O que duas crianças hospitalizadas ensinam aos adultos sobre comunicação
Colocar-se no lugar do outro não é só uma questão de empatia. Muitas vezes somos incapazes de ouvir o que não queremos, de discordar sem gritar, de opinar sem ironizar o outro
Em um dos quartos do Instituto da Criança, os palhaços encontram Alice*, de 14 anos. Sentada em sua cama, Alice se ocupa de desenhar flores coloridas e ouvir música com seus fones de ouvido.
Apesar de todas as investidas dos palhaços, que brincam com a criança do leito ao lado e procuram estabelecer uma comunicação com Alice, ela permanece indiferente. Tentam uma música: Dr. Cavaco puxa seu cavaquinho e Dr. Chabilson acompanha. Nada.
Quando estão de saída, a mãe de Alice chega. Para sua surpresa, veem mãe e filha conversarem através de Libras – a Língua Brasileira de Sinais. A menina tem deficiência auditiva. Tudo faz sentido.
Logo depois da descoberta, os palhaços propõem uma interação sem palavras, utilizando o lápis colorido de Alice como varinha mágica. A menina ri, se empolga e se levanta da cama, andando atrás dos palhaços para enfeitiçá-los com seu lápis mágico!
Depois da brincadeira, ainda tem uma coisa que parece não fazer sentido: Alice continua com os fones de ouvido. Recorrem à sua mãe.
– Apesar da deficiência, ela gosta da vibração que o som emite e consegue absorver o ritmo. Ela acaba ouvindo de outra maneira!, nos conta.
Incrédulo e ao mesmo tempo impressionado, Dr. Cavaco pede que Alice coloque uma de suas mãos no cavaquinho. Enquanto a música sai pelas cordas, ela prontamente abre um sorriso, olha para a mãe e diz, através dos sinais:
– Eu estou sentindo, mãe! Estou sentindo!
Contente, a mãe se põe a mexer o corpo ao som do cavaquinho e todos acabam dançam juntos naquele quarto.
Em um hospital público de Recife está o Gui*, de 3 anos, que desde o nascimento mora em um leito da UTI e convive com as pessoas que trabalham ou que passam por ali. Impedido de falar, ao menos da forma convencional, Gui tem seus próprios códigos pra estabelecer uma conversa com a Dra. Baju: uma piscada de olhos para “não” e duas piscadas para “sim”.
Gui, você quer brincar? Duas piscadas. Gui, posso pegar seu caminhãozinho emprestado? Uma piscada.
Lá no fundo dos olhos de um azul celestial, os palhaços percebem que o verdadeiro diálogo acontece para além de algumas piscadas. Não por palavras, não por gestos, mas, verdadeiramente, pelo olhar.
Colocar-se no lugar do outro não é só uma questão de empatia. É um caminho para uma comunicação bem estabelecida, com base em entender a necessidade do outro e agir para suprir.
Fora do hospital, sem a máscara afetuosa do palhaço e a companhia de crianças, enfrentamos encontros semelhantes. Somos adultos incapazes de ouvir o que não queremos, de discordar sem gritar, de expor a opinião sem ironizar o outro. Somos incapazes de dar uma chance ao diálogo e isso acontece há algum tempo. Parece que estamos enfermos, e dói em todos nós, claro.
Está tudo bem se, durante a conversa, o Gui preferir não emprestar o brinquedo. Também está tudo certo se, depois de ponderarmos juntos, chegarmos a ideias completamente diferentes do que é sucesso ou de qual posição política a sociedade se beneficiaria mais. Pelo menos a gente deu uma chance ao diálogo.
Há mais de 27 anos atuando em hospitais, tem coisas que só compreendemos com o distanciamento histórico. Humanização, por exemplo, era algo fora do nosso vocabulário em 1991, quando Doutores da Alegria nasceu. Talvez daqui a algum tempo possamos olhar para este momento em que vivemos e enxergar nossos próprios erros e acertos, enxergar a velocidade com que nossas vidas e nossas relações se transformaram com o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação e, quem sabe, aprender com as dores e as feridas que ficaram.
Até lá, Alice e Gui já estarão grandes e terão a chance de conviver em uma sociedade mais harmônica e afetuosa.
P.S. Nomes das crianças foram trocados para preservar suas identidades