Coronavírus: Governo da Paraíba fez tudo o que Jair Bolsonaro recriminou
Mesmo antes do surgimento do primeiro caso oficial de coronavírus, a Paraíba adotou medidas duras de isolamento e prevenção. Hoje, o estado é o segundo do Brasil com menos infectados. Mas apesar dos esforços do poder público estadual, alguma coisa mudou após o fatídico pronunciamento do presidente em cadeia nacional
“Por favor, para a sua segurança, fique em casa”. Essa é uma das frases disparadas por carros de bombeiros que circulam com alto-falante pelas principais cidades da Paraíba há pelo menos dez dias.
No estado, o governo adotou medidas enérgicas de contenção contra o novo coronavírus antes mesmo da confirmação do primeiro infectado.
Quando não havia ainda nenhum caso confirmado de Covid-19 na PB, o executivo estadual antecipou as férias escolares, decretou o fechamento de bares, restaurantes e comércios, e colocou os bombeiros nas ruas espalhando mensagens de conscientização. Dias depois, shoppings também foram fechados.
Para os servidores públicos, foi determinado aos com mais de 60 anos e integrantes dos grupos de risco que ficassem em casa, em home office. Os demais, trabalhariam em uma espécie de rodízio.
Pelas ruas dos municípios do estado, tornou-se habitual ver comboios policiais em circulação para assegurar o cumprimento das determinações do governo.
Evolução dos casos
No dia 18 de março, os paraibanos ficaram sabendo do primeiro paciente que testou positivo — um homem de 60 anos, com histórico de viagem para a Europa, residente da capital João Pessoa.
Até ontem (27), a Secretaria de Saúde do estado contabilizou um total de 10 infectados — média de um novo caso por dia. Três desses pacientes (incluindo o primeiro) já são considerados curados e não há nenhuma morte.
Em 14 de março, quatro dias antes do primeiro caso, o governador João Azevêdo (Cidadania-PB) decretou situação de emergência na Paraíba. A medida, com validade de 90 dias, foi publicada no Diário Oficial do Estado (DOE).
No dia 21 de março, com apenas um caso de coronavírus confirmado, o governo anunciou a implantação de 300 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para atender possíveis vítimas. Dias antes, outros 270 leitos de enfermaria e 90 de UTI já haviam sido reservados.
Em 23 de março, com dois testes positivos para Covid-19 na Paraíba, foi publicado um edital de contratação de 2.443 profissionais da saúde para atender a implantação daqueles 300 novos leitos de UTI.
Ainda na segunda-feira, dia 23 de março, uma reunião entre os governadores do Nordeste e o presidente Jair Bolsonaro, através de videoconferência, parecia sacramentar avanços conjuntos no combate à pandemia.
Na oportunidade, João Azevêdo (PB) cobrou a necessidade da instituição da renda básica da cidadania para atender os profissionais autônomos, questionou sobre o prazo de entrega dos testes rápidos para o diagnóstico da Covid-19 e pediu a liberação de operações de créditos e de benefícios do Bolsa Família.
A reunião entusiasmou os governadores do Nordeste. Camilo Santana (PT), do Ceará, disse que a conversa com Bolsonaro “foi muito produtiva e todos ficaram muito otimistas, com disposição de cooperar, superar questões políticas, partidárias, ideológicas”. Segundo ele, o presidente atendeu praticamente todos os pontos pleiteados pelos líderes da região.
O baque
O otimismo durou apenas 24 horas. Na noite de terça-feira (24), o presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional que contradizia todas as práticas mundialmente recomendadas de enfrentamento ao coronavírus. Em sua fala, Bolsonaro minimizou a pandemia e ordenou que o país “retornasse à normalidade”.
“O pronunciamento foi um desserviço, a destruição de tudo que está duramente sendo construído para proteger a população. Em resumo, um absurdo”, declarou João Azevêdo.
Os efeitos da fala de Bolsonaro já são sentidos em todo o Brasil, e a Paraíba não é exceção. O silêncio que antes imperava nas ruas agora cede lugar ao barulho provocado por pessoas que, desde a quarta-feira, voltaram a circular gradualmente.
O vídeo de um comerciante local, amplamente difundido em grupos de WhatsApp, deu o tom do que estaria por vir: “Bolsonaro tem razão. Amanhã vou reabrir minha loja”.
Nos supermercados da capital paraibana, muitas pessoas já circulam sem desconfiança. “Esse coronavírus não é tudo isso. Já houve doenças muito piores”, dizia um homem, em voz alta, na fila do caixa, como se estivesse tentando convencer os demais.
As praças, vazias até terça-feira, aos poucos estão sendo ocupadas por corredores, ciclistas, crianças e caminhantes, inclusive idosos.
Reações
Atentos aos exemplos de lugares que enfrentam verdadeiras catástrofes por terem adotado tardiamente as medidas de isolamento, os paraibanos conscientes tentam reverter a sangria.
Igrejas de diferentes doutrinas do estado afirmaram que não irão reabrir as portas, apesar do decreto presidencial que considerou as atividades em templos religiosos como “serviços essenciais”.
O governo também segue firme em sua posição. “A OMS recomendou a todos os países atingidos pela Covid-19 que adotem medidas de isolamento social como única forma de evitar um colapso do sistema de saúde e a morte de muitas pessoas. Todas as medidas visando a proteção da população do nosso Estado, contidas no Plano de Contingenciamento elaborado pela Secretaria da Saúde, continuarão sendo implantadas.Vamos em frente, venceremos mais esta batalha”, comunicou o governador João Azevêdo.
Nesta sexta-feira (27), foi deflagrada a operação “Previna-se II”, que mobiliza 1,2 mil policiais. “Aqueles que insistirem em continuar circulando, mesmo com sintomas da doença, serão responsabilizados, pois isso é crime contra a saúde pública”, explicou o secretário de segurança.
Além da fiscalização, a ordem é para que esses policiais reforcem a segurança em estabelecimentos onde funcionam serviços essenciais como farmácias, unidades de saúde, postos de combustíveis e supermercados.
Mas a despeito da contraofensiva das autoridades paraibanas, não se sabe até que ponto germinará — no estado com o segundo menor número de infectados do Brasil — a semente do deboche ao coronavírus implantada pelo bolsonarismo.
Sabe-se, porém, que se a campanha anti-isolamento vingar, as consequências serão gravíssimas. É o que dizem todos os infectologistas e especialistas em saúde pública.
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Atualização: Após a publicação desta reportagem, a Secretaria de Saúde da Paraíba informou na tarde de hoje (28) que o número de casos positivos para coronavírus no estado chegou a 14. Apenas um desses casos, uma mulher de 55 anos, está internada em leito regular de hospital privado em João Pessoa.