Manifesto do cinema do caos: onde o cinema é sujeito
Eduardo Bonzatto e Well Darwin*, Pragmatismo Político
“O que me espanta é que, na nossa sociedade, a arte não tenha mais relação com os indivíduos ou com a vida, mas apenas com os objetos… A vida de todo indivíduo não poderia ser, ela própria, uma obra de arte?” (Michel Foucault, 1979).
Em 2010, logo no final do primeiro semestre da faculdade de cinema, realizei meu primeiro filme, Górgonas. Um curta-metragem que narra a saga de uma mulher que, em trabalho de parto, implora a ajuda de dezenas de pessoas que sobem e descem uma escadaria. Nenhuma delas a nota, pois estão muito ocupadas ao celular. O sofrimento é interrompido pelo choro da criança, mas, qual é a surpresa da personagem e do espectador? Do ventre da mulher vemos sair um celular. Após alguns segundos de espanto, a personagem entende o recado, se levanta, atende o celular como se este estivesse tocando, veste um sobretudo preto e se perde na multidão. Na época, o celular não ocupava nem metade do espaço que ocupa hoje na sociedade e na vida das pessoas, naquele tempo ter um celular não era algo inescapável.
Recentemente esse filme foi assediado por uma plataforma de streaming asiática e em menos de três anos já soma quase dois milhões de visualizações, mas, isso não é o mais curioso. Dos quase 500 comentários postados na página, na sua quase totalidade, de pessoas do oriente médio e Ásia, aproximadamente 70% deles manifestam estranheza e/ou não entendimento quanto ao fato da mulher ter dado da a luz a um celular. A expressão “Uhhhhhh….wheres the baby?” é bastante comum. São inúmeras as possibilidades de leitura disso, mas, duas me parecem particularmente intrigantes. As pessoas não compreendem que o celular ocupa lugar de destaque e hegemonia em nossa sociedade e seguem alienadas numa espécie de “fetichismo da mercadoria” pós-moderno e por isso não entendem a crítica colocada no filme? Ou, de fato, o celular não ocupa esse espaço e todo um discurso, esse sim hegemônico, faz com que parecemos viver sob a égide desses aparelhos e por isso essas pessoas não entendem a crítica colocada no filme?
Afinal, será mesmo que na Índia ou na China, que juntas somam 40% da população terrestre, esses aparelhos ocupam o mesmo lugar que ocupam na sociedade onde o filme Górgonas foi gestado?
O fato é que na conjuntura brasileira e, quiçá, ocidental, o celular parece ser uma realidade inescapável. Bancos, programas governamentais, consultas médicas, e mais centenas de serviços e benefícios sociais estão migrando para Aplicativos de Celular. Em São Paulo existem cerca de 2 a 3 celulares por habitante. São quase infinitas as facilidades que esses aparelhos e seus inteligentes apps fizeram aparecer. Por outro lado, é inegável a crescente dependência do ser humano a eles, dependência que aumenta tão rápida quanto se aprimora a simbiose Celular-Vida-Pessoas.
Impossível não se lembrar do filme “O exterminador do futuro 3” e sua Skynet que tão bem pavimentou o terreno para uma dominação global e inexorável das máquinas. Será que a vida vai imitar a arte? Há quem defenda que o artista é uma espécie de médium que prevê o futuro, será mesmo? Não sabemos.
De qualquer forma eu sou um ser do meu tempo, com todas as implicações que isso possa significar. Sou um fazedor de filmes inquieto e pouco a vontade com o cinema praticado nesse tempo. Um cinema que “optou” por um caminho conservador e formalista da linguagem, se mantendo apegado aos velhos dogmas criados, formatados e desenvolvidos há mais de um século, por figuras como Lumiere, D.W. Griffith, Leni Riefenstahl, Abel Gance, dentre outros, deixando de lado o cinema fantástico, mágico e transgressor de Melies ou Buñel, pra citar apenas dois.
Há que se introduzir um pouco de anarquia e caos nessa história, talvez sejam necessários mais Coringas e menos Batmans ou Comissários Gordon, é aqui que reintroduzo o assunto Celular. Nada mais potente do que introduzir num cinema formatado e enquadrado, recheado de regras e dogmas que existem para definir o que é cinema e o que não é, quem tem talento e quem não tem, e coisas do tipo, nada mais potente e devastador do que introduzir um dispositivo que pode não estar sensível as demandas, aos mandos e desmandos desse cinema hegemônico.
O próprio surgimento do cinema está diretamente relacionado a uma invenção tecnológica, o cinematógrafo. De lá pra cá alguns “avanços” tecnológicos na sétima arte aconteceram e sempre prometeram alguma mudança ou revolução na linguagem. O aparecimento do som gerou uma verdadeira celeuma, defensores do cinema “mudo” reticentes à nova ferramenta ficaram temerosos pelo futuro da linguagem, os mais radicais declaravam o fim do cinema. Não estavam de todo errados.
O som trouxe elementos interessantes, no entanto, trouxe também os diálogos e com eles uma necessidade crescente de explicar ao público o que estava vendo, na relação Imagem e Som, característica fundamental do cinema, o Texto aos poucos foi se sobrepondo à Imagem. O cinema colorido, outra “evolução” da sétima arte, não representou grande coisa na estrutura da linguagem, que continuava pautada nos velhos cânones.
O 3D chegou como a grande inovação tecnológica que prometia revolucionar tudo que o cinema havia vivido até então. Puro discurso. Foi usado como perfumaria e adereço para o velho cinema e em nada contribuiu para a mutação da linguagem, que continuou do mesmo jeitinho que o era desde os primórdios. Justiça seja feita, dois filmes feitos em 3D escapam a essa realidade, PINA (Wim Wenders, 2012) e ADEUS À LINGUAGEM (Jean-Luc Godard, 2015). Ambos criaram experiências que só são possíveis se os filmes forem vistos em 3D. No caso de ADEUS À LINGUAGEM, o filme chega a perder sentido aos ser visto da forma tradicional.
Hoje temos o 5D, 7D, 8D, e sei lá mais o que, tudo bobagem, tudo ferramenta mercadológica para revitalizar algo que se repete e se retroalimente há mais de um século.
É interessante observar que de dois ou três anos pra cá a câmera passou a ser o principal diferencial anunciado pelos fabricantes de celulares, movimento que começou pelas mãos da Apple e seus poderosos iPhones e que hoje está presente no discurso mercadológicos de todas as fabricantes, onde a expressão “Faça vídeos de cinema” é cada vez mais comum. Alguns filmes com mais ou menos destaque na indústria já foram realizados com celulares, em todos os casos foram meros substitutos das tradicionais câmeras profissionais, sem representar nenhuma subversão da linguagem, mantendo intacto seu modus operandi. No entanto, uma outra aproximação é possível.
Uma vez que o celular é entendido como um dispositivo quase orgânico, que acompanha as pessoas durante suas vidas e que são praticamente membros do corpo dotados de câmeras fotocinematográficas, podemos utiliza-los como ferramenta de captação da realidade sensível que nos rodeia e assim produzir algo único e profundo com o suporte Imagem-Som? Se sim, significa que qualquer pessoas munida de um aparelho desses pode estabelecer uma conexão criativa com seu dia-dia e ter como resultado um filme, uma experiência cinematográfica, que ela não teria se estivesse apegada a velha forma. O resultado disso é um cinema insurgente, imprevisível, informal, anárquico, livre, etc.
Cinema do Caos é nome disso, a saber: Não há roteiro ou direção de arte, não há produção também, fotografia, etc. O “roteiro”, em geral, acontece depois que já temos as imagens, a forma como as imagens se conectam na cabeça é que dá origem a algo parecido com um roteiro, que nunca é escrito. Tem casos em que a ideia pode vir antes, mas não chega a ser um roteiro como tradicionalmente é conhecido, a ideia é concebida como um disparador. A “fotografia” é a forma como se decide na hora como alguma coisa será filmada, sempre em sinergia com o espaço e suas cores e condições específicas, a câmera estará perto, estará longe, de baixo pra cima, de cima pra baixo, com movimento, sem movimento, etc, isso será definido intuitivamente e em conjunto com aquilo que se está olhando, o espaço é coparticipe. A “direção de arte” é a escolha do que será filmado, já que, em geral, é o aspecto visual que acaba chamando a atenção, podendo ser uma cena, uma situação, algo estranho ou bizarro que nos impacta, o gotejar de uma torneira, um acidente de carro, um cachorro parado no meio da rua, uma criança soltando pipa, qualquer coisa.
Às vezes o espaço é manipulado para se obter esse ou aquele resultado, mas, também, de forma intuitiva, já que não há um estudo prévio para tal ação, é tudo ali, naquele instante, no presente infinito. A “produção” é o tempo que se está disposto a levar pra terminar tudo isso, é pensar em novas imagens ou sequencias de imagens, novos sons, textos, falas, ruídos, etc., que o filme, já iniciado, ou não, supostamente necessite, porque o filme também é sujeito.
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A vida é caos. Caos é imprevisibilidade. Todos os agenciamentos são artificiais e negam a vida. Todo pensamento nega a vida. Aceitamos alegremente os movimentos de outra possibilidade cognitiva. Para isso é preciso identificar o acesso a essa vasta rede de contágio que circula pelo cotidiano.
Intuição é quando você não sabe como sabe, e saber que você sabe é tudo que você precisa saber. A intuição é apenas um dos dispositivos para que o sentimento estabeleça sutis manifestações cognitivas. Pela intuição, a mente é capaz de operar de modo complexo, tecendo infinitas conexões. Jung dizia que “cada um de nós tem a sabedoria e o conhecimento que necessita em seu próprio interior”.
Acrescento que realmente está no interior de cada um de nós, mas também está circulando entre as diversas formas de vida pelo veículo sensível do sentimento e quando somos invadidos por seu toque incessante, aprendemos.
Nesse sentido, a contemplação é um extraordinário movimento passivo para o acolhimento dos sentimentos que transitam entre as formas infinitas de vida. Contemplar é um estado de calma e diminuição da atividade do pensamento, esse arcabouço de incomodo que mantém a mente aprisionada pela racionalidade organizativa das estruturas de poder e dominação.
A fruição, cujo sentido é ter prazer, gozar numa situação, usufruir sem ansiedade, é esse estado em que o sentimento invade o organismo e expande a intuição.
O olhar da contemplação é passivo, atencioso, acolhedor e sem julgamentos. Com o hábito da contemplação, a complexidade da vida vai sendo percebida sem esforço ou dureza.
Inúmeras serão as implicações dessa postura aparentemente passiva diante da vida. A primeira é referente às formas políticas que ela requisita. Toda forma política se torna subjetiva, ou seja, aciona a intersubjetividade para expressar suas ações. A objetividade é descartada completamente e nada que não esteja próximo pode ser considerado como real.
As teorias desaparecem e com elas vão para o buraco escuro da esperança toda intenção. A vida, o mundo, simplesmente são, estão, e interagem conosco em sua dimensão mais abrangente. Aquela que nos invade e nos toca intimamente. A negação desaparece e a aceitação é a forma em que a vida se manifesta doravante. Aceitação incondicional de tudo e de todos.
Essa interação com toda sorte de vida que se aproxima, sem as barreiras do preconceito, faz da presença uma forma permanente de existir. E com ela, o presente, o tempo das ocorrências assume um privilégio absoluto. Já não existe mais o tempo contado, só fica o tempo eterno do momento.
Ora, o tempo eterno do presente implica imediatamente no fim das relações sociais, na medida em que essas são relações hierárquicas impostas pelo pensamento. O sentimento opera exclusivamente por conexões, nos níveis físicos, perceptivos e espirituais. Então nos abrimos para os choques, os esbarrões, os encontros, seja com humanos, animais, vegetais, ou com os espíritos que dançam ao redor da vida vivida em cada instante ligeiro que passa deixando seus rastros de perfume.
Essa política dos afetos que continuamente nos convida a dançar é a política que chamo de presencial, que vai do regar uma planta, de encontrar os olhares de um cão na rua, do abraço com os familiares ou do encontro e do esbarrão com as diferenças que a todo instante surgem diante de nós descuidadamente.
E em cada encontro, a imprevisibilidade e o desconhecido, as infinitas probabilidades e possibilidades se nos abrimos para a generosidade da vida que flui pelo sentimento e ativa um sistema cognitivo em nós que ainda não suspeitamos existir.
Aprendemos o tempo todo com essa disponibilidade e com essa efetiva e afetiva emoção vital.
O universo restrito da objetividade perde sentido para as sensações subjetivas sem julgamentos ou apriorismos.
Aceitação é a única possibilidade para perceber o caos e sentir a expansão do infinito presencial.
Tais mecanismos de afetação podem ser aplicados a tudo na vida e aqui vou exprimir como ele pode invadir um cinema do caos e como os liames da teia viva surgem inesperadamente na tela se a captura for de aceitação.
O cinema do caos é o das sensações e dos pressentimentos, pois as sensações movem o corpo antes que ele se organize para a ação, e só depois de capturado o instante, poderemos revelar o que havia de inesperado na captura.
Compreender o movimento instilado é irrelevante. Na destilação que revela mais que a caricatura, pois o rosto do presente não poderia jamais existir antes da captura.
Instilar é um verbo bitransitivo e traduz aproximações com o cinema do caos, pois supõe um fazer penetrar, lento, vertendo gota a gota até a constatação da mistura e do mistério. Esse gota a gota é o instante que flui rápido para todos aqueles que se apressam em direção ao futuro, mas que é caudaloso para quem contempla e escorre num presente infinito.
O que move a mão com o dispositivo ocular da captura? A contemplação passiva move a mão.
O que aciona o obturador? O coração, no sentido de que ali reside o sentimento, ou como ocorre em outras culturas, o estômago.
O que movimenta e direciona o conjunto para efetuar a conexão? A egrégora expansiva que acolheu há muito seu servidor.
O estatuto que permite imaginar todo o conjunto está permanentemente circulado por energias convidativas. Não há, então, dias de trabalho ou de descanso, pois como a vida, tudo acontece a todo instante.
Mas também como a vida, a sucessão de fragmentos compõe musicalidades surpreendentes e precisamos abrir o fluxo para as composições parciais que serão retiradas do fluxo impunemente.
Aqui a arte tem um significado maior: devemos servir ao humano terra para não servir ao poder. E o humano terra é toda vida, pois tudo que vive é teu próximo. O especismo desaparece e tudo se torna fluxo, como é. E o fluxo é manifesto, ou pode ser manifesto no instante em que é retirado para um catálogo de vertigens e de suspeitas a cumprir protocolos de caos.
E toda tecnologia é só parte da magia para o inventário do instante.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), escritor e permacultor
*Well Darwin é fazedor de filmes, poeta e produtor