Eduardo Bonzatto
Colunista
Ciência 04/Fev/2021 às 07:30 COMENTÁRIOS
Ciência

Permacultura e as tecnologias de convivência

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 04 Fev, 2021 às 07h30
Permacultura tecnologias de convivência arquitetura
Reprodução

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar.
Oscar Niemeyer

Esse terceiro ensaio relativo aos cursos guias da Universidade Federal do Sul da Bahia procura questionar os imperativos da área de engenharias (especificamente a habitacional) que investem nas formas mais elitistas dos operativos acadêmicos e da razão da ignorância virtuosa que a permacultura poderia oferecer para uma universidade que se quer popular e inserida no modo com que as populações resolvem seus problemas.

Metodologias ativas se traduzem por inversões dos papeis de professores e estudantes. Para que isso ocorra, é necessário minimizar o máximo possível os elementos do discurso, favorecendo a emergência de instâncias dialógicas que precisam acontecer com a observação, reflexão, sensibilização e produção de tecnologias que levem à convivência dos envolvidos. Tais tecnologias, abundantes na tradição brasileira, precisam ser redescobertas para o enfrentamento de problemas, tanto no espaço urbano quanto rural.

O discurso da crise da educação brasileira contemporânea se funda numa dicotomia entre uma incompreensão da função social da educação e uma busca pelo ideal de uma educação social utópica.

De um lado, a função social da educação, que muitos dizem em crise, é produzida numa instituição altamente funcional em reproduzir, massivamente, o cidadão obediente. No outro extremo, a crença numa utopia educacional, beira a irresponsabilidade, pois aposta numa instituição capaz de institucionalizar a igualdade e a justiça por meio do discurso dessa igualdade e dessa justiça.

De fato, da perspectiva institucional, não há crise, e os discursos da mudança só nutrem a própria instituição. Entre esses dois extremos existe um mundo, vários mundos. Professores comprometidos em encontrar caminhos no tecido esburacado da instituição, estudantes que desobedecem, imprevistos de sociabilidade pluricultural, altos índices de criatividade, fracassos danosos que muitos carregam para o resto da vida, patologias diversas que atingem professores e estudantes, estudantes de escola pública que conseguem acesso nas melhores universidades do mundo, altos índices de analfabetismo funcional e de abandono, enfim, a complexidade é a tônica da educação, embora poucos consigam ver abaixo da primeira camada da crise.

Precisamos reconhecer esse palimpsesto para ocupar um pequeno espaço intersticial de conexões, intersubjetividades e afetos.

O Brasil já teve um histórico de habitações feitas com adobe. E artesãos que dominaram essa artesania atestados por construções memoráveis cujas evidências permanecem na arquitetura das igrejas construídas ainda nos séculos iniciais da conquista até fins do século XIX.

Mas tanto seus artífices quanto sua arte foi criminalizada quando as universidades começaram a formar os engenheiros. Não podiam admitir que aqueles que não passavam pelo crivo universitário mantivessem um fazer tão fundamental para a vida quanto o de construção de habitações que eram estáveis, frescas por conta do barro e de utilização de materiais que estavam sempre ao acesso de quem precisasse. Essas habitações foram então identificadas com o atraso e com habitação de pobres e sumiram do cenário comum das cidades.

Claro que continuaram a construir suas casas os pobres. No campo, casas de pau a pique e nas nascentes urbanizações normatizadas, nos morros e nas favelas, com materiais diversos.

Urbanistas importantes veem nas formas que as favelas lidam com suas habitações no modo com que no futuro tende a se hegemonizar.

Chamar de construções vernaculares é uma redução das possibilidades que ainda guardam como segredos a que os estudantes de hoje não tem acesso.

Hoje se denomina arquitetura vernacular a arquitetura caracterizada pelo uso de materiais e conhecimentos locais, geralmente sem a supervisão de arquitetos profissionais. É a forma com que as pessoas com seus dialetos étnicos, regionais e locais tecem sua linguagem arquitetônica e construtiva.

Como todo discurso técnico iluminista, e dentre todos a engenharia é soberana no enterramento de modos de construção tradicionais, cuja limitação é exemplar, em nada contribui para o reconhecimento e o resgate dessas formas construtivas, como a garantir as reservas de conhecimentos na anulação dos saberes das gentes.

Exemplos dessas técnicas as pontes de raízes vivas de Meghalaya, na Índia, as edificações Gurunsi, em Burkina Faso, as casas colmeia em Harran, na Turquia, as coberturas de algas de Laeso, na Dinamarca, as casas de junco feitas em Ma’dan ainda hoje no Iraque, as construções feitas pelo povo sami na península russa de Koli e em outras regiões nórdicas, as magníficas edificações Ab-anbar, literalmente reservas de água no Irã, as casas malaias de Singapura, as fantásticas habitações do penhasco de Bandiagara, no Mali, as casas Mugsun de Camarões, dentre tantas outras são evidências que os discursos e as tecnologias contemporâneas são traduções empobrecidas de uma arte que carece de ser resgatada.

Claro que uma universidade interiorizada como a UFSB, com sua ênfase assumida como universidade popular deveria assumir a vanguarda desses resgates. Mas há um ranço acadêmico diante dos saberes populares, exceto como discurso inclusivo.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Dentre as vastas linhas de possibilidades que um processo educacional oferece, a vivência da complexidade, no sentido grego de “tecer juntos”, enriquece o sujeito em seu preparo para a vida social.

A escolha da vinculação da permacultura como recurso educativo recai no fato de que ela tem alguns atributos para atingir essa complexidade. Em seu conceito, permacultura significa cultura da permanência em oposição à cultura do descarte, da liquidez e da dissolução das relações humanizadoras.

De outro lado, a facilidade e o reatamento dos vínculos com tradições técnicas, há muito tornadas invisíveis, podem insuflar nos participantes, diversos caminhos de autonomia: intelectual, material, educacional, de vida.

E não é por falta de núcleos no Brasil que resgatam tais técnicas. Institutos de Permacultura se espalham por todo território nacional e a Universidade Federal do Cariri oferta um curso de pós graduação em Permacultura.

A questão é mais profunda. Há um temor entre os especialistas iluministas em socializar seus conhecimentos e, principalmente, autorizando legitimamente artífices na tarefa de construção de habitações.

Isso porque a arquitetura vernacular não carece de cálculos sofisticados: são construções estruturais, e não precisam de colunas para suportar seu peso. Para que você entenda, são como casas de cupim, em que toda construção é a própria estrutura.

Essa é uma das construções do Ipec, Instituto de Permacultura do Cerrado e pode nos auxiliar no entendimento do potencial construtivo que a Permacultura oferece.

Essa técnica se chama superadobe e consiste em sacos infinitos que vão sendo preenchidos por terra na construção.
Abaixo outra estrutura construída no mesmo instituto:

Os benefícios que uma Universidade poderia conquistar com uma abertura desse tipo são muitos.

Sensibilização para o diálogo, experiência dialógica, percurso urbano e rural para vivências extra-campus, convivência com as comunidades, reconhecimento do outro (alteridade), imersão em busca dos problemas (não visíveis), construção complexa para resolução dos problemas, pesquisas, escolha das tecnologias, trabalho coletivo.

No mesmo sentido, os estudantes estariam comprometidos com valores outros que o ensino técnico sequer almeja:

– Estudantes qualificados para a compreensão e não para o julgamento do outro.
– Confiança de que o caminho se faz caminhando.
– Sensibilização para os problemas sociais profundos.
– Capacidade de desierarquizar as diversas vozes do processo.
– Capacidade de aprender com não professores.
– Percepção das interconexões amplas.
– Vencer obstáculos com resolução de conflitos.
– Perceber-se na ação política, como interventora dos problemas da comunidade.
– Gerar comprometimento com o fazer e não com a fiscalização do fazer.

A permacultura não se restringe apenas aos aspectos construtivos. Cito aqui apenas quatro que deveriam acompanhar o movimento construtivo: pesquisa e elaboração de sistemas de energia alternativos como a eólica, a solar de baixo custo e impacto; sistemas de coleta de água de chuva que permitem que a residência conquiste paulatinamente autonomia hídrica; sistemas de tratamento ecológico de águas cinzas e negras; plantio de alimentos aos moldes da agricultura sintrópica em pequenos espaços e lida de animais no âmbito da habitação, resgatando hábitos e soberania alimentar que são fundamentais para uma vida plena.

Esses cinco pontos podem nos dar uma ideia da complexidade que tal formação potencializa. E o mais importante, tudo isso com baixíssimo custo seja de materiais, que sempre estão nos locais, seja de mão de obra, pois sempre são vivências coletivas, daí o termo tecnologias de convivência, numa doação cujo ganho sempre é extraordinário.
Com isso a universidade deixa de ser uma reprodutora de ideias velhas e passa a ser uma produtora de experiências inovadoras e criativas.

Mas uma formação como essa exige que o papel do professor, como ensinador, seja abolido e ele se comporte como um buscador na intensa parceria em que se transformam os cursos, pois a dinâmica de um caminho como esse compreende outra epistemologia diversa da que estamos praticando.

A dicotomia cede lugar para a percepção mais abrangente do mundo e a hierarquia desaba diante das conexões necessárias que devem ser encontradas com outros sujeitos sociais, que embora não dominem o mundo da escrita e da leitura, são fruto de experiências ancestrais que ainda hoje são inovações diante de um mundo que foi limitado e constrangido pela arrogância acadêmica.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor

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