1º de maio marcado pela criminalização da pobreza e o desrespeito com a classe trabalhadora
Camila koenigstein Sacoman* e Janaina Porto Sobreira*,
Estamos atravessando quiçá um dos momentos mais complexos da história atual. A pandemia que atingiu o mundo fez surgir novas subjetividades e entendimentos sobre o funcionamento da sociedade, dentro dessa nova realidade é notório o aumento de análises maniqueístas que impossibilitam o pensamento crítico.
Quando falamos de um continente repleto de contradições, é muito difícil determinar o limite entre o “bom” comportamento e o indevido. Em recente entrevista, o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica disse:
“As sociedades modernas são imensamente complexas. É inevitável que na sociedade contemporânea existam diversos pontos de vista, divergências, diferenças, percepções… A ideia de um mundo pintado como perfeito não existe, é uma quimera”.
Desde março de 2020, com os horrores advindos da pandemia, acompanhamos na América Latina o crescimento de falas reducionistas, que não colaboram para a compreensão do momento que, não é somente de emergência sanitária, mas também de precarização do trabalho e aumento desenfreado da pobreza, o que expõe que certo comportamento é procedente do desmantelamento da vida política e consequentemente da vida pública.
Se por um lado as mazelas sociais saltaram aos olhos de todos, por outro ficou nítido a criação de discursos que buscam justificar a desumanidade dentro do cenário distópico que já provocou somente no Brasil a morte de 400 mil pessoas.
As mudanças que ocorreram nos mais variados âmbitos expõem as estruturas arcaicas que ainda estão presentes no continente. O racismo, o classismo e o machismo mostram toda a sua força por meio do aumento de feminicídios, assassinatos de jovens negros/as, campesinos, indígenas e o crescimento da aporofobia que sempre esteve presente, mas ganhou uma nova roupagem dentro do contexto pandémico.
No Brasil, mais de 116.8 milhões de pessoas não têm comida na mesa ou estão em situação de insegurança alimentar, porém, não vemos manifestações contundentes por parte da população. A sociedade civil, em total desamparo, não consegue reagir ao momento, a anomia é generalizada e expressões como: fique em casa, proteja o outro, seja responsável, são altamente utilizadas, mas carecem de profundidade quando pensamos no cotidiano de milhares de famílias abandonadas pelo sistema.
É aterrador quanto o privado ganhou espaço e como o engajamento político foi reduzido a hashtags. Os cidadãos perderam a crença na própria voz e na sua atuação como sujeitos de direito, oportunizando o avanço do neoliberalismo na sua forma mais desumana.
Ao diminuir a culpa do Estado e colocar nos sujeitos fragilizados o peso e toda a responsabilidade pelo alastramento da doença, é esquecido o papel dos governantes no que tange à formação de consciência sobre a situação e principalmente a criação de redes de apoio diante do período de grandes incertezas, principalmente para a classe trabalhadora que segue exposta e desrespeitada, quando não sobrevivendo na informalidade, sem direitos trabalhistas.
Estamos presenciando a introjeção do neoliberalismo em doses cavalares nos indivíduos e se outrora o trabalho era marcado com a presença de um supervisor na vigília da labuta de homens e mulheres, agora são os próprios trabalhadores que carregam o peso de uma autovigilância. O Estado é praticamente inexistente e psicótico, a sociedade civil está desamparada e o empresariado é a força nessa fase de enfraquecimento de todos os projetos progressistas desenvolvidos durante a gestão de Lula.
Ja no século XIX, Alexis de Tocqueville já sinalizava o poder do individualismo proveniente do capital e o perigo de determinado comportamento dentro da sociedade:
“Cada pessoa, mergulhada em si mesma, comporta-se como se fora estranha ao destino de todas as demais. Seus filhos e seus amigos constituem para ela a totalidade da espécie humana. Em suas transações com seus concidadãos, pode misturar-se a eles – sem, no entanto, vê-los, tocá-los –, mas não os sente, existe apenas em si mesma e para si mesma. E se, nessas condições, um certo sentido de família ainda permanecer em sua mente, já não lhe resta sentido de sociedade.” – Alexis Tocqueville.
A cobrança de políticas públicas, algo fundamental, ganhou status secundário, precisamente quando auxílios de emergência são tão necessários e tantos foram retirados.
No atual momento, as camadas mais frágeis estão expostas a diversas violências, no entanto, não fica evidente a preocupação dos grupos privilegiados, o que não é novidade em um país em que os 5% mais ricos ficam com 50% da renda nacional.
Observemos como o trabalhador, hoje, é responsável pela disseminação da peste, criando a figura do bode expiatório, algo altamente utilizado em momentos de crises econômicas, conflitos e tensões sociais nos mais diversos períodos históricos.
Vale lembrar que a peste negra modificou a estrutura social em várias regiões da Europa. Durante quatro anos, 25 milhões de pessoas, um terço da população europeia, faleceu em decorrência da enfermidade. Nesse período, muitas práticas foram usadas para combater a proliferação da doença, no entanto, em determinado momento, “o outro”, considerado sujeito de segunda categoria, foi responsabilizado – o que ilumina o desejo humano de criar o responsável, aquele que aplaca minha angústia e medo constante da morte, sem observar os poderes responsáveis pela intensificação da calamidade.
“Sodomitas, prostitutas e homossexuais chegaram a ser expulsos de Florença, na Itália, acusados de serem os transmissores da peste. Na busca desesperada pelos culpados, muita gente chegou a acusar os judeus. Diziam que eles envenenavam os poços, disseminando a doença entre os cristãos”, conta o historiador Ricardo Gomes.
O quase jargão “fique em casa”, embora tenha muito sentido, sobretudo quando pensamos nas aglomerações completamente desnecessárias, gerou um forte dispositivo de agressividade, pois forneceu uma espécie de justificativa para camuflar diversos preconceitos incrustados há séculos no país, de forma especial direcionado aos que, sem opção, saem às ruas para trabalhar, o que evidencia o julgamento impiedoso da classe média e ricos que ignoram a necessidade de garantir o sustento diário.
De março até agora, presenciamos o aumento dos aparatos repressivos do Estado aos mais pobres e a negligência por parte do poder público em todos os sentidos. Embora não queiram estabelecer determinadas conexões, é preciso lembrar que Jair Messias Bolsonaro e seu modelo de governabilidade é a representação do neoliberalismo, e carrega a responsabilidade do mal gerenciamento da crise sanitária, agravando os problemas que já estavam presentes anteriormente, e que agora se alastraram de maneira descontrolada.
“De acordo com dados do Boletim Epidemiológico 13 – Doença pelo novo Coronavírus (COVID-19), lançado em 08/04/2021 pelo governo do Estado do Ceará, foram 42 mortes de crianças e adolescentes (0-19 anos) registradas de janeiro a 06/04 de 2021. Ou seja, a morte por homicídios é 2,6 vezes mais letal que a morte por Covid-19 entre crianças e adolescentes no Estado […] o contexto de acirramentos dos confrontos territoriais, o acesso precário as políticas socioassistenciais e a falta de ações coordenadas e específicas para o enfrentamento de homicídios de crianças e adolescentes, aprofundaram um contexto que já era preocupante antes do cenário de pandemia”. – Centro de Defesa da Criança e Adolescente (CEDECA)
Nesse sentido, ignorar a materialidade, criminalizar os jovens pobres e trabalhadores, se tornou prática, e o assunto segue sem espaço dentro dos meios de comunicação hegemônicos.
Quando notamos o conteúdo de textos sobre a pandemia que circulam massivamente nas redes sociais, fica clara a fragilidade dos mais desprotegidos, o que torna evidente a forte culpabilização de homens e mulheres que necessitam sair diariamente de suas casas.
Em recente entrevista o companheiro de uma das cantoras mais famosas do Brasil não titubeou em falar sobre o sua funcionária e a certeza de que esta havia contaminado todos os habitantes da residência. Sem nenhum constrangimento e com bastante naturalidade dissertou sobre a pandemia, expondo o elitismo que permeia os que podem ficar no lar, projetando no outro a responsabilidade pela enfermidade.
“A Covid chegou por uma funcionária, uma cozinheira. O que a gente pode fazer, a gente fez. Uma semana a funcionária passava aqui e na outra folgava, mas agora está tudo bem.”
Curiosamente, os mesmos que criminalizam os trabalhadores que estão nas ruas – que somente no Brasil atingem a marca de 39,6% da população ocupada – continuam usando os serviços e a mão de obra de todo um corpo social negligenciado e exposto, que necessita trabalhar, mas segue com medo de um possível contágio, no entanto, não encontram outras opções.
A falta de empatia é uma marca do período, mas também do capitalismo que prega a proteção da vida privada antes de qualquer coisa. Os ricos são mimados e irresponsáveis, enquanto os pobres e trabalhadores são perigosos e ignorantes (comparação assimétrica) e devem suportar a fome, sem nenhum tipo de auxílio estatal efetivo. São poucas as opções. Verdadeiramente é morrer de fome ou se expor e arriscar sobreviver à doença. O corpo do trabalhador sempre foi carne barata, e neste momento a preocupação centra-se nele como ser biológico que porta a enfermidade e pode transmiti-la, e não sujeito humano portador de direitos e desejo de viver com dignidade.
Em uma recente entrevista para o periódico Página/12, o psicoanalista argentino Jorge Alemán explicou os desdobramentos perigosos do atual momento. Crítico do modelo neoliberal, o autor levantou questões importantes que possibilitam certo aprofundamento sobre a pandemia, no entanto, praticamente fora do debate social.
O grande debate será entre igualdade e desigualdade; É verdade que todos somos mortais, mas também estamos absolutamente certos de que devemos conceber a igualdade da vida, não da morte. Se concebemos a igualdade de vida, esta pandemia está evidentemente derrubando todas as ficções que nos últimos anos apoiaram o neoliberalismo. Por exemplo, o mantra é que o empresariado cria a riqueza, mas sem os trabalhadores que vendem seu trabalho duro este mundo não subsiste. Se não acenderem a luz, se não limparem, tudo cai. É interessante aqui que seria um momento marxista para a humanidade, mas por enquanto não há notícias do surgimento de um sujeito igualitário.
Jorge Alemán
Embora o autor diga que a pandemia evidencia a necessidade da força de trabalho, e que sem ela há o rompimento das estruturas que mantêm o capital ativo, também é verdade que está cada vez mais distante o sujeito igualitário e a valorização da classe trabalhadora.
Em tempos de pandemia observamos o mesmo comportamento adotado há séculos por aqueles que acreditam que sua existência é mais importante que a do outro, gerando em suas mentes o bode expiatório.
Como sempre os abastados nunca crescem, somente se equivocam e pedem desculpas, já os corpos fragilizados e oprimidos seguem levando o peso e a culpa de todo o mal-estar instalado pelo neoliberalismo.
*Camila Koenigstein Sacoman é graduada e Licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica – SP. Pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).
*Janaina Porto Sobreira é licenciada, Bacharela e Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente é professora substituta do departamento de história da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Bibliografia
Sennett, Richard. O declínio do homem público. 1ed. Rio de janeiro: Record. 2014.
http://www.ihu.unisinos.br/602383-os-virus-afetam-principalmente-os-pobre
https://academic.oup.com/ereh/article/17/4/408/499216