Torcidas organizadas rivais se unem contra a extrema direita
Rivais em campo, mas unidos contra a extrema direita: grupos de torcidas organizadas de clubes tradicionais erguem a voz pela convivência pacífica e contra o racismo
Projeto Koelnerfan)
Nos anos 80/90 não era raro ocorrerem manifestações de hooligans neonazistas fora e dentro dos estádios na Alemanha, especialmente quando a seleção alemã se apresentava em jogos fora de casa. Quem não se lembra, por exemplo, do policial francês covardemente espancado por uma horda de alemães enfurecidos nas ruas de Lens na Copa de 1998?
Também dentro dos estádios, predominantemente de clubes das divisões inferiores, como Dresden e Chemnitzer, grupos de saudosistas do Terceiro Reich não escondem seu ideário extremista através de gestos e palavras de ordem, características dos tempos de trevas da história alemã.
Há um ano e meio, numa partida pelas Eliminatórias da Copa de 2018, neonazistas alemães marcaram sua nefasta presença em Praga, na partida entre República Tcheca e Alemanha. Entoaram gritos de guerra e insultaram jogadores da Mannschaft com background migratório como Özil e Rüdiger.
No jogo seguinte contra a Noruega, a Federação Alemã de Futebol, em parceria com o Fã Clube Nationalmannschaft, não apenas condenou a vergonha de Praga, mas iniciou uma forte campanha “Contra violência, xenofobia, exclusão e pela diversidade, integração e inclusão“.
A campanha foi adotada pelos clubes da Bundesliga e acabou sendo um divisor de águas visando combater ativamente grupos de extrema direita infiltrados nas torcidas organizadas. Muitos clubes estão fortemente envolvidos em campanhas perenes contra o ideário neonazista como, por exemplo, Union Berlin, St. Pauli, Eintracht Frankfurt, Werder Bremen, Hertha Berlin, Bayern Munique e Borussia Dortmund.
Para o Borussia Dortmund, a batalha contra antissemitismo e racismo se tornou um desafio permanente. Na década de 1980, muitos torcedores da extrema direita se infiltraram no clube, inclusive um grupo denominado “Borussenfront“, que se tornou uma das gangues de hooligans mais violentas do país.
Visando neutralizar a influência destes grupelhos neonazistas, a diretoria do clube, com o apoio dos chamados “ultras” (movimento de torcidas organizadas mais à esquerda do espectro político), deu então o pontapé inicial para uma série de projetos de aprendizado e conscientização política voltados especialmente para os jovens.
Um destes projetos organiza viagens aos campos de concentração com o objetivo de esclarecer à juventude os horrores do regime nazista. Além de Auschwitz e Treblinka, um dos locais mais visitados é Zamosc (Polônia), para onde a maior parte dos judeus que viviam na época em Dortmund foi levada.
Em 1933, quando Adolf Hitler assumiu o poder, havia 4.500 judeus em Dortmund. Ao término da Segunda Guerra, apenas 100 sobreviveram. É o que mostra o Museu Steinwache, cuja parceria com o Borussia Dortmund ajuda a mostrar aos jovens torcedores auri-negros os horrores do Holocausto e como a comunidade judaica da cidade foi atingida.
O Bayern Munique também faz a sua parte. Afinal, na década de 20, teve como presidente Kurt Landauer, um membro eminente da comunidade judaica. Ele foi obrigado pelos nazistas a renunciar e deixar o clube, que acabou sendo estigmatizado pelo regime como “clube de judeus”.
Landauer sobreviveu ao campo de concentração de Dachau, conseguiu se refugiar na Suíça durante a guerra e voltou ao comando do Bayern em 1947. Sob sua gestão o clube se tornou extremamente profissional e adquiriu um terreno para a construção de seu centro de treinamento. Lançavam-se assim as bases para o bem-sucedido Bayern, o maior campeão alemão da história.
O legado de Kurt Landauer continua vivo na memória da agremiação. Atualmente, por encomenda da diretoria do clube, o artista plástico Karel Fron trabalha numa escultura em tamanho natural do dirigente. Ela será inaugurada em maio deste ano e ficará bem visível na sede do Bayern.
A torcida organizada Ultra “Schikeria”, aquela que lota a curva sul da Allianz Arena, tem papel importante na preservação da memória de Landauer assim como na luta contra o racismo e a xenofobia. Organiza anualmente uma copa antirracista e homenageia o seu presidente de honra com banners e faixas estendidos pelas arquibancadas do estádio. Em 2014, a “Schikeria” recebeu o prestigioso Julius Hirsch Award, por seus projetos contra o antissemitismo e a exclusão social.
Numa época em que, não apenas na Alemanha, mas também em outros países da Europa, se nota um preocupante crescimento deste nefasto ideário, é salutar perceber que são grupos de torcidas organizadas de grandes clubes de futebol, como Bayern e Dortmund, que erguem a sua voz pela convivência pacífica e contra a barbárie.
Leia também:
“Me desculpe, você é preto” – O futebol e o mito da democracia racial
O neonazismo de alguns jogadores da Croácia e a final da Copa do Mundo
A trajetória do negro e do racismo no futebol brasileiro
Chegou a hora de falar de homofobia no futebol
Gerd Wenzel, Deutsche Welle