Uma pizza ao meu amigo
Sempre fui guloso. Mas com a ansiedade da quarentena, tô comendo que nem uma capivara desmamada. De modo que, neste mesmo mês passado, pedi uma pizza GG
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Certa vez li no Facebook uma provocação filosófica, por assim dizer. Não me lembro quem era o autor, a quem desde já peço escusas pela não-referência. Era mais ou menos assim: “suponhamos que uma criança esteja se afogando num rio sujo. Você sabe nadar, mas tem que ser muito rápido. Do contrário, a correnteza levará o pequeno à morte. Ocorre, contudo, que você está com um sapato novo, que pagou muito caro, fruto de muito trabalho e/ou poupança. Você não tem tempo de descalçá-lo. Se entrar na água com ele, inevitavelmente o estragará. A pergunta: você trocaria o seu caro sapato pela vida do guri? Provavelmente sim. Entraria na água de sapato e o perderia, mas salvaria a vida dele. Óquei. Então por que não vende o seu sapato e envie o dinheiro a alguma criança dum paupérrimo país para que ela como e não morra de fome, conforme condenação circunstanciais? ”
A parábola é simplória, porém não deixou de me causar algum desconforto. Sempre lembro dela.
Há algum tempo, um conhecido (não éramos bem amigos. Fizemos algumas atividades na área de literatura juntos) entrou em contato comigo. Explicava a sua situação e, sem orgulho, pedia-me ajuda financeira. Sua filha nasceu com uma grave doença. O sistema público de saúde não consegue fazer os procedimentos em tempo hábil, colocando em risco o desenvolvimento de algumas habilidades de sua pequena. Enfim, os detalhes são dispensáveis.
Pai também, logo me senti comovido. Ainda mais que a minha pequena também teve uma séria alergia alimentar nos primeiros meses. Não tão grave como a filha do citado, mas ainda assim demandou alguns custos que, em alguns meses, foram arcados por familiares meus e da mãe dela.
Em suma, num ímpeto, num instinto, fiz um cálculo rápido e decidi ajudar o sujeito com um valor que pra mim faria alguma falta.
Os meses foram passando e a menina ainda carecia de cuidados. E meu amigo não melhorava sua situação. Não conseguia arrumar um emprego com que pudesse minimamente manter sua família. Quero dizer, ela ainda necessitava, necessita, na verdade, de ajuda de familiares, amigos ou de pessoas como eu, não tão íntimas, mas que por algum motivo resolveram ajudar.
Mês passado eu lhe neguei ajuda. De fato, não podia. Há tempos já tava negativado no banco. Juros sobre juros, bola de neve, como se diz, era eu a contar moeda. Só que no cálculo do meu orçamento, incluo diversão, lazer e arte. “A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte” diz a música que pra mim sintetiza a diferença do Homo sapiens para as demais espécies. Viver não é somente sobreviver satisfazendo necessidades fisiológicas.
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Sempre fui guloso. Mas com a ansiedade da quarentena, tô comendo que nem uma capivara desmamada. De modo que, neste mesmo mês passado, pedi uma pizza. GG, que o valor proporcional em fatias era a que mais compensava. Gordo de humanas vira matemático quando é pra calcular qual a melhor relação custo-benefício da comida. Invariavelmente conclui que vale mais o bufê livre do que o a quilo. E que levando a quantidade maior também se tem vantagem. E gordo, mesmo esquerdista, quando se trata de recomendação calórica diária, faz como o Presidente(?) Bolsonaro: ignora a ciência e diz que os índices da OMS estão desatualizados.
Mas dizia, mesmo num mês de aperto financeiro, deixei também o cinto mais apertado e pedi uma pizza gigante. Borda de catupiry, por favor.
Depois de devorá-la quase por inteira, mal sobrou pro café da manhã, me veio a dupla consciência pesada. A dieta que pela enésima vez foi quebrada; e o pensamento no meu amigo.
Será que ele poderia se dar ao luxo de pedir um festifúdi num sábado à noite? Quando não há pandemia, ele sai com sua esposa e filha prum rodízio de bifes? Talvez ele siga as recomendações alimentares (obsoletas, creio) da OMS e não coma esses lanches ricos em colesterol ruim. Mas quando foi a última vez que comprou um livro, dado à leitura que sei que ele é? Será que foi a alguma peça de teatro depois que descobriu a doença da filha? Será que pode comprar um bom vinho para brindar despretensiosamente com a esposa numa quinta-feira à noite? …
Sou comumente “acusado” (como se um crime fosse) de ser comunista. Não o sou. Talvez eu ache o socialismo o ideal, mas o sei utópico. Sempre me perguntam onde o Socialismo ou o Comunismo deu certo. Respondo com convicção. Em lugar nenhum. Até porque o Comunismo e o Socialismo utópico, idealizado por Marx, nunca foi de fato implementado. Talvez justamente por ser utópico.
Mas eu não deixo de devolver a provocação: onde o capitalismo deu certo? No Brasil certamente não. Do contrário, meu conhecido não estaria passando por semelhante situação.
De novo, não defendo uma revolução socialista. Acho que podemos seguir com o capitalismo. Mas precisamos diminuir urgentemente a desigualdade que nos assola. É do capitalismo uns terem mais e outros menos. Legítimo. Realmente meritocrático, em algumas situações.
Mas não me parece justo que esse pai que sempre trabalhou não tenha acesso a um tratamento decente pra enfermidade da filha enquanto outros pedem pro motoboy entregar seu lanche no condomínio de luxo, aonde é humilhado justamente por ser pobre.
Não vou mandar entregar uma pizza ao meu amigo. Ele mora em outro estado. Mas desejo que ele resolva logo sua situação. Que sua filha melhore e ele tenha condições financeiras de ter diversão e arte. E pizza.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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