Saudade dum boteco
Delmar Bertuol*, Pragmatismo
Político
Dentre as saudades e faltas que estou sentindo nesta quarentena, destaca-se, entre outras importâncias, um boteco. Que eu sou bodegueiro sem-solução.
E não estou me referindo a esses na-moda pubs, lugares metidos a bestas em que se paga quinze reais um copo de chope e tem que se ir com vestido casual, isso é, com roupas que pagamos mais caro para transmitir simplicidade. Além disso, os pubs não servem comida boa. Servem comidas “gourmets”. Meu ranço já começa pelo estrangeirismo. Comida “gourmet” é a mesma comida de qualquer lugar, com a diferença que a porção é menor e a acompanha um molho especial, que não passa de ketchup misturado com outro condimento. Ah, e claro, o valor é inversamente proporcional ao tamanho do prato. Mas o pessoal frequenta os pubs na esperança de, mesmo veladamente, conseguir algum flerte. Hábito legítimo, porém caro.
Mas dizia, eu sinto falta é dos botecos mesmo, desses que servem cachaça a dois pilas. Bote um pouco de biter, por favor.
A roupa que se vai nos botecos é a roupa que se tá, seja a de missa ou o uniforme engraxado da firma. Aliás, eu teria que consultar a legislação pertinente, mas acredito que seja proibido entrar no boteco de sapatênis. A vestimenta mais comum é calça dins e chinela Havaianas. Faça chuva ou calor de verão.
Nos botecos se come com preço justo e descrição honesta no inexistente menu. Pastel de pastelina com guisado e ovo. Acompanha ketchup e mostarda de sachê. Ou, como é mais do meu agrado, torresmo da colônia com guarnição (claro que estou sendo irônico. Não se usa esse termo nos botecos) de pão cacetinho de ontem à tarde. De lamber os beiços já molhados de aguardente. Sirva mais uma, gentileza.
Frequentar botecos populares é uma experiência social. Vou além, muito mais uma atitude antropológica do que necessariamente etílica. Vários frequentadores são abstêmios, mas vão igual. Pedem uma Peps com gelo e limão enquanto espiam o jogo de canastra. Se vai antes pela aglomeração, pra usar termo em voga, do que pela cerveja sempre gelada. O homem gosta de conviver, ao contrário do que esta pandemia está nos obrigando a não fazer.
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É uma experiência porque nos bares simples de bairro o pessoal não se veste de máscaras (outra palavra em muito uso) sociais como nos xópins ou mesmo nos pubs. Claro, ninguém quer se mostrar como realmente é, com seus supostos defeitos e ditos fracassos, num flerte. Nos bares, por sua vez, em que não há paquera, o sujeito já chega contando derrota, dos cornos levados há pouco ou do salário insuficiente. Nos pubs, tenta se aparentar ser de uma classe social pelo menos imediatamente superior a que se realmente é. E os caras aumentam em dois terços a quantidade de mulheres com que já saíram.
Definitivamente, os pubs são uma representação estética da nossa patética classe média, que tenta ser o que não é. Que se enxerga como um pub, mas tá mais perto do Bar do Seu Alfredo, que faz uma caipirinha no capricho. Coloque na minha um tantinho de mel, Alfredo, que afasta a gripe.
O Ministério da Educação (temos ministro, ou já trocou de novo?) devia colocar como disciplina obrigatória nas ciências sociais e humanas um semestre de frequência a bares. É bem verdade que informalmente e na prática essa frequência se estende do calourismo ao doutorado, mas os acadêmicos vão lá pra reclamar da dificuldade da disciplina e pra planejar uma revolução armada. Reprovam na citada cadeira e não fazem revolução coisa nenhuma.
Defendo que, ao invés da balbúrdia dos campi, pelo menos no tempo de uma cadeira optativa, os acadêmicos de Sociologia, Psicologia, Direito, entre outros, frequentem os bares. Ouçam histórias de vida. De reais dificuldades. Façam anotações e fichamentos. Ao final, emitiriam volumoso relatório da experiência. Dos chifres à condição social desfavorecida. Seria agregador pra ciência, apesar de ela estar tão desmerecida por alguns.
Disciplinado no meu isolamento social, sigo em casa. Saio pro mercado e pagar contas. Trabalhando (parece que mais do que antes) em home office (por que usamos tanto estrangeirismos? Síndrome colonialista?). Pretendo assim ficar até segunda ordem. Não vou furar a quarentena. Mas, se irresponsavelmente fosse, seria pra tomar uma pura com limão. Tem torresmo?
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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