Teorias da conspiração x vacinas: um dos países que mais comprou doses sofre para imunizar a população
Raphael Lima, jornalista formado pela PUC-Rio e pós-graduado em Crise e Ação Humanitária pela Universidade de Lisboa, juntamente com Rodrigo Monteiro de Carvalho, mestre em História Comparada pela UFRJ e doutorando em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, estiveram por alguns dias na Sérvia para cobrir os obstáculos que o país dos Balcãs tem enfrentado para imunizar sua população.
Através de uma reportagem sucinta e muito esclarecedora, Raphael e Rodrigo conseguem explorar o impacto das teorias da conspiração sobre as vacinas contra a COVID-19 dentro do ambiente social sérvio. A matéria ainda conta com uma entrevista com um professor de História e Política do Sudeste Europeu. Confira abaixo na íntegra o texto e produção da reportagem:
O Brasiltem capacidade de vacinar 2,5 milhões de pessoas diariamente, mas a falta de insumos para produção de vacinas e as omissões do Governo Federal na compra de doses fez com que o país não atingisse este número nenhuma vez desde o início da imunização. Além das questões de logística e animosidades com a China, principal fornecedora de material para produção de doses, as fake news e teorias da conspiração atrasam ainda mais a capacidade de imunização da população.
Saiba mais:
Brasil tem a pior gestão mundial da pandemia, diz consultoria britânica
“Brasil não levou a pandemia a sério e muitos morreram desnecessariamente”, diz Nobel de Medicina
Terceira onda da Covid-19 no Brasil pode ser muito mais mortal, alertam cientistas
Segundo a União pró-Vacina (UPVacina, iniciativa articulada pelo Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto da USP em parceria com instituições acadêmicas e científicas), 368 notícias falsas sobre vacinas contra a Covid-19 foram publicadas no Facebook, 111 delas postadas em dezembro e 257, em janeiro, justamente no período do início da imunização no mundo e no Brasil. Em agosto de 2020, já se notava um aumento de quase 400% de fake news sobre vacinas.
Este tipo de conteúdo não é caso específico do Brasil. A Sérvia, país localizado na península balcânica, na Europa, assolado por guerras nos anos 90, garantiu antecipadamente quatro diferentes vacinas.
“O grande contingente de vacinas vem da China (Sinopharm), mas também temos um grande número de Pfizer-Biontech, a Sputnik V, a russa, e a Astrazeneca-Oxford”, explicou Stefan Vladslavjev, coordenador do Belgrade Fund for Political Excellence. Além das doses adquiridas, a Sérvia deu início, em maio, à produção da Sputnik V, e se prepara para em breve produzir no país também a chinesa Sinopharm.
Embora a falta de doses não seja um problema, o número de pessoas dispostas a se vacinar está bem abaixo do esperado. Até o final de maio, 37% dos sérvios tinham recebido pelo menos uma dose e 30% já haviam sido completamente imunizados. Número bastante acima da realidade brasileira, mas ainda aquém da capacidade de vacinação do país.
Apesar do investimento, falta transparência do governo, como explica Aleksandra Tomanic, diretora executiva do European Fund for the Balkans:
“É muito bom que a Sérvia tenha vacinas e que aqui possamos escolher entre diferentes fornecedores e que os jovens tenham acesso. Mas é apenas isso, infelizmente. Não sabemos como a Sérvia comprou as vacinas, não sabemos os custos financeiros nem os custos políticos. O que vemos é que o orçamento estourou em abril e quando não temos um balanço é muito fácil comprar o quer que seja e até mesmo ser generoso com seus vizinhos quando ninguém está controlando suas contas enquanto se está gastando dinheiro público. Toda a compra de equipamentos médico e vacinas, todos os gastos foram declarados segredos de estado, então não temos absolutamente nenhuma ideia de onde o material veio nem o real custo de cada coisa”.
Com doses sobrando, no último fim de semana de março, as fronteiras sérvias foram abertas para que cidadãos dos países vizinhos pudessem também se imunizar. Este foi o pontapé inicial na “diplomacia da vacina”, movimento que tenta aumentar o prestígio político do país em uma região historicamente marcada por desconfianças entre nações.
Mas o turismo da vacina durou pouco, e foi atribuído por especialistas apenas à proximidade do vencimento da validade de algumas doses.
“O Kosovo não quis receber nenhuma doação de vacinas da Sérvia, então a população do Kosovo veio até a Sérvia para ser vacinada. Durante este processo, acabou sendo aberto para todos. Veio gente de todas as regiões, Albânia, Alemanha, Bósnia. Embora eu fique realmente feliz com essa cooperação, pelo lado epidemiológico não sei se foi uma boa ideia. Milhares de pessoas entrando no país, sem teste, sem nada, só para ser vacinado. Elas (as vacinas) estavam (com validade) expirando, mas dava para fazer de forma organizada. Na fronteira, ou doá-las para os países”, afirmou Tomanic.
No início da campanha do governo sérvio, quando a procura por vacinas era ainda alta, chegaram a ser aplicadas em torno de 7 mil doses diárias. Agora, no entanto, há pouco movimento e as cabines de aplicação permanecem quase todas vazias.
“O governo falhou em construir uma campanha adequada de vacinação antecipadamente. Então chegamos a esse ponto em que temos vacinas, mas não temos pessoas suficientes que querem se vacinar. Então o governo agora separou alguns setores, como exército, policiais, para obrigá-los a tomar vacina, mas não há legislação que os obrigue a isso. Não há uma estratégia clara, nem um plano a longo prazo. Vemos agora tentativas financeiras, como pagar 25 euros para que as pessoas se vacinem”, ressaltou Tomanic.
Na cidade de Novi Pazar, a cerca de 250 quilômetros da capital Belgrado, a procura por vacinas é ínfima. Menos de 25% de seus habitantes decidiu se imunizar, parcela bem abaixo da média nacional. Situada próximo às fronteiras com Montenegro e com o Kosovo, aqui se avista mais mesquitas do que igrejas. Em contraste com a população da Sérvia como um todo, que é maioritariamente cristã ortodoxa, 82% dos residentes de Novi Pazar são muçulmanos. A cidade, que tem população de pouco mais de 70 mil pessoas, colapsou durante a segunda onda de Covid-19 no país, em julho de 2020. Hospitais ficaram sem equipamentos e a cidade chegou a registrar 300 casos diários e 100 óbitos em uma semana.
“Essa crise mostrou que necessitamos de investimentos no setor público, infraestruturas, mas dependerá de nós exigir isso. Saúde, educação. Esta crise mostrou que as políticas de austeridades atingiram setores que nunca poderiam ter sido prejudicados”, concluiu Aleksandra Tomanic.
Conspirações x Vacinação
Florian Bieber, professor de História e Política do Sudeste Europeu da Universidade de Graz, na Áustria, que é um dos autores do relatório “O vírus suspeito: Conspirações e COVID-19 nos Balcãs”, afirma que além da falta de credibilidade do governo, a disseminação de notícias falsas e teorias da conspiração afeta a confiança de parte da população nas vacinas. Confira a entrevista completa com o professor:
– Como os Balcãs ocidentais e a Sérvia, especificamente, se diferenciam da União Europeia e do Ocidente?
O tipo de teorias da conspiração são muito similares às que encontramos pelo resto do mundo, e no Ocidente, em particular, a grande diferença é que nos Balcãs ocidentais, o número de pessoas que acreditam nessas conspirações, pelo menos até a data em que a pesquisa foi concluída, em outubro de 2020, é muito maior do que em qualquer outro lugar. Os números sugerem que 75% da população acreditam em teorias da conspiração sobre Covid, o que é muito mais alto do que se compararmos com países da União Europeia e Estados Unidos.
– Por que o senhor acredita que há esta diferença?
Acho que há duas razões: uma é a descrença geral no Estado, quero dizer, há uma grande desilusão com os Estados, em geral. Incertezas que, na última década, fizeram com que as pessoas desacreditassem nas autoridades, o que é menor em países mais bem estabelecidos, com governos consolidados. Pessoas que são críticas do governo acabam não acreditando neles, então acho que temos esta dinâmica, então temos estados mais autoritários. São pessoas que não acreditam no Estado, mesmo eles dizendo algo que é verdadeiro. Temos também muitos veículos de comunicação, incluindo jornais e revistas, disseminando teorias da conspiração sobre a pandemia. E encontramos este tipo de teorias não só sobre Covid, mas sobre outros fenômenos também. No caso da Sérvia, se você pesquisar nos grandes tabloides, praticamente todos os dias há uma nova teoria da conspiração disseminada, não só sobre Covid, mas sobre o Ocidente tentando destruir a Sérvia, outros grupos tentando buscar guerra contra a Sérvia, todos os tipos de teorias, que encontram um ambiente com solo muito fértil para ganharem força.
– Como estas teorias da conspiração afetam na vacinação?
Há uma clara relação entre pessoas que acreditam nessas teorias e pessoas que se recusam a tomar vacina. Em parte, porque obviamente as teorias criam um medo sobre a vacinação, e algumas pessoas creem que a vacinação pode ser usada para implantar chips nas pessoas, no caso da Sérvia, por exemplo, 33% das pessoas acreditam que disseminação do vírus serviu para que o Bill Gates coloque chips na população. É um número significativo de pessoas que não se vacinam por isso. Mas geralmente as teorias da conspiração criam este tipo de ambiente e as pessoas ficam relutantes em se vacinar. Mesmo a Sérvia tendo grande disponibilidade de vacinas, as pessoas continuam relutantes em se vacinar. Esta política de generosidade da Sérvia em doar vacinas para os países vizinhos se dá muito porque o governo é incapaz de vacinar a própria população porque ela não acredita no governo e crê cada vez mais em teorias da conspiração.
– Como a crença em teorias da conspiração segue as características geopolíticas na Sérvia?
Nós descobrimos que há teorias da conspiração mais anti-ocidentais, como é o caso da do Bill Gates, ou relacionadas com a da disseminação do vírus relacionada com a tecnologia 5G, ou com a que afirma que a indústria farmacêutica é responsável por espalhar a doença. Há as anti-chinesas, como as que dizem que o vírus foi deliberadamente desenvolvido pela China, ou por melhor dizer, “escapou” de um laboratório. Há diferentes tipos de conspirações: as possíveis, como a ideia de que o vírus pode ter escapado de um laboratório na China, mas que não é provada, mas também há as realmente bizarras, como a de que a tecnologia 5G disseminou o vírus, que obviamente foram rebatidas. Nós observamos que há na região uma linha divisória geopolítica. Na Sérvia, eu diria que uma parcela maior da população acredita em teorias da conspiração anti-ocidentais. Parcela maior que em outros países, como o Kosovo, onde as pessoas tente a acreditar mais em teorias anti-chinesas. Dessa forma, não é como se o vírus fosse o responsável por essa dinâmica, mas sim que as pessoas estejam interpretando o vírus e a vacinação pelas lentes de suas próprias visões geopolíticas. Vemos que a Sérvia adota uma política muito mais pró-China, assim como a cobertura da mídia, que tende a ser mais favorável à China, enquanto em outros países da região a China é vista sob um ângulo mais problemático e difícil. Então podemos observar como esses enquadramentos geopolíticos influenciam as percepções das pessoas em relação às teorias da conspiração.
– Os sérvios têm a chance de escolher entre diferentes tipos de vacina. Essas divisões geopolíticas também estariam condicionando a escolha das pessoas na hora de se vacinar?
Creio que a maneira como foi apresentada esta possibilidade de escolher a vacina que se deseja tomar acabou por reforçar essas divisões geopolíticas. Observamos que diferentes políticos de alto escalão da coalizão governista escolheram suas vacinas explicitamente em função de suas orientações geopolíticas. Tivemos alguns políticos mais favoráveis à Rússia enfatizando que tomaram a Sputnik, enquanto outros que advogam por políticas mais ocidentalizadas tomaram a Pfizer-Biontech, além do próprio Presidente Vucic, que preferiu a vacina chinesa. Dessa forma, nós vemos essas opções geopolíticas refletidas nas escolhas públicas das lideranças políticas. Não são fundamentadas em qualquer argumento científico, mas baseadas nas afinidades geopolíticas. E, claro, creio que o simples fato de oferecer uma escolha às pessoas foi uma forma deliberada de sinalizar para o público que seja qual for a preferência geopolítica pessoal, ela será atendida por uma das vacinas disponíveis. Mas tudo foi enquadrado mais pelo contexto geopolítico do que pelo o da medicina.
– O relatório menciona minorias que seriam mais vulneráveis tanto pelas teorias da conspiração, como também pela falta de confiança no governo. Qual a explicação para isso?
Os resultados que encontramos com relação às minorias são apenas indicativos, e não completamente representativos, porque as minorias são extratos muito menores da população total. Mas há uma tendência em toda a região de que as minorias acreditam mais em teorias da conspiração e são mais desconfiadas em relação ao Estado. Mas isso não é uma surpresa, porque as minorias costumam se sentir marginalizadas e não representadas pelo Estado. O Estado normalmente é visto como um agente da maioria, de modo que não surpreende que as minorias não confiem na autoridade estatal. E como resultado, elas passam a ser mais vulneráveis à teorias da conspiração como uma forma de não se sentirem cooptadas pela comunicação governamental. Nós observamos, por exemplo, que os sérvios do Kosovo, e repito que isso não é representativo, apenas um indicativo, são muito mais afeitos a acreditar em teorias da conspiração porque se encontram numa situação de muita precariedade política e envoltos em incertezas, além de estarem sendo bombardeados pela mídia sérvia que costuma promover essas teorias da conspiração. Assim, a combinação das incertezas geopolíticas com a situação precária das minorias faz com que esses grupos sejam mais vulneráveis.
– Então seria correto dizer que a falta de confiança nas autoridades governamentais também afeta a vontade da população em se vacinar?
Com toda a certeza! Creio que há um longo histórico de falta de confiança no Estado. Há episódios no passado que mostram o temor de que o governo teria se servido da medicina para promover políticas discriminatórias contra minorias. Há histórias do anos 80, por exemplo, em que albaneses do Kosovo temiam que médicos sérvios estivessem os envenenando. Estes eram apenas rumores, mas tiveram muita repercussão e serviram para mobilizar os lados opostos nos conflitos entre sérvios e albaneses. Assim, temos um longo histórico de minorias que não confiam no Estado e nos serviços médicos do governo, que são vistos como uma extensão do poder estatal. Então, se você não se confia no governo, passa também a não confiar nos serviços médicos, e pode também acreditar que as políticas sanitárias são usadas contra você. Vemos essa dinâmica ser replicada, de modo que não é surpreendente vermos a recusa de vacinas como uma continuidade de movimentos anteriores.
Para Bieber, o grande problema destas crenças da população vai além do risco envolvendo a crise sanitária pela pandemia, já que também está envolvida uma ameaça à democracia da região.
Assista a reportagem
*Lucien Vilhalva de Campos é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa e foi pesquisador visitante em Mídia, Política e Sociedade na Universidade de Düsseldorf.
*Raphael Lima é formado em Jornalismo pela PUR-Rio e pós-graduado em Crise e Ação Humanitária pela Universidade de Lisboa. Em 2014, criou o projeto Sociedade Dividida, que retrata separações entre povos pelo mundo. Já publicou dois livros: “Sociedade Dividida – Terra Santa” (Independente, 2015) e “Sociedade Dividida – Iugoslávia” (Ímã Editorial, 2018).
*Rodrigo Monteiro de Carvalho é mestre em História Comparada pela UFRJ, doutorando em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra e investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20, UC).