Professor de matemática usa método Paulo Freire em sala de aula e emociona
"Coisas que me fazem chorar". Relato de professor de matemática que usou método Paulo Freire em sala de aula viraliza nas redes sociais
O nome de Paulo Freire voltou ao topo das discussões sobre educação no Brasil após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chamar o educador de “energúmeno” no início da semana.
No Senado Federal, um requerimento foi aprovado para realizar sessão especial em homenagem a Paulo Freire, morto em maio de 1997. Até mesmo o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), assinou o requerimento.
A previsão é de que a sessão no plenário do Senado Federal seja realizada em 4 de maio de 2020, mês em que a morte de Freire completará 23 anos.
Nas redes sociais, um relato do professor e economista Ricky Cifuentes viralizou. Confira abaixo, em 12 pontos:
1. No meio do semestre, depois de aplicar as primeiras provas, vi que três alunos foram muito mal em uma prova que, basicamente, demandava aritmética e um pouco de álgebra linear. A média da sala foi 7,8, mas esses três alunos ficaram com notas abaixo de 2,5. +
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
2. Durante a correção da prova, percebi que um deles estava muito agitado, enquanto os outros dois estavam desanimados demais. Meio que jogando a toalha. Um deles me disso que nada que não conseguia se dar bem com nada que tivesse matemática. +
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
3. O que estava agitadão ficou até o final da aula. Quando todos saíram, ele veio me dizer que não estava entendendo absolutamente nada sobre a matéria. Sentei com ele pra resolver, passo a passo, uma questão. Fizemos tudo pausadamente. +
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
4. Em um momento, mostrei pra ele que uma expressão numérica enorme poderia ser substituído por uma simples regra de três. Ele sorriu desconcertado. Eu perguntei de um jeito um tanto encabulado se ele sabia o que era regra de três. E o rapaz começou a chorar! Sério! +
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
5. Ele nunca teve acesso a ensino de qualidade e os pais não tem fundamental completo. Ele não tinha nenhum apoio pra aprender. O marmanjo chorando pq não sabia fazer uma regra de três me quebrou. Na aula seguinte, apliquei um teste nos três e todos tinham dificuldades básicas.
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
6. No teste captei informações sobre a ocupação deles: um trabalhava em uma empresa de transportes, o outro na quitanda da família e o outro em uma oficina mecânica. Então, apliquei a matemática no ambiente deles. Assim eles aplicariam o conhecimento no cotidiano deles. +
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
7. Deu muito certo. O mecânico entendeu proporções com as trocas de óleo, o transportador aplicou álgebra no cálculo de distâncias e o quitandeiro entendeu melhor a lógica de fornecimento. E todos eles conseguiram ser aprovados!
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8. Genial, né? Usar elementos da realidade dos trabalhadores para gerar conhecimento. Sabe quem desenvolveu essa ideia?! Ele: PAULO FREIRE! É basicamente pra isso que serve todo o pensamento dele! O tal método Paulo Freire foi eficiente na alfabetização de adultos por isso.
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
9. Agora vem um boçal e orgulhoso de sua ignorância chamar Paulo Freire de energúmeno!? Duvido que esse boçal tenha lido um livro dele. Se quer criticar Paulo Freire, beleza, mas faça dentro de bases científicas: apresente dados que se relacionem a premissas e conclusões.
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
10. Eles não sabem debater cientificamente então tem que ficar usando lacrações e xingamentos pro conjunto de ignorantes aplaudirem. Não questionam as premissas e conclusões do trabalho dele pq simplesmente não leram. Não entenderam.
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
11. Todos os pesquisadores, de direita, esquerda ou centro, podem e devem ser questionados. Mas isso ocorre dentro de um método.
Senão, é só choradeira de gente frustrada da quinta série.— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
12. Como o verdadeiro energúmeno gosta de repetir: conhecerei a verdade e a verdade vos libertará. Então busquem a verdade por si. Estudem! Critiquem e sejam abertos à crítica. Não fiquem com a opinião do político, do padre, do pastor, do professor e muito mesmo a com a minha.
— R.Cifuentes (@rickycifuentes) December 16, 2019
O relato do professor repercutiu. “Coisas que me fazem chorar”, publicou a professora universitária Talita Tavares. “Obrigada e eu chorei aqui. Nunca entendi matemática porque nunca nenhum dos exemplos fez sentido pra mim”, escreveu Ariély.
“Parabéns pela sensibilidade e pelo interesse. O método do Paulo Freire é usado em uma potência tal qual a Alemanha para escolarização de imigrantes e no tratamento de Alzheimer. Então a gente sabe quem é o energúmeno na história”, comentou Pádua.
“Jamais havia visto duas perfeições juntas. Explicação sobre o método de Paulo Freire, sua dedicação e a forma perfeita de trazer esses alunos para perto de si sem que se sentissem inferiores. Parabéns mestre, você tem como profissão o sacerdócio de tirar as pessoas da ignorância”, afirmou Dantas.
Paulo Freire
Para o professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Moacir Gadotti, é preciso rigor para falar de Paulo Freire. Ele relembra as incontáveis publicações e referências ao educador, e completa: “ele tem um lugar no mundo garantido pelo reconhecimento do seu trabalho, com contribuições na educação, nas artes, nas ciências e até na engenharia”.
Por isso, avaliá-lo somente como educador não basta, opina o professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Miguel Arroyo. “A radicalidade dele tem que ser entendida dentro de nossa história”, garante. Daí a necessidade de se reivindicar o lugar de Paulo Freire. “Sobretudo por parte dos educadores populares que assumem, para além de suas ideias, as concepções de mundo que estão por trás delas”, reflete Gadotti.
O rechaço a Paulo Freire não é novidade e tampouco recente. Tem início já nos fins dos anos 50 e começo da década de 60, momento em que o educador idealiza a educação popular e realiza as primeiras iniciativas de conscientização política do povo, em nome da emancipação social, cultural e política das classes sociais excluídas e oprimidas.
Sua metodologia dialógica foi considerada perigosamente subversiva pelo regime militar, o que rendeu a Freire o exílio. O educador, entretanto, não deixou de produzir e nesse período escreveu algumas de suas principais obras, dentre elas, a Pedagogia do Oprimido — único livro brasileiro a aparecer na lista dos 100 títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa.