Kamba Cua
Afroparaguaios que usam seu cabedal musical e histórico, de grande riqueza sonora e performática para operacionalizar e fortalecer sua etnia afro e, com isso, conquistar posições de poder dentro do campo político identitário.
Anaide Carvalho* e Eduardo Bonzatto*
“O esquecimento está cheio de memória” -Mario Benedetti, 1994
Chegados ao Paraguai nas fileiras derrotadas do general Artigas nas guerras do Uruguai em 1820, os afroparaguaios foram desaparecidos imediatamente.
Receberam uma doação de terra condicionada a que não se misturassem com os não-negros, o que resultou que praticamente todos os habitantes de kamba cua tenha o mesmo sobrenome, Medina.
Distante de kamba cua já havia outra comunidade de afroparaguaios que vieram por volta de 1740 para a construção de um porto próximo a Assunção. A comunidade de Emboscada se mantém ativa e luta por direitos nesses tempos.
Um terceiro grupo veio com os jesuítas para a construção de uma igreja há 200 anos, constituindo uma comunidade conhecida como Kamba Kokue.
Essa condição endogâmica proporcionou, por outro lado, uma unidade comunitária que começou a ser desfeita quando, a partir de 1940, os governos militares que se sucederam no Paraguai avançaram sobre suas terras que, a despeito da doação histórica, não tinha titularidade. Dos cem hectares originais, os militares surrupiaram 97 das terras motivados também pela política de branqueamento que a partir de então estimulava a união inter-racial. Parte importante acabou se dispersando em busca de trabalho quando a terra lhes foi tirada. A Faculdade de Medicina da capital foi construída nessas desapropriações.
O termo kamba refere-se à etnia de escravizados vindos do Quênia e que foram levados primeiramente para o Uruguai pelo porto de Montevidéu. O termo cua significa caverna, em guarani. Kamba cua, portanto, é caverna de negros.
Curiosamente, o governo paraguaio vem estimulando a visibilidade de kamba cua. Patrocinou a formação de um grupo de músicos e dançarinos, “negritud de colores”, em excursão por todo o país. Mariví Vargas, cantora de expressão forte nas influências afroparaguaias, os grupos Kamba La Merce, Pitiki Guarimba que, liderados por Lazaro Medina também se apresentaram na Argentina, Peru, Colômbia, Porto Rico, Uruguai, México e Cuba.
Certamente isso se deve ao estímulo que a ONU vem promovendo para que a cultura diaspórica seja conhecida, principalmente a partir de 2011, com a eleição do ano internacional das pessoas de ascendência africana.
Os estilos das danças lembram as Ndelekeni, Mbenio, Ngulumange e Kilumi, acompanhada de trajes típicos kamba e tambores. O espetáculo das sonoridades polirrítmicas são temperados com saltos dramáticos e cambalhotas de modo muito singular.
Leia aqui outros textos de Eduardo Bonzatto
Não diferente do Brasil, em que parte da militância negra acentua sua luta através das práticas culturais, os kamba cua usam sua arte em apresentações públicas, pleiteando políticas econômicas e sociais que promovam maior equidade. Dessa forma, a identidade africana vai se fortalecendo para além dos limites geográficos.
Mas os sistemas redundantes cumprem seus determinismos por vezes com grande ironia.
O exemplo disso foi o movimento que ocorreu no fim de 1994, na África do Sul. Enquanto os negros comemoravam a ascensão de Nelson Mandela, parte dos sul africanos (os brancos de ascendência holandesa, chamados bôeres ou africâneres), temendo uma convulsão social, a crise econômica instalada e principalmente o aumento da violência, buscaram refúgio no leste do Paraguai.
Apesar de terem outros países como opção, a exemplo do Canadá e Austrália, a escolha pelo Paraguai se deu pela grande demanda de terras de baixo custo.
A adaptação foi bem complicada, segundo Estella Van der Walt, integrante do primeiro grupo que migrou com sua família, sobretudo devido ao idioma, entretanto a lembrança da situação difícil encontrada por eles em seu país de origem, os motivava a fazer do Paraguai sua nova residência.
Estella usa o termo “racismo dos negros” para explicar razões as quais levaram sua família a deixar a cidade de Pietermaritzburg. Segundo ela, as guerras tribais entre os negros impediam a contratação de empregados e colocavam em risco a segurança dos brancos. Em Pietermaritzburg, a fonte de renda da sua família era o cultivo de legumes, tendo como principal mão de obra, 200 negros, que por sua vez pleiteavam o direito pela terra.
Trabalhar para os brancos naquele tempo deixou de ser uma opção.
Os bôeres ou africâneres chegaram à África no século 17 e introduziram a política de segregação racial no país. Carregam consigo esse histórico pesado e, toda vez que existia um descontentamento do regime político, migravam para novas terras.
Um dos grandes exemplos ocorreu no século passado, quando protagonizaram o chamado “Great Trek”, uma grande jornada a carroça, saindo do Cabo para o interior da moderna África do Sul, motivados também pela imensa discordância com o regime colonial britânico estabelecido na época.
Há quem diga que o fator principal não permeia as diferenças entre as raças. Cornú Plenaar afirma que não foi por racismo, mas pelo gosto da aventura que estavam ali, porém ratifica que a situação da sua família em Pretória ficou “insustentável” após as ações liberalizantes do então presidente Frederik de Klerk.
O mais interessante de todos esse movimento migratório, é pontuado pelo próprio Cornú (filho de Faan Plennar, um pastor protestante, membro do Partido Nacional, que se tornou base da política de segregação racial no país.
Apesar disso, Cornú afirma não existir racistas entre os integrantes da comunidade formada no leste do Paraguai pelos sul-africanos. “Quem é racista não fica no Paraguai”, um país altamente miscigenado, logo a adaptação e o convívio entre raças diferentes seria de primeira ordem.
Por um lado os Kamba Cua, afroparaguaios que usam seu cabedal musical e histórico, de grande riqueza sonora e performática para operacionalizar e fortalecer sua etnia afro e, com isso, conquistar posições de poder dentro do campo político identitário.
De outro, os bôeres, que apesar das suas migrações históricas estarem recheadas de movimentos segregacionistas, reconhecem nesse país, um lugar promissor, de riquezas naturais e baixo custo. São desapegados das tradições em que o costume é a readaptação.
Ambos reescrevem sua história no Paraguai, um país incógnito, quase ignorado, mas que possui uma característica muito interessante e peculiar, onde o direito simples e natural parece prevalecer sobre o direito positivo em inúmeras conjunturas.
Quando comparado a países próximos, o positivismo jurídico é exacerbado e aqui podemos colocar o Brasil numa condição especial tamanha a sua força.
Já em solo paraguaio, esse movimento parece ser impermeável. A vida diária, a solução de contingências e o próprio labor jurídico são altamente sugestionados por um direito costumeiro ou habitual, similar ao “jus gentium” da Roma antiga, mas principalmente ao direito natural. Neste panorama, face à sua homogênea miscigenação, o Paraguai, não “parece” apresentar graves desajustes sociais como em todos os seus países vizinhos.
E mais uma vez podemos colocar o Brasil como exemplo em sua inadequação racial que perpassa o estado nação.
Diferente do Brasil, o Paraguai não precisou implementar as reparações históricas com políticas afirmativas, a exemplo das cotas. Destaca-se principalmente nesse país subestimado a prática de um direito normativo extraordinário e etéreo. Direito este que trouxe consigo alguns benefícios nas relações sociais, uma vez que o próprio “modus vivendi” tornou-se um exercício dinâmico e popular. Reside, pois, nesse país a ideia de que a igualdade e o respeito entre as pessoas não se constrói apenas com as normas e leis escritas.
*Anaide Carvalho é alquimistas, professora e historiadora e *Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).