O silêncio sobre a violência na Colômbia
Camila Koenigstein* e Andrea Guzmán*
No início de abril, o ex-ministro da Fazenda Alberto Carrasquilla anunciou um plano de reforma tributária A princípio, a medida gerou mais impacto na classe média, que já vinha sofrendo com os problemas econômicos provocados pela pandemia, iniciada em março de 2020. No entanto, diante do contexto complexo de precarização em todos os aspectos sociais, houve o crescimento do sentimento de indignação na população de forma geral. Os altos níveis de corrupção – mais a postura ditatorial do atual presidente, que insiste em questionar constantemente as medidas tomadas pelo Judiciário – geraram uma onda de protestos que se espalhou por todo o país.
Desde 28 de abril, parte da população está permanentemente ocupando os espaços e as vias públicas, sob o mote: “Se o povo está na rua em meio a uma pandemia é porque o governo é mais perigoso que o vírus”. Jovens de regiões completamente abandonadas pelo Estado, indígenas (miga indígena) , mulheres, campesinos e estudantes se uniram para reivindicar todos os direitos sociais que por anos lhes são negados.
As décadas de violência geradas pelo governo de Álvaro Uribe, o narcotráfico e as guerrilhas levaram à eclosão de uma enorme revolta popular.
Embora tenha sido firmado acordo de paz em 2016, não ocorreu a diminuição da violência nas zonas rurais e empobrecidas do país, a Colômbia segue sendo um dos países que mais matam defensores de direitos humanos.
É difícil dimensionar o problema. A verdade é que não afeta a todos os colombianos por igual. Violência contra
os líderes sociais esta concentrada nas regiões marginalizadas e maltratadas pelo o conflito armado. As vítimas são pessoas que defendem o direitos humanos de suas comunidades, pessoas que rejeitam projetos de extração de minerais que são prejudiciais ao meio ambiente, ou aqueles exigindo uma distribuição mais justa da terra, e também a ex-combatentes das FARC. Em suma, os cidadãos que praticam a democracia são estigmatizados, perseguidos e assassinados.
A violência coloca em risco o Acordo de Paz e a própria paz no país.
Stefan Peters (Colombo-Instituto Alemão para a Paz (CAPAZ
O governo de Iván Duque, assim como o de Messias Bolsonaro, tem como princípio a expansão do neoliberalismo na sua maior potência. A compra de aviões de combate dentro de um contexto sanitário de emergência foi só uma pequena mostra dos valores que regem o mandato do atual presidente.
Como sabemos, os movimentos insurgentes brotam espontaneamente, trata-se de um acúmulo de frustrações que criam em determinado momento histórico um cenário em que a linguagem perde a força e os corpos entram como forma de expor todas contradições sociais.
Os confrontos começaram na cidade de Cali, na parte sul ocidental da Colômbia. A cidade, que na contramão do restante do país sempre nutriu um rechaço à figura de Iván Duque, assim como do seu mentor ideológico, o ex-presidente Álvaro Uribe, foi responsável pelo processo de mobilizações sociais. É importante ressaltar que Cali
está localizada geograficamente em uma região composta de uma população majoritariamente negra, indígena e campesina, ou seja, os que mais sentem os golpes violentos do Estado.
As manifestações surgiram por meio da convocação de sindicatos, estudantes, professores e todo um corpo social negligenciado.
O que era para ser um movimento pacífico ganhou contornos inesperados. Após o primeiro momento de marchas, o governo estadual decidiu colocar nas ruas uma subcategoria da polícia com a justificativa de manter a “ordem” e a “tranquilidade” dos protestantes. Porém, desde então o cenário é de barbárie.
Posteriormente, o que estava concentrado na região do Vale do Cauca se espalhou por todo o país. A pressão popular fez com que a reforma fosse anulada, mas a população percebeu que o espaço público lhe pertence e que nele é possível questionar e alterar a ordem social.
Até o momento, as violações aos direitos humanos são aterradoras. De 28 de abril até 11 de maio, já houve: 41 assassinatos (em sua maioria, de homens jovens), 963 prisões arbitrárias, 12 casos de violência sexual contra mulheres, 28 vítimas de mutilação nos olhos e 548 desaparecimentos.
Ainda que o contexto seja desfavorável, uma vez que a pandemia segue matando diariamente, gerando até o momento a morte de 79.760 de cidadãos, as manifestações se mantiveram por todo o país e as reivindicações já não estão mais centralizadas. O movimento ganhou força e ao mesmo tempo expõe outra face da
população colombiana.
Essa face é jovem, furiosa e ávida por seus direitos, já não aceita facilmente negociações, pois a truculência do Estado não cessa, mesmo que o presidente tenha feito pronunciamentos que poderiam ser interpretados como um sinal de
avanço dentro da crise que se instalou.
As partes mais vulneráveis da sociedade civil ainda desejam que ocorram reformas em outros âmbitos, por exemplo: reforma no setor educacional (educação superior gratuita e de qualidade), melhores condições na área da saúde, proteção aos líderes comunitários e, principalmente, o cumprimento dos acordos de paz que desde 2016 são constantemente violados.
Os jovens que hoje ocupam a linha de frente e as barricadas já não estão sozinhos.
A miga indígena aderiu aos protesto.Contudo,a aproximação da agrupação nas partes de maior conflito gerou mais repressão e expôs o colonialismo presente no continente. Muitos indivíduos, ditos “sujeitos de bem”, saíram às ruas, atacando com armas de fogo os manifestantes e desqualificando a importância do movimento dentro indigena dentro do contexto de reivindicações sociais.
Nos últimos dias, um veículo de comunicação importante fez a separação entre cidadãos e indígenas, evidenciando um pensamento ainda vigente em todo o continente, o de que o outro que não é o branco, letrado ou “criollo” tem que ser desprovido dos seus direitos civis.
Embora as imagens de violência extrema contra os mais desprotegidos produzam tristeza, também geram reflexões sobre a juventude latino-americana. Cansados da falta de perspectiva de uma vida digna, esses cidadãos colombianos buscam agora, talvez, uma morte honrosa. Mães saem para cozinhar para os filhos na rua, um cenário de guerra, como se soubessem que a morte ou o desaparecimento pode ocorrer a qualquer momento, mas entendem que essa é a única via que sobrou.
Assim, o direito de viver está demarcado por toda uma estrutura desigual, um projeto histórico em curso há mais de 500 anos que busca explorar os corpos considerados inferiores para depois descartá-los.
A América Latina ainda está nas mãos das elites criollas, e a junção do colonialismo,do neoliberalismo e do fracasso dos projetos progressistas forma esse quadro arcaico, distópico, repleto de mortes, mas que não produz reação nas camadas abastadas da sociedade, algo que verdadeiramente nunca ocorreu, pois os que morrem são os mesmos que morreram quando tudo começou.
- (1) O projeto apresentado no dia 15 de abril tinha como finalidade o aumento de impostos para
financiar os gastos públicos do governo, pelo aumento da base de arrecadação do imposto de renda
e sobre serviços básicos e sobre valor agregado (IVA). No entanto, desde 2019 já estava em
andamento a chamada lei de reativação econômica que buscava diminuir a carga tributária do setor
empresarial colombiano. Muitas empresas agroindustriais atualmente têm menos impostos e assim
pensam que vão impulsionar o setor do agronegócio no país, atingindo diretamente a agricultura
familiar e a subsistência. - (2) Segundo Martha Peralta Epieyú, presidente do Movimento Alternativo Indigena e Social (MAIS)”o
significado de miga deriva do conhecimento que tinham os indígenas sobre o trabalho dividido para
“o bem estar comum. É o encontro no qual circula a palavra e se pensa e se constrói o bom viver”. A
miga acredita na mobilização pacífica como forma de buscar soluções para os problemas
comunitarios.
*Camila Koenigstein. Graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP, e pós-graduada em Sociopsicologia, pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).
*Liliana Andrea Guzmán. Graduada em História, pela Universidad del Valle (Cali – Colômbia). Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).
Bibliografia
https://www.dw.com/es/asesinatos-de-l%C3%ADderes-sociales-colombia-mata-a-quienes-practican-la-democracia-en-las-regiones/a-56218920
https://www.redalyc.org/pdf/439/43942944004.pdf
https://psicologiaymente.com/social/biopoder
http://www.indepaz.org.co/cifras-de-violencia-policial-en-el-paro-nacional/
https://www.minsalud.gov.co/salud/publica/PET/Paginas/Covid-19_copia.aspx
https://www.publimetro.co/co/entretenimiento/2021/05/10/le-dan-palo-a-noticias-caracol-por-controvertido-titular-sobre-los-indigenas-en-cali.html