“Não tô nem aí para medida protetiva. Ninguém agride de graça”, diz juiz
“Não tô nem aí para a Lei Maria da Penha e medida protetiva. Ninguém agride de graça”, diz juiz durante audiência que se tornou uma sessão de tortura. Uma das partes, a mulher, é vítima do ex-companheiro em inquérito de violência doméstica
Mariana Kotscho, Papo de Mãe
Era para ser uma audiência on-line referente a um processo de alimentos (audiência de pensão) com guarda e visitas aos filhos menores de idade numa Vara de Família de São Paulo, mas se tornou um show de horror.
Juiz: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe (sic), eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.
Juiz: “Doutora, eu não sei de medida protetiva, não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva.”
As declarações acima são apenas algumas das feitas pelo juiz que presidia a sessão.
Participavam da audiência, além do juiz, um promotor de justiça, que permaneceu calado a maior parte do tempo, as partes (um ex-casal) e duas advogadas.
Um detalhe importante é que uma das partes, a mulher, é vítima do ex-companheiro num inquérito de violência doméstica, com base na Lei Maria da Penha. E, por duas vezes, ela já precisou de medida protetiva, tendo sido atendida na Casa da Mulher Brasileira de São Paulo.
Na audiência, em vários momentos o juiz minimizou a importância da Lei Maria da Penha, das medidas protetivas, e chegou a fazer ameaças do tipo “eu tiro a guarda de mãe”. O juiz insinua que se *Joana (* nome fictício) voltar a fazer BO (Boletim de Ocorrência) contra o ex, ela poderia ter problemas com a guarda, pois, segundo ele “ficar fazendo muito BO depõe muito contra quem faz”.
Apesar do histórico de violência, o juiz insistia para que houvesse uma reaproximação do casal. Esbanjou machismo e fez apologia à violência em frases como “eu também tenho filha mulher, vou ter genro, dá até tremedeira, tava vendo aula de tiro”.
O juiz menospreza a Lei Maria da Penha mais de uma vez, desdenha das vítimas de violência doméstica ( “ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem 12 anos”) e sugere que a vítima abra mão de pedir medidas protetivas.
A Lei Maria da Penha é considerada uma das melhores do mundo na proteção à mulher e marcou um avanço no combate à violência doméstica no Brasil nos últimos 14 anos. E, embora seja mais aplicada na justiça penal, essa é uma lei sistêmica que pode e deve ser considerada, respeitada e cumprida por qualquer juiz de qualquer vara.
Durante as 3 horas e meia de audiência, o juiz também chamou uma das partes, *Joana, de “mãe” e “manhê” diversas vezes. Reduziu aquela cidadã a apenas um traço de sua identidade, sem chamá-la pelo seu nome de maneira respeitosa e com total desconsideração de todo o trauma causado pelas violências que ela já sofreu.
O juiz fez *Joana se sentir intimidada mais de uma vez. Também houve constrangimento de *Joana quando o juiz perguntou: “A senhora é solteira, a senhora mora com quem, mãe?”. O que essa pergunta tem a ver com os fatos em análise, isto é, o valor pago para a subsistência digna de uma criança do qual o agressor de Joana é pai?
As advogadas mal tiveram a chance de falar, já que o juiz não permitia. O tempo todo o magistrado insistia em uma reaproximação do “casal” , “pela família”, ignorando a situação de violência doméstica. O juiz também diz: “quem batia não me interessa”. Parecia uma sessão de tortura, principalmente para *Joana, que é vítima do ex, no inquérito criminal por lesão corporal.
Após a repercussão do caso Mariana Ferrer, já não se pode mais aceitar que “tem juiz que é assim mesmo”. Já existe a “Lei de abuso de autoridade”, que impõe regras de conduta a juízes, promotores e policiais. E é necessário denunciar. E não para impor um linchamento virtual de um juiz (até porque nome e rosto dele estão preservados), mas sim para trazer à ciência da população um problema que parece recorrente e que precisa ser resolvido pelas autoridades competentes em respeito a toda a sociedade.
Leia as transcrições dos trechos mais graves:
Juiz : “Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Se tem lei Maria da Penha contra a mãe(sic) eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”. (Advogadas tentam interromper e ele não deixa)
Juiz : “Qualquer coisinha vira lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem…eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”.
Juiz : “Ah, mas tem a medida protetiva? Pois é, quando cabeça não pensa, corpo padece. Será que vale a pena ficar levando esse negócio pra frente? Será que vale a pena levar esse negócio de medida protetiva pra frente?
Juiz : “Doutora, eu não sei de medida protetiva, não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva.”
Juiz: “Quem batia não me interessa”
Juiz: “O mãe, a senhora concorda, manhê, a senhora concorda que se a senhora tiver, volto a falar, esquecemos o passado….”
Juiz: “Mãe, se São Pedro se redimiu, talvez o pai possa…..”
F.: “Eu tenho medo”
(vamos lembrar aqui que F. já sofreu violência doméstica e o juiz insiste numa reaproximação dela com o ex)
Juiz: “Ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem mais 12 anos”
(No trecho acima, ele insinua mais uma vez culpar a vítima pelas agressões sofridas, reafirmando a declaração de que “ninguém apanha de graça”)
O conteúdo é gravíssimo e a sociedade precisa ter acesso a ele para que todos saibam que tipo de conduta é praticada nessas audiências por alguns servidores públicos que se sentem à vontade para desdenhar de leis que devem cumprir e defender. Por se tratar de uma audiência da Vara de Família, é necessário respeitar o segredo de justiça, por isso nomes e rostos estão sendo preservados.
VÍDEOS: