Colombianos completam 50 dias em greve nacional sob violência sistêmica do Estado
São 76 os mortos durante a paralisação, mas desde o início do ano país já registra 41 chacinas, com 138 assassinatos
Michele de Mello, Brasil de Fato
A Colômbia chamou a atenção internacional no último mês pelos informes e denúncias em fotos, vídeo e relatos nas redes sociais da brutalidade policial com que foram reprimidos os protestos que acompanham a greve geral, que já dura 50 dias.
Os números também confirmam que a violência no país é estrutural. Com a atual paralisação, as práticas excessivas das forças militares e os conflitos armados que já existiam no interior do território colombiano passaram a ser vistos também nas grandes cidades.
Em 50 dias de greve, foram contabilizados 76 homicídios, 3.789 denúncias de violência policial e 346 desaparecidos, segundo levantamento de organizações de direitos humanos. A repressão, entretanto, não impediu a manifestação popular. No mesmo período, foram mantidos mais de 3.600 bloqueios de estradas e realizadas 666 manifestações.
“O controle o militar dos protestos foi focado nos jovens. Não é qualquer jovem, é o jovem pobre. São os moradores das comunas, dos bairros pobres que sofreram a maior repressão militar contra os atos”, relata o psiquiatra e membro da Rede Popular de Primeiros Socorros Juan David Páramo.
A cifra de desaparecidos tem variado constantemente, na medida que mais pessoas são encontradas mortas. Como Daniel Stiven, um adolescente de 16 anos, capturado por agentes do Esquadrão Movil Antidistúrbios (Esmad) em Cali, dado inicialmente como desaparecido, no dia 28 de maio. Dois dias depois seu corpo foi encontrado incinerado dentro de um shopping center.
Nos primeiros seis meses de 2021 também já foram registrados 41 massacres, com 138 vítimas, segundo o Instituto de Desenvolvimento da Paz (Indepaz).
“É uma violência generalizada que também é estrutural. Optamos por fazer denúncias às instâncias que o Estado nos oferece, porque também temos que dar a batalha por aí. Mas apoiar-nos principalmente na grande solidariedade da comunidade internacional. Abrimos expediente na Procuradoria Geral da República para iniciar processos disciplinares e punir funcionários da polícia e as autoridades administrativas, que também são responsáveis por essas violações”, declarou a advogada colombiana Isabel Fajardo, da Fundação Lazos (Laços) de Dignidade.
Depois de cinco anos dos Acordos de Paz, o país permanece em guerra. No período, se contabiliza 1091 líderes sociais e ex-guerrilheiros assassinados, sendo 71 vítimas somente em 2021.
A falta de segurança também é a principal causa dos desalojamentos forçados no interior do país. De acordo com a Defensoria Pública, 27.435 colombianos foram obrigados a abandonar seu território no primeiro trimestre do ano, um número 96% superior ao registrado em 2020.
Entre os fatores históricos que influenciam nessa realidade, estão mais de 50 anos de conflito armado, a existência do paramilitarismo e a presença de tropas militares dos Estados Unidos no país, essas há mais de 20 anos alojadas em território colombiano.
Através do Plano Colômbia, foram enviados cerca de US$ 15 bilhões em tecnologia militar de Washington para Bogotá. Com a sua criação, durante o governo de Andrés Pastrana em 2002, o Esquadrão Móvil Antidistúrbios (Esmad), que seria um grupo de elite temporário, passou a ser permanente e foi incluído no plano de defesa tutelado pelo Pentágono.
No ano passado, o presidente da República, Iván Duque, repassou cerca de US$ 3 milhões (R$ 15,5 milhões) para compra de munições para o Esmad.
“Uma autoridade da alta corte de Justiça disse ao país que o Esquadrão Móvil Antidistúrbios é um esquadrão banhado em sangue e de graves violações aos direitos humanos”, diz Isabel Fajardo, da Fundação Lazos de Dignidad.
Depois de prometer assinar uma série de pré-acordos e garantias de segurança com o Comitê Nacional de Paralisação, Duque decretou a militarização de oito estados e 13 municípios.
Além disso, o Congresso colombiano, de maioria governista, não aprovou a moção de censura proposta pela bancada opositora, que responsabilizava o ministro de Defesa, Diego Molano, pela repressão desatada no país.
A impunidade no Executivo e no Legislativo também se estende às forças de segurança.
“Muitos casos terminam sendo levados à Justiça Penal Militar. Na Colômbia, isso significa que é um policial julgando o outro. Quais garantias de verdade, reparação e não repetição e de justiça nós encontramos? Ainda que internacionalmente nos digam que as graves violações aos direitos humanos devem ser tramitadas pela justiça ordinária. Então, encontramos um cenário de impunidade completa”, denuncia a advogada Isabel Fajardo.
“Há uma exigência generalizada de uma reforma estrutural da polícia. Mas se há algo inegociável para o governo atual são as forças armadas: exército e polícia são assuntos inegociáveis. Por isso a necessidade de exigir nas ruas uma reforma policial, mas também a judicialização dos casos denunciados”, defende a vereadora pela cidade de Bogotá Heidy Sánchez Barreto (Unión Patriótica).
Nesse contexto de falta de proteção do Estado, movimentos camponeses, negros e indígenas passaram a criar grupos de autodefesa popular.
A Guarda Camponesa existe há dois anos e aglutina cerca de 700 agricultores em distintas regiões do interior do país e agora enviou representantes às cidades que são foco da greve geral.
“Surge essa necessidade de criar um instrumento organizativo para a defesa e proteção do território, já que historicamente nossos territórios foram afetados pelo paramilitarismo e pela força pública, que só aparece para agredir as pessoas e está a serviço das transnacionais”, afirmou Jaimer Ruben Ramírez da Guarda Camponesa.
O movimento indígena também criou uma Guarda a nível nacional tanto para a defesa das suas terras ancestrais, como para manter a cultura indígena viva, quando são obrigados a viver nas zonas urbanas.
“E, agora, estamos com a paralisação. Contamos com 200 guardas indígenas aqui na cidade de Bogotá, e isso tem sido fundamental, porque estamos unidos”, afirma Hernando Carpio, membro da Guarda Indígena da Colômbia.
Já o movimento negro fundou, em 2019, a Guarda Cimarrona, que reúne cerca de 100 jovens somente na capital. Quase todos vieram da região do Pacífico colombiano, tradicional zona rural cafeeira do país.
“Negro guerreiro significa cimarron. Nós somos negros guerreiros. Com a paralisação, nós levantamos uma espécie de governo próprio, já que o Estado não nos oferece a segurança que necessitamos. Em nenhum momento buscamos o confronto com ninguém. Durante os protestos, sempre evitamos o confronto”, relata Luis Chávez, membro do Guarda.
Também de maneira comunitária, foram criados comitês populares de saúde para prestar apoio aos manifestantes e às comunidades ao redor dos pontos de concentração da greve geral.
“Num contexto de conflito armado, estamos fazendo intervenção humanitária, pela defesa da vida e dos direitos humanos. Tentamos gerar interlocução com autoridades sanitárias locais, porque seu apoio é necessário. Uma coisa é realizar os primeiros socorros durante uma manifestação na rua, outra coisa é a derivação de centros assistenciais”, explica Juan David Páramo.
É comum encontrar casas com vidros quebrados e relatos de que a polícia lança bombas de gás lacrimogêneo para dentro das residências que apoiam os manifestantes. A prática também é rotineira nos territórios do interior.
“É o próprio governo. Quando as forças públicas chegam é que as pessoas são obrigadas a deixar seus territórios, tanto indígenas, como negros, camponeses”, denuncia Simon Baloy, da Guarda Cimarrona.
As centrais sindicais suspenderam sua participação nos bloqueios de rua, mas outros setores sociais, aglutinados em assembleias populares, decidiram permanecem mobilizados com convocatórias nacionais todas as quartas-feiras para exigir o direito à paz, segurança e justiça.
“A sociedade colombiana está cansada da pobreza, dos massacres, da violência e outros problemas estruturais. Nossa esperança é poder construir a partir das bases uma possibilidade de país diferente”, conclui Fajardo.