O que dizem os documentos sobre o genocida louvado por Jair Bolsonaro
Reconhecido mundialmente como um dos maiores monstros da humanidade no século XX, Alfredo Stroessner foi louvado pelo presidente Jair Bolsonaro
Lúcio de Castro, Sportlight
O número mais frequente do repertório de Jair Bolsonaro deu um passo adiante na última terça-feira ao orgulhosamente exaltar o general paraguaio Alfredo Stroessner. Se genocidas e torturadores sempre tiveram lugar de honra em seus discursos, dessa vez foi além. Homenageou um pedófilo, corrupto, cúmplice e beneficiário do narcotráfico e do contrabando internacional. Além dos já citados genocida e torturador. Reconhecido mundialmente como um dos maiores monstros da humanidade no século XX. Chamado de “nosso general” pelo presidente brasileiro.
Ao discursar na fronteira do Paraguai, em cerimônia para nomeação da nova direção da hidrelétrica binacional de Itaipu, o presidente brasileiro, ladeado pelo homólogo vizinho, exaltou o ditador que comandou aquele país entre 1954 e 1989. Depois de afirmar que a usina só foi possível em razão da visão do “estadista” paraguaio, completou, com direito a pausa emocionada: “Então, aqui está minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner”.
A obra do “estadista” exaltado por Bolsonaro vai além dos 336 desaparecidos, 19.862 presos, 3.479 exilados e 20.000 torturadas, de acordo com a “Comissão da Verdade e Justiça” paraguaia. Milhões de dólares desviados em verba pública do longo governo, engordados substancialmente com o bilionário superfaturamento de Itaipu, a quatro mãos com os colegas militares brasileiros, são parte indissociável da biografia do general.
Benefícios com o contrabando e total cumplicidade com o narcotráfico, são algumas das faces menos conhecidas do personagem exaltado por Jair Bolsonaro. E uma média de quatro meninas entre 10 e 15 anos estupradas por mês, perfazendo cerca de 1.600 crianças violadas nos 35 anos de poder.
Os documentos do “Departamento de Estado dos Estados Unidos” vistos pela Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo (abaixo) não deixam dúvida. Em 30 de junho de 1972, John Irwin II, da Secretaria de Estado, em comunicação secreta com a embaixada de Assunção, demonstra ter perdido a paciência com a cumplicidade entre o ditador e o narcotráfico e recomenda medidas mais drásticas “à luz da falta de compromisso do governo paraguaio em cooperar com o combate ao narcotráfico”. Os documentos se queixam repetidamente da “falta de compromisso do governo paraguaio em cooperar no combate ao narcotráfico”.
Não adiantou. O general Alfredo Stroessner seguiu fazendo do país que governava um entreposto mundial de drogas, enriquecendo os militares de alta patente de suas forças armadas e a ele mesmo, mantendo assim o apoio dos militares de seu lado. Tampouco os Estados Unidos vieram a tomar maiores providências, preferindo manter o aliado político na região.
Além de fortuna oriunda do narcotráfico, Stroessner tornou-se um milionário com a corrupção generalizada em todos os setores do país que controlava como se fosse uma fazenda de sua propriedade. Mas o salto para a definitiva fortuna veio mesmo com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, obra binacional com o Brasil.
A corrupção de Itaipu entre os militares também foi binacional. Se o general paraguaio fez fortuna, no lado brasileiro os superfaturamentos e desvios na hidrelétrica causaram o assassinato de um descontente com a roubalheira generalizada.
O embaixador José Jobim, tendo servido no Paraguai anteriormente, esteve junto aos militares brasileiros para ajudar nas negociações bilaterais na década de 60. Viu o projeto ‘Sete Quedas’ de João Goulart, orçado em 1,3 bilhão de dólares, ser substituído por outro de 13 bilhões de dólares. (O preço final ficou em 30 bilhões de dólares).
Parte do superfaturamento binacional dos militares é contado por um deles. No livro “A Direita Explosiva no Brasil”, publicado em 1996, o Coronel Alberto Carlos Costa Fortunato faz o seguinte relato: “Conhecem a história sobre o aumento de 23% no custo de Itaipu? Pois o negócio foi o seguinte: lá pelas tantas, o governo paraguaio pretendeu (mais adequado seria dizer que condicionou) um aumento de 23%. Os representantes brasileiros articularam um conchavo e combinaram o seguinte: vocês topam aumentar em 46% (metade para cada um)”? E assim foi feito, conta o autor.
As obras começaram em 1975. Quatro anos depois, testemunho ocular e indignado da história do roubo binacional, o embaixador, já aposentado, foi a Brasília para a posse presidencial do general João Batista Figueiredo. Era um 15 de março de 1979.
A revolta do embaixador com o estado de roubalheira que vira na construção de Itaipu transbordou naquele dia. Avisou ao alto comando militar que estava escrevendo um livro denunciando toda a corrupção do entorno da hidrelétrica.
Sete dias depois de contar que iria denunciar a corrupção dos militares brasileiros, foi encontrado morto, pendurado pelo pescoço em corda de náilon num galho de pequena árvore, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Os pés, com as pernas curvadas, tocavam o chão, improvável cena para um suicídio. Numa cena semelhante a construída na morte do jornalista Vladimir Herzog quatro anos antes.
Sem abrir inquérito, o delegado Rui Dourado, que ajudara a montar o Ciex – Centro de Informações do Exterior, órgão de espionagem de então, concluiu que o embaixador José Jobim havia se suicidado. Os documentos amplamente colecionados durante anos sumiram da casa da mãe do embaixador.
Um ano depois do assassinato, o legista Nelson Caparelli emite laudo contestando. “O diagnóstico, pois, de enforcamento, é absolutamente indefensável”. Em 1983 a promotora Telma Musse manda que nova investigação seja feita. Em 1985, nos estertores da ditadura, a promotora reconheceu que houve homicídio, mas considerou o caso insolúvel e pediu o arquivamento.
Quarenta anos depois, em 21 de setembro de 2018, depois de incessante luta da filha Lygia, o estado brasileiro reconheceu oficialmente que o embaixador José Jobim foi sequestrado, torturado e morto pela ditadura militar e finalmente a causa da morte foi corrigida na certidão de óbito.
Em 5 de maio de 1984 entrou em operação a primeira unidade geradora de Itaipu. Um ano antes, a família Stroessner se valia de um mecanismo comum ao clã dos ditadores: escondia a fortuna amealhada em um paraíso fiscal.
De acordo com os documentos da Junta Comercial do Panamá obtidos pela Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo, em 25 de janeiro de 1983, Alfredo Stroessner Dominguez, Graciela Stroessner Mora e Diego Dominguez Stroessner, filha e netos do ditador, abriram a Filadelfia S.A.
Era um tempo onde ditadores e descendentes não tinham a preocupação de omitir os nomes nas offshores e contas que abriam em paraísos fiscais. Com tecnologia, legislação e mecanismos de busca praticamente inexistentes, tinham o Panamá como paraíso predileto para branquear o capital, que na maior parte das vezes ia depois para a Suíça. Muito antes de adventos como os Panama Papers, que mostraram a tais corruptos ser necessário não abrir negócios de branqueamento de capital no próprio nome.
Na década de 90, apeado do poder e já no exílio brasileiro, com medo de que ocorresse o mesmo fato do Chile, onde bens de outro general corrupto, Augusto Pinochet foram expropriados pelo estado, o general paraguaio transferiu seus bens para os netos. O fiscal da receita daquele país, Edgar Sánchez, estruturou a linha de sucessão percorrida pelos bens do ditador, muitos deles sendo vendidos para empresas de fachadas depois recompradas pela família, mas os bens não foram recuperados. O Brasil aparece com destaque na linha sucessória de sede dos bens do clã obtidos com corrupção.
E é exatamente em um dia muito representativo dos laços entre o clã Stroessner, a corrupção e o Brasil que o ditador vem a falecer.
No dia 16 de agosto de 2006, a Polícia Federal desencadeia aquela até então tida como sua maior ação: a “Operação Dilúvio”, que desmantelou o maior esquema de fraudes de comércio exterior no Brasil. O principal líder do esquema, o empresário Marco Antônio Mansur, era casado com a filha do ditador, Graciela Stroessner. Os netos, um homônimo e o outro, Emmanuel Emilio Mansur Stroessner, também estavam vinculados ao negócio. No momento exato em que a operação era desencadeada e seus parentes presos, o ditador morre, com 93 anos.
Impune por suas décadas de corrupção, contrabando, apoio ao narcotráfico, tortura, genocídio. E o terror que levou a milhares de jovens paraguaias que padeceram vítimas da pedofilia do tirano.
Para Jair Bolsonaro, um “estadista”, “nosso general”. Para muitas dessas vítimas, incluindo as cerca de 1.600 meninas entre 10 e 15 anos violadas nos 35 anos de poder de Alfredo Stroessner, foi mesmo “La Bestia Carnicera”.
No caso do Paraguai, um fato diferencia a ditadura ali ocorrida de todas as demais do continente: a existência de um relatório oficial da barbárie. Em dezembro de 1992, já nas vésperas do natal, apenas três anos após o fim da ditadura de Stroessner, foi encontrado em uma desimportante delegacia policial na cidade remota de Lambare, a sexta em importância do país, o chamado “Libro Negro de la dictadura de Stroessner”. Uma parte estava ali, trancafiada a cadeado. Outra enterrada próxima. Nunca ninguém entendeu como não foram destruídos tais registros, assim como as demais ditaduras do continente. Boa parte dos registros da “Operação Condor” estavam ali. Dos massacres e genocídios do general. De toda a barbárie.
Mais provavelmente o mais pungente dos relatos não esteja naquelas páginas.
O relato de Julia Ozorio Gamecho.
Sobreviveu para contar.
Numa era em que tortura e genocídio são aplaudidos, é possível que o relato dos 35 anos de estupro de meninas violadas em sua mais tenra infância seja capaz de dar conta da barbárie de um dos ídolos do presidente do Brasil.
Sequestrada da casa dos pais aos 13 anos e levada ao ditador, como outras tantas. Depois de perder a virgindade, foi “ofertada” por Stroessner ao coronel Miers, de quem foi escrava sexual até os 15. Aos 15, Stroessner e seus asseclas consideravam as meninas velhas demais e outras eram capturadas, como está nos relatos feitos ao Departamento de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça.
Anos depois, Julia Ozorio Gamecho conseguiu vencer seus fantasmas e escreveu “Uma rosa e mil soldados”, seu relato da barbárie, onde descreve as “bestas carniceiras” como homens que “saciavam sua luxúria sem limites com sede de possuir aos despossuídos”.
Seu relato é um dos mais duros testemunhos. Para ser lido e compartilhado até que ninguém mais enalteça uma besta carniceira capaz de tamanha barbárie. Para que ninguém acredite que foi uma ficção, como ela mesmo alerta, em meio as feridas que ainda ardem, vivendo nas próprias sombras. Vivendo tantos anos depois, como ela mesmo diz, “uma eterna noite”.
“Mãe terra, permita-me contar-lê minha história a seus filhos antes que me vá com minha eterna noite. Sobre seu úmido ventre, minha vida começou como um pesadelo. Por desgraça, foi uma triste realidade a que me tocou viver. Os que não passaram pelas mãos duras dos ditadores pronunciam essas palavras, dizem que foram vorazes ou algum comentário a mais. Como explicar com palavras que não foi ficção?”.