Jovem negro é mantido preso mesmo após vítima inocentá-lo
"Liberdade de pretos tem pouco valor no Brasil". Vítima inocenta suspeito, mas juíza ignora e mantém jovem negro preso sem provas. Principal testemunha admitiu que acusou a pessoa errada
Arthur Stabile, Ponte Jornalismo
O engano que levou à prisão do vendedor Heverton Enrique Siqueira, 20 anos, durou apenas um dia, mas a Justiça continua a mantê-lo preso, agora sem provas, há quase um mês.
O jovem negro foi detido pela Polícia Militar em 10 de outubro, pelo roubo de um carro em Sapopemba, zona leste da cidade de São Paulo, baseado em um reconhecimento pela vítima do crime feito no 69º DP (Teotônio Vilela). A própria vítima, um motorista de aplicativo, conta que no dia seguinte viu os ladrões que o haviam assaltado na rua e percebeu que havia identificado a pessoa errada. Tentou duas vezes mudar seu depoimento na delegacia, mas os policiais civis se recusaram a ouvi-lo. O motorista, então, escreveu em uma carta reconhecendo a inocência de Heverton, que foi anexada ao processo e ignorada tanto pelo Ministério Público quanto pela Justiça.
A juíza Teresa de Almeida Ribeiro Magalhães recusou um pedido de habeas corpus impetrado pela defesa para libertar Heverton, alegando que a mudança de posicionamento da principal testemunha do crime não trouxe qualquer “alteração fática ou jurídica”. Mantendo o trâmite esperado, a vítima do roubo só será formalmente ouvida pela Justiça numa audiência marcada para 18 de novembro, quando Heverton completará 39 dias preso.
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O motorista de aplicativo estava na rua Manoel França dos Santos, em Sapopemba, quando seu carro, modelo Renault Logan, e três celulares foram levados por dois homens. Após a Polícia Militar apresentar Heverton e um jovem de 17 anos, V., como suspeitos, ele os reconheceu.
Na hora do assalto, Heverton estava em sua casa, na rua Manuel do Patrocínio, que fica a 1,6 quilômetro da rua onde a vítima foi roubada. Era 8h10 da manhã quando conversava com a namorada por telefone, após passar por uma crise de asma durante a noite. Uma de suas irmãs participou da conversa. Em seguida, ela foi lavar roupa e ele saiu para fumar em uma praça próxima, onde estava com um amigo. Os dois foram abordados pela PM e, até hoje, estão respondendo pelo crime que não cometeram.
Há prints de celular que comprovam a conversa em vídeo feita pelo jovem com sua namorada, além de o local ficar distante 24 minutos andando de onde o carro foi roubado, conforme informações do Google Maps. “A ligação em vídeo foi feita às 8h09, conversamos com ela até 8h19 e ele desligou”, relembra Leyliane Santos, 24 anos, irmã de Heverton, que meia hroa depois veria o irmão sendo preso. “Disseram que o menino era acusado de um roubo e levariam meu irmão para averiguação. Ele não estava com nada, nem celular. Na delegacia, o policial disse que a vítima tinha reconhecido”, conta.
Mais importante do que os registros e a memória dos parentes é a fala da vítima, que garante ter visto na mesma região os verdadeiros criminosos no dia seguinte ao roubo. O motorista foi à delegacia para mudar seu depoimento, em 11 de outubro, mas lá os policiais civis disseram que o delegado Daniel Bruno Colombino, responsável pelo inquérito, não estava e ninguém poderia atendê-lo.
Sem sucesso com a Polícia Civil, o homem escreveu uma carta de próprio punho, reconheceu firma em cartório e entregou para a família buscar justiça. Até agora, algo que não conseguiu. “Confesso que, como foi tudo muito rápido entre o roubo e a elucidação do caso, coisa de uns 30 a 40 minutos, eu ainda me encontrava muito abalado e muito nervoso. Tendo em vista que os reconheci […] sem saber ao certo o que eu estava fazendo”, escreveu na carta.
Passado quase um mês, a vítima voltou a procurar o representante da Polícia Civil no 69º DP. Dessa vez, o homem estava junto do advogado de Heverton, Ricardo André de Souza, mas a resposta foi a mesma: “A explicação foi somente que o delegado não estava”, conta o defensor. A defesa promete entrar com novo pedido de habeas corpus, dessa vez argumentando que a Polícia Civil não cumpriu sua função de colher a prova que pode inocentar Heverton.
Para Justiça, erro da vítima não é ‘alteração fática’
A falta dessa prova no processo fez com que o MPE (Ministério Público Estadual) denunciasse Heverton por roubo e corrupção de menores. A Justiça determinou sua prisão preventiva e o adolescente V. foi apreendido e levado à Fundação Casa. Na denúncia, a promotora Solange Aparecida Sibinel afirma que o fato de a testemunha reconhecer os dois “sem sombra de dúvidas” como autores do roubo seria indício suficiente para incriminá-los. A promotora não mudou seu posicionamento mesmo após a defesa anexar aos autos a carta do motorista.
O mesmo aconteceu com a juíza Teresa de Almeida Ribeiro Magalhães, que decidiu manter a prisão de Heverton após seu advogado entrar com habeas corpus pedindo sua absolvição sumária e liberdade imediata. No pedido, o advogado incluiu a carta de próprio punho assinada e reconhecida em cartório pela vítima do roubo. Para a magistrada, uma mudança que de nada interferia no processo.
“Por fim, indefiro o pedido de revogação da prisão preventiva do acusado Heverton, reiterando-se os argumentos e fundamentos expendidos recentemente nos autos quanto à matéria, sem que tenha ocorrido alteração fática ou jurídica no feito”, sustenta a juíza.
“Estou muito angustiada. Pensei que com a carta iria soltar ele, mas a Justiça do Brasil é muito falha, infelizmente”, lamenta-se Layliane, a outra irmã de Heverton.
O jovem tinha acabado de começar um trabalho autônomo. Amigos compraram roupas na rua 25 de Março e ele revendia na região de Sapopemba. Ele ainda previa começar um serviço em um supermercado próximo de casa, ocupação que considerava boa para quem está prestes a concluir o 3º ano do ensino médio. Era pouco, mas um começo para quem não queria sair de casa e estava diagnosticado com depressão. Heverton mora com a irmã do meio e foi criado por familiares pelo fato da mãe sofrer com dependência química. Há meses, deixou a casa de uma tia, onde morava, para viver com Leyliane, que imaginou ser melhor para ele para conviver com os sobrinhos. “Criança anima, né?!”, explica, sendo complementada por Laylaine. “Ele tem depressão, toma remédio. Tinha acabado de começar um novo tratamento, antidepressivo”, conta.
O temor da família é que a prisão retome o momento crítico da doença, quando ele não se animava com as coisas e ficava apenas no seu canto. A mãe do jovem, Jorgia Cristine Siqueira, se emociona ao falar do filho. Ela conta que Heverton é quem mais a dava suporte nas fases difíceis que passou com o vício em crack. “Fiz tanta coisa errada e não passei por isso. Meu filho, que nunca fez nada, está passando? Parece que estou vendo um filme”, diz. Ela garante que a gravidez do jovem a fez largar o crack. “O Heverton sempre esteve do meu lado, quando tive crises de pânico, me ajudava. Quando chega de noite eu choro muito, era a hora que eu falava com ele. Dói muito. Eu mudei por ele, ele me tirou das drogas. Quando eu soube que estava grávida, eu parei de traficar, de roubar”, explica a mãe.
‘Liberdade de pretos tem pouco valor no Brasil’
As prisões de Heverton e V. são vistas como um absurdo pelo advogado Cristiano Maronna, ex-presidente e hoje conselheiro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Para ele, a carta da vítima por si só é capaz de garantir a liberdade de ambos. “Se a própria vítima reconhece que errou, teria que ser libertado imediatamente. Esperar até 18 de novembro para algo que já pode ser identificado agora?! É a prova maior de que a liberdade, especialmente dos pretos, tem muito pouco valor no Brasil. É mais um elemento que destaca o racismo institucional existe no Judiciário”, critica.
Para o advogado criminalista, este caso evidencia um abuso cometido de forma recorrente pela Justiça brasileira. “Olhando de maneira mais geral, infelizmente temos um sistema de Justiça que, no lugar de garantir direitos, trabalha para que direitos sejam violados, principalmente da população mais vulnerável. Esse rapaz é negro, então temos uma questão racial”, analisa Maronna. “Até um tempo atrás uma juíza escreveu em sentença que o réu não tinha perfil de bandido por ser loiro e ter olhos claros. Temos juízes brancos que julgam réus negros”, prossegue.
Na avaliação de Maronna, o reconhecimento pessoal apresenta falhas, o que fica nítido nesse caso. “A pessoa que sofre a violência, um crime como roubo, pode confundir porque nessa hora está nervosa, pode eventualmente não identificar as características corretas das pessoas. Por isso tem regras no CP: tem que ser cinco pessoas de características físicas próximas”, detalha, citando um procedimento previsto no Código de Processo Penal que não é seguido pelas polícias em reconhecimentos. “É comum o falso reconhecimento, há inúmeros casos baseados em falsos reconhecimentos no país”.
O balanço feito pelo ex-presidente do IBCCRIM é de que um habeas corpus seria suficiente para a soltura de Heverton e V.. E vai além: “O rapaz tem direito de indenização do estado”.