio: as mais pobres. São elas que lutam para evitar que a fome se instale dentro de casa ou, pelo menos, tentam amenizá-la.
“As mulheres desempenham papel de protagonista, dadas as nossas constituições familiares. Muitas vezes, nos domicílios em que domina a pobreza ou a extrema pobreza, a mulher – e mãe – é a chefe da casa e não tem um companheiro. Em outros casos, a avó também cumpre esse papel. E, se existe um quadro de extrema pobreza, aquela família frequentemente vive uma situação de fome”, afirma o pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) Francisco Menezes, especialista no tema de pobreza e desigualdade.
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Desde 2017, em meio ao agravamento da crise econômica, Menezes deu o alerta de que o Brasil corria sérios riscos de voltar ao Mapa da Fome, do qual saíra em 2014. Um país entra no Mapa da Fome, das Nações Unidas, quando 5% ou mais da sua população vivem em situação de insegurança alimentar. Em 2014, o percentual no Brasil caíra para 3,5%.
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“A recessão e o desemprego pioram ainda mais as condições de vida para a população mais carente. Nesse cenário, programas sociais deveriam ter sido ampliados, mas isso não aconteceu. Pelo contrário: prevaleceu a política de austeridade e, ainda assim, o Brasil estourou o teto de gastos [públicos]”, completa Lena Lavinas, doutora em economia pela Universidade de Paris e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os números da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), do IBGE, divulgados em fins de 2018, mostram que, entre 2016 e 2017, a proporção de pessoas pobres no Brasil subiu de 25,7% para 26,5% da população: um aumento de 2 milhões. Já o contingente dos extremamente pobres cresceu de 6,6% da população em 2016 para 7,4% em 2017, passando de 13,5 milhões para 15,2 milhões. Pela definição do Banco Mundial, são extremamente pobres os que têm renda inferior a US$ 1,90 por dia, ou R$ 140 por mês aproximadamente.
Insegurança alimentar
No estado do Rio, pelo menos um em cada seis domicílios vive um quadro de insegurança alimentar grave. Ou seja, seus moradores não têm acesso aos alimentos na quantidade necessária, de acordo com dados divulgados em 2014, da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). Diante da escassez, muitas vezes é a mulher que se encarrega de levar o alimento para casa.
“A mulher tem muito mais iniciativa do que o homem e, nesse contexto, busca alternativas, até no vizinho se for preciso, e recorre a uma rede de solidariedade social. E esse apoio vem de várias formas, não só de instituições de caridade, mas de parentes, da igreja”, afirma Menezes.
“O Estado brasileiro tem falhado em reconhecer o papel da mulher como um arrimo mais eficiente. A diferença entre as rendas do trabalho para homens e mulheres é grande e o Estado tenta compensar isso, mas falha. Existe uma rede de proteção social, de Bolsa Família e de outros benefícios sociais, mas eles não são suficientes para reverter a situação de desigualdade”, afirma Marcelo Neri, diretor do FGV Social, da Fundação Getulio Vargas, e maior think tank de políticas sociais da América Latina.
“A meta do milênio era reduzir à metade a extrema pobreza entre 1990 e 2015. Em 25 anos, ela caiu 73% no Brasil. De 2015 para cá, no entanto, cresceu 40%, mesmo com a redução dos preços dos alimentos”, sentencia Neri, acrescentando que, de 2015 a 2017, o Brasil registrou mais 6 milhões de novos pobres, que ganham até R$ 233 per capita por mês, segundo a FGV Social.
Cortes são arbitrários e ameaçam autonomia recém-conquistada, diz pesquisadora
Desde 2016, a socióloga Walquíria Leão Rêgo, professora titular de ciências políticas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, tem se dedicado a pesquisas com mulheres no sertão de Alagoas e Ceará. Em entrevistas, ela registra a realidade de mulheres que com o programa Bolsa Família assumiram o protagonismo nos seus lares e agora veem sua sobrevivência ameaçada. Ao longo dos anos, registrou como muitas ganharam autonomia, já que são elas as recipientes do programa. Agora, ela diz que essas conquistas estão ameaçadas. “O aprofundamento dos cortes no Bolsa Família não apenas reduzirá a autonomia dessas mulheres, mas compromete a própria vida delas e das crianças. Um verdadeiro genocídio. Principalmente para as mulheres no sertão que não têm outra opção”, diz Walquiria.
“Os cortes no programa estão sendo feitos sob o pretexto de combater fraudes, mas muitos são arbitrários. Em alguns casos, são cruéis porque ocorrem quando, sazonalmente, a pessoa consegue uma ocupação temporária. Nos últimos anos, constatei que o quadro mudou bastante: há uma situação de medo e angústia e, pior, há um sentimento forte de impotência”, afirma ela, que é coautora do livro Vozes do Bolsa Família – autonomia, dinheiro e cidadania (Editora Unesp).
“Em vários locais, observei presença forte das igrejas. Basta um salãozinho e algumas cadeiras plásticas e elas se instalam. Numa situação de vulnerabilidade, muitas mulheres são facilmente capturadas pelo discurso religioso e começam a achar que não são pobres porque têm Deus no coração”, resume a professora.
Ela alerta para o fato de que a situação de miséria está levando boa parte desse contingente de mulheres a uma “perda permanente de experiências do saber”, como ela define. E explica: são mulheres cujas avós sabiam bordar no Nordeste, ou produzir esculturas no Vale do Jequitinhonha (MG), e que agora não detêm mais essa experiência. “Esses saberes foram expropriados pelos ricos, que agora financiam determinadas comunidades específicas para abastecer lojas chiques em São Paulo ou no Rio.” O resultado é menos trabalho, menos autonomia, mais pobreza.
Violência e mortalidade
Para a pesquisadora Natália Fontoura, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a violência é outro fator que agrava as condições de vida das mulheres, principalmente as mais pobres.
A violência contra a mulher existe em todas as camadas sociais, mas nas mais pobres a rede de apoio é menor. Nem sempre elas têm para onde ir ou podem contratar advogado. É comum, nos casos de violência doméstica, ouvi-las dizer que não podem sair de casa porque não têm para onde ir. Se o Estado já falha em educação e saúde, a lentidão para resolver conflitos e punir agressores é ainda maior.
Nas favelas e áreas dominadas pelo tráfico ou pela milícia, a violência contribui também para agravar a situação econômica. “Não só o acesso a serviços é mais difícil nessas áreas, mas o custo de vida é maior quando a milícia vende gás mais caro e cobra taxa de segurança dos comerciantes locais, o que encarece os produtos”, explica Lena Lavinas.
As pesquisadoras concordam que a ausência de políticas públicas eficientes para a população mais carente agrava o quadro de fome, desnutrição e mortalidade infantil. Por isso, elas apontam a necessidade de aumento da oferta de creches públicas, escolas em tempo integral com duas ou mais refeições e a reativação de centros de cuidados para idosos para que as mulheres possam buscar trabalhos mais bem remunerados.
“O cuidado é considerado uma atribuição feminina, por isso a falta de serviços nessa área impacta muito as mulheres. Como sair de casa para trabalhar sem ter onde deixar o filho pequeno? Ou sem ter quem cuide dos idosos da família?”, indaga Natália Fontoura.
Lena Lavinas destaca que a luta contra as desigualdades de gênero não pode se limitar às campanhas específicas, mas precisa incluir cobranças por políticas macroeconômicas: “Se o Estado recua e deixa o mercado atuar livremente, sem fiscalização ou regulação, as mulheres continuarão a ser as mais prejudicadas”.
Aumento de mortalidade infantil
Por falta de políticas públicas adequadas, a desnutrição infantil voltou a crescer na faixa de 1 a 5 anos e aumentou a taxa de mortalidade infantil, avalia Lena Lavinas. Nesse caso, a causa foi a piora no atendimento de saúde.
Dados do Ministério da Saúde mostram que, pela primeira vez desde 1990, a taxa de mortalidade infantil subiu no Brasil: foram 14 mortes a cada mil nascidos vivos em 2016, um aumento de 4,8% em relação a 2015. Dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, reunidos pela Fundação Abrinq, revelam que de 2016 para 2017 o percentual de crianças menores de 5 anos desnutridas aumentou de 12,6% para 13,1%.
Natália Fontoura destaca ainda a importância de discutir também a questão racial. Entre as mulheres pobres, as negras são as mais impactadas, por terem menor renda e menos emprego. Também na comparação entre áreas rurais e urbanas, ela destaca diferenças significativas. “Na cidade, a pobreza é mais cruel. Quem não pode pagar não tem acesso a alimentos. Existe ainda uma desigualdade mais gritante, que estigmatiza a pobreza”, explica.
Para Natália, a carga de cuidados que naturalmente recai sobre a mulher, em todas as camadas sociais, adquire, entre as mais pobres, um peso adicional: “Na fome, a carga é agravada pelo sentimento de culpa, por não ser capaz de alimentar os filhos, o que aumenta ainda mais o sofrimento”, afirma.
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