A cultura da banalização da vida
Quem quer andar armado quer intimidar justamente aqueles que, diferente dos bandidos, não estão armados
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Meu aluno de catorze anos estava extasiado conversando comigo. Questionou-me se eu estava sabendo: Bolsonaro liberou as armas mais facilmente. Agora, ele me contava empolgado, o tio dele, caminhoneiro, iria poder andar com duas “doze” na boleia.
Ele largou a atividade sobre Mesopotâmia de lado e continuou a me deixar a par do assunto, já que eu fingia ignorância e demonstrava interesse (ao contrário dele com o trabalho avaliativo). Disse-me que não sabia explicar direito, mas agora, com uma licença só, o cara ia poder ter um monte de armas. Quem coleciona, ele contou, ia poder andar armado por aí.
Com essa idade e ainda no sexto ano, isso que ele agora fazia, deixar a avaliação de lado pra tratar de outros assuntos, é uma constante na sua vida escolar. De modo que ele prosseguiu, buscando em mim alguma cumplicidade. Questionou minha opinião. Será que a sua arma de chumbinho machucava mais do que uma de não sei qual calibre? Perguntou e emendou brincando que tava afim de trazê-la à aula, fazer uns desafetos saltitar. Ou quem sabe uns professores, prosseguiu na brincadeira o de trás, que pelo menos já tinha terminado seu afazer.
Apesar de não estar bem informado acerca do decreto presidencial que facilitará a posse e o porte de armas, sei que o guri estava equivocado e exagerando na sua noção de mudanças. Mas me espantou como festejava com a facilitação de acesso às armas. É como se Bolsonaro tivesse facilitado o acesso à CNH (na verdade ele pretende dificultar a perda dela pelos maus motoristas), sonho da maioria dos adolescentes.
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É a isso que me refiro. Por boa-fé posso crer que os defensores do acesso às armas pela população “de bem” (seja lá o que isso for) estão de fato preocupados com a segurança da população. Mas a discussão causou um frenesi tal nas pessoas, que, ouso dizer, não só meu aluno de péssimas notas mudou seu inconsciente.
O imaginário coletivo das pessoas, que é inconsciente, já vislumbra a possibilidade de se andar armado por aí. Meu aluno, que ainda carrega consigo resquícios de uma recente puerilidade, como a ingênua sinceridade, foi muito franco dizendo o que sentia, o que queria, sentir-se poderoso carregando na cintura (ou a tiracolo, caso duma doze) um instrumento capaz de matar ou, no mínimo, intimidar colegas que lhe caçoaram no dia anterior.
Conscientemente os defensores do armamento até podem estar pensando na sua proteção e na dos seus. Mas no seu íntimo, em nada diferem do guri de catorze que quer se sentir superior, intimidador.
E antes que me digam que sim, querem intimidar os criminosos, me antecipo e digo que não. Primeiro porque os ladrões não se intimidam facilmente com isso, pois agem com planejamento prévio e efeito surpresa; e segundo e aliás, a arma será mais um valioso item a ser roubado.
Quem quer andar armado quer intimidar justamente aqueles que, diferente dos bandidos, não estão armados. Um desafeto do trabalho, na vizinhança, no trânsito… ou, se o filho menor pegar escondido a arma do pai, o colega que brigou por besteira na aula de Educação Física.
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*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha” e 1º Secretário do Simpo”