Racismo no restaurante Nono Paollo abre feridas e deixa profundas lições
O menino negro era o único "ponto escuro" entre os clientes do restaurante e para esse "ponto escuro" há lugares socialmente predeterminados dos quais restaurantes de áreas consideradas "nobres" da cidade de São Paulo estão excluídos
Há coisas essenciais sobre o racismo no episódio ocorrido no restaurante Nonno Paolo com um menino negro.
Eu não estava lá, mas pela reação de indignação da mãe da criança e seus amigos é lícito supor que a criança em questão, seja amada e bem cuidada, portanto, não estava suja e maltrapilha como costumam estar as crianças de rua que encontramos cotidianamente na cidade de São Paulo.
Então, a “confusão” de quem a tomou, em princípio, por mais uma criança pedinte se deveu ao único traço com o qual a define a mentalidade racista: a sua negritude. Presumivelmente, o menino negro era o único “ponto escuro” entre os clientes do restaurante e para esse “ponto escuro” há lugares socialmente predeterminados dos quais restaurantes de áreas consideradas “nobres” da cidade de São Paulo estão excluídos.
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Para o racista a negritude chega sempre na frente dos signos de prestígio social. Por isso Januário Alves de Santana foi brutalmente espancado por não ser admissível para os seguranças do supermercado Carrefour que ele fosse proprietário de um Ecosport dentro do qual se encontrava no estacionamento a espera de sua mulher que realizava compras. Por isso a cantora Thalma de Freitas foi arbitrariamente revistada e levada em camburão para uma delegacia por ser considerada suspeita enquanto, como ela disse na ocasião, “porque a loura que estava sendo revistada antes de mim não veio para cá?”. Por isso Seu Jorge além de múltiplas humilhações, sofridas na Itália foi impedido, em dia de frio europeu, de entrar em uma loja com o carrinho no qual estava a sua filha, “confundido” como um monte de lixo. São apenas alguns exemplos de uma lista interminável de situações em que são endereçadas para pessoas negras mensagens que tem um duplo sentido: reiterar o lugar social subalterno da negritude bem como desencorajar os negros a ousarem sair dos lugares que desde a abolição lhes foi destinado: as sarjetas do país.
O episódio indica portanto, que uma criança, em sendo negra e, por consequência “natural” , pobre e pedinte, pode, “legitimamente”, ser atirada à rua, sem cerimônia. É, devolvê-la ao seu devido lugar. Indica, ademais, que essa criança não desperta o sentimento de proteção (que devemos a qualquer criança) em relação aos perigos das ruas, pois ela é, para eles, uma das representações do que torna as ruas um perigo!
Essa criança, por ser negra, também não é abrigada pela compaixão, pois, há quem vê nelas a “semente do mal”, como o fez certa vez, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, defendendo a descriminalização do aborto para mulheres faveladas, pois seus úteros seriam “fábricas de marginais.”
Há os que defendem a atitude do funcionário que expulsou a criança do restaurante sob o argumento de a que região em que ele está localizado costuma ser assediada por crianças pedintes que aborrecem a clientela dos estabelecimentos comerciais. Na ausência do poder público para dar destino digno a essas crianças, cada um age de acordo com sua consciência, via de regra, expulsando-as. Outros dizem que a culpa pelo ocorrido é dos pais que deixaram a criança sozinha na mesa. O subtexto desse discurso é revelador e “pedagógico”: pais de crianças negras deveriam saber que elas podem ser expulsas de restaurantes enquanto eles se servem porque elas são consideradas pedintes, ou menor infrator! O erro não estaria no rótulo ou estigma e sim nos desavisados que não compreendem esse código social perverso!
Os que assim pensam pertencem à mesma tribo de indignados que consideram que espaços até então privativos de classes sociais mais abastadas começam a serem tomados de “assalto” por uma gente “diferenciada”, fazendo aeroportos parecerem rodoviárias ou praças de alimentação. Aqueles que não se sentem incomodados com a desigualdade e a injustiça social. Aqueles que reclamam que agora “tudo é racismo” porque, para eles, o politicamente correto é dizer que nada é racismo.
Esses são, enfim, aqueles que condenam o Estatuto da Criança e do Adolescente, que advogam pela redução da maioridade penal, que revogariam, se pudessem, o inciso constitucional que define o racismo como crime inafiançável e imprescritível ou a lei Caó que tipifica e estabelece as penalidades por atos de discriminação; conquistas da cidadania brasileira engendradas por aqueles que recusam as falácias de igualdade de direitos e oportunidades em nosso país.
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O aumento da inclusão social ocorrida nos últimos anos está produzindo deslocamentos numa ordem social naturalizada na qual cada um “sabia o seu lugar” , o fundamento de nossa “democracia racial’. O desconforto que esse deslocamento provoca faz com que os atos de racismo estejam se tornando cada vez mais frequentes e virulentos.
Atenção gente negra! Eles mudaram! O mito da democracia racial está revelando, sem pejo, a sua verdadeira face. Então, é hora de se conceber e empreender novas estratégias de luta!
Sueli Carneiro, Geledes