Xenofobia e histeria tomam conta da Itália após surto de coronavírus
Propostas xenófobas, acusações de histeria, informações contraditórias e disputas mesquinhas: Itália enfrenta uso político do coronavírus após epidemia
BBC
A crise do novo coronavírus na Itália, iniciada há uma semana, provocou um acirramento das tensões entre os italianos, o que inflamou a classe política e, ao mesmo tempo, foi alimentado por ela.
Declarações xenófobas, pedidos de fechamento das fronteiras, restrições de direitos dos imigrantes e informações desencontradas, quando não contraditórias, ajudaram a intensificar o medo no país, o que alarmou a Europa e trouxe uma série de notícias negativas para a economia.
Até o momento, a Itália é o quarto país com o maior número de infectados com o novo vírus, atrás de China, Coreia do Sul e Japão: foram 821 casos, com 21 mortes relacionadas à doença. É, de longe, o país europeu mais afetado.
O enfrentamento ao coronavírus tem se mostrado um grande desafio para os líderes políticos mundo afora, desde a China, epicentro dos casos, às democracias liberais como a Itália.
Nesta sexta-feira (28), em sua coluna no jornal “La Repubblica”, o jornalista Massimo Giannini escreveu que os “gestos e atos sediciosos” dos políticos, “que nada têm a ver com dignidade e responsabilidade, amplificam a desordem institucional”. “Refletem um vício transversal: o uso político do vírus, que contamina centro e periferia”.
Continua Giannini: “Assim a política produziu um dano duplo, a si mesma e à comunidade: se mostrou frágil e pouco crível seja quando chamou o lobo de lobo, seja quando sussurrou que o lobo não morde”.
No país, a crise provocou um frenesi na última semana, afetando direta ou indiretamente cerca de 27 milhões de pessoas (quase metade da população), fechando escolas, teatros, cinemas, o comércio e isolando mais de dez municípios — milhares de pessoas foram forçadas a ficar em casa.
Xenofobia
A epidemia se espalhou especialmente no norte do país, com a maioria dos casos registrados na Lombardia e no Vêneto, regiões administradas pela Liga, o partido de extrema-direita liderado pelo senador Matteo Salvini, atualmente o político mais popular da Itália e notório pelas declarações xenófobas e contra os imigrantes.
Nestes dias, ele e aliados aproveitaram o medo para explorar o tema. Salvini pediu o urgente fechamento das fronteiras e que imigrantes provenientes da África fossem impedidos de entrar no país pelo Mediterrâneo — o continente africano, até agora, registrou três casos do novo vírus, dos quais um deles é um italiano diagnosticado na Nigéria após retornar de Milão; o primeiro caso confirmado no Brasil também tem origem na Itália, país visitado recentemente pelo brasileiro infectado.
Salvini ainda atacou o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, pedindo a sua renúncia por não conseguir proteger o país. Por fim, ele aproveitou a epidemia para sugerir a formação de um novo governo “de unidade nacional”, com a participação de seu partido.
A aliança, segundo disse, duraria “uns oito meses”, até a realização de novas eleições, proposta rechaçada por expoentes do Executivo e até por aliados da direita.
Outros políticos da Liga seguiram o tom alarmista e discriminatório. O governador da Lombardia, Attilio Fontana, apareceu na TV usando uma máscara (ele estava no escritório, sozinho) para anunciar que entraria em quarentena voluntária, já que uma auxiliar havia sido diagnosticada com o vírus. Sua postura rendeu críticas por alimentar ainda mais a histeria popular.
Já o colega Luca Zaia, governador do Vêneto, recorreu a uma generalização preconceituosa contra os chineses para comentar o assunto. “A higiene que há no nosso povo, a formação cultural que temos, de tomar banho, lavar as mãos, inclusive o cuidado com a alimentação, isso faz diferença. A China pagou um grande preço por essa epidemia porque vimos inclusive chineses comerem ratos vivos e outras coisas do gênero”.
Também filiado à Liga, o governador da região de Friuli Venezia Giulia, Massimiliano Fedriga, propôs que qualquer imigrante irregular que passasse por lá fosse colocado em quarentena. Em entrevista à BBC News Brasil, ele defendeu as medidas, mas reconhece “falhas”.
“Fizemos o certo ao impor medidas restritivas para proteger a população e, agora, afrouxar um pouco a situação. Neste momento há muito mais segurança em toda a Itália”, justificou-se.
Vizinha ao Vêneto, sua região faz fronteira com a Áustria e a Eslovênia e ainda não registrou nenhum caso de coronavírus. Fedriga minimiza as declarações dos colegas governadores da Liga, dizendo que eles “deram bons exemplos de comportamento para tutelar o outro e proteger o sistema social”. Ele afirma que “não é hora para mais polêmica”, mas acrescenta que “a incerteza administrativa foi causada pelo governo nacional”.
Autolesão
A oposição de extrema-direita fustiga o Executivo, mas ele também cometeu uma série de erros, afirma o cientista político Alessandro Campi.
Integrantes do próprio governo, uma coalização do Movimento 5 Estrelas (antigo aliado de Salvini) e o Partido Democrático, de centro-esquerda, admitiram ao longo da semana que ocorreram “falhas e um certo exagero” ao tratar da epidemia.
No início do mês, as autoridades anunciaram que o país não receberia voos diretos da China, sob o argumento de impedir a difusão do vírus, mas não realizou nenhum controle nos passageiros que faziam escala.
O premiê Conte foi muito criticado por culpar funcionários do hospital de Codogno, município da Lombardia onde a epidemia se iniciou na Itália, por supostamente não usar de maneira correta máscaras e luvas, o que teria contribuído para a difusão do vírus.
Apesar da declaração, o chefe do governo italiano liderou reuniões de gerenciamento da crise e pediu a empresários, políticos e inclusive à mídia para baixar o tom sobre a emergência.
“A comunicação errada amplificou em escala global uma crise que poderia ter sido resolvida em nível local. A Itália fez mal a si mesma, sem nenhum motivo, amplificando um perigo que não era real. Foi um gol contra em termos políticos, com consequências sérias para a economia”, ressalta Campi, que leciona na Universidade de Perugia, instituição que tem grande número de alunos chineses e que não foi impactada.
Segundo ele, a epidemia se desenvolveu na “parte errada do país, nas regiões mais ricas e teoricamente mais bem preparadas”, explicando que há uma razão técnica para isso: as relações econômicas das empresas ali instaladas com a China.
O que todo mundo esperava, ressaltou, é que a rápida difusão do vírus acontecesse no Sul do país, onde o sistema sanitário é menos funcional, o que não se registrou. “Por isso a Liga se encontra em grande dificuldade”, conta.
Sobre o gesto do primeiro-ministro Conte de culpar o hospital de Codogno pela disseminação do vírus, Alessandro Campi afirma que ele fez algo impensável: “Dar a culpa de um problema para quem está abaixo de você não é ético nem aceitável do ponto de vista político. Ainda que fosse verdade, um político sério não faz isso, foi inadequado”.
Quanto ao pedido de Salvini de realizar novas eleições, o professor afirma que ele é “irrealizável e sem o senso de responsabilidade” esperado para uma crise como a atual. “É um caso de emergência, claro, mas não estamos na Segunda Guerra Mundial para justificar um ‘governo de união nacional’. É um sinal evidente da classe política de que falta responsabilidade pública. É apenas um gesto propagandístico.”
O catastrofismo — político e sanitário — visto no início da semana distendeu-se nesta sexta-feira. Os sinais vieram de ambos os lados.
Pela terceira vez em sete dias, o presidente da República, Sergio Mattarella, uma espécie de árbitro que tem funções decorativas e não participa do governo, interveio publicamente pregando o “conhecimento como antídoto do medo irracional e imotivado” que conduz a comportamentos “sem razão e sem benefícios”.
Além de tentar normalizar a situação política e social, Mattarella demostrou especial preocupação com os impactos da crise na já combalida economia italiana.