Para derrotar Bolsonaro é preciso acabar com a esquerda?
Anderson Pires*
Nunca vimos no Brasil um partido que chegou ao poder dizer que iria estabelecer o socialismo como modelo econômico, muito menos enfrentar o sistema tributário, que privilegia os que detém a propriedade e acumulam lucros e dividendos.
Mesmo assim, quem ousar apresentar políticas públicas que visem acabar com a fome, proporcionar moradia, saúde e educação pública para as camadas mais pobres será visto com desconfiança. Afinal, para se dividir o mínimo que seja, de onde se irá tirar?
Longe de qualquer embate ideológico entre capitalistas e socialistas, tivemos um processo de desconstrução das ações que visavam minimizar a situação de miserabilidade que parcela significativa da população sempre viveu. O básico direito de comer, para muitos, sempre foi inatingível.
Passamos por todo século XX e início do século XXI, convivendo com a fome e a falta de condições mínimas de dignidade. Para os privilegiados, isso dava-se em decorrência da falta de mérito daqueles que amargavam a condição indigna.
Mas atribuir a uma questão de meritocracia não era suficiente. Precisavam estabelecer o pecado original para aqueles que tentaram mudar parcialmente com essa lógica. Não é de hoje que se associa pobreza e criminalidade no Brasil.
Desconsideram todas as questões sociais envolvidas e tratam como se fosse uma coisa só, parte da gênese de um determinado segmento social. Dessa forma, atribuir a corrupção como o verdadeiro propósito de quem diz lutar contra a desigualdade, possibilita argumento para os que acreditam que a existência de pobres é necessária para que tenham riqueza.
Foi esse contexto que a Lava Jato ajudou a construir e os moralistas de direita utilizaram como justificativa para expurgar a esquerda do poder. Consequentemente, tudo que foi feito por um Governo que imputaram a pecha de corrupto, deve ser exorcizado com as bênçãos divinas.
Leia aqui todos os textos de Anderson Pires
Foi assim que elegeram Bolsonaro, que na presidência explicitou seu viés fascista amplificado pela pandemia. Diante disso, tirá-lo do poder passou a ser o objetivo maior. Porém, setores da política operam para que isso não represente uma ruptura com o liberalismo instalado no Brasil, muito menos uma troca de extremos. Para tanto, constroem a ideia de que uma candidatura de extrema-esquerda seria um risco de termos a reeleição do atual presidente.
Esse receio de uma candidatura de extrema-esquerda em condições de vencer as próximas eleições é uma fantasia completa. Na hora que tentam imputar a Lula e o PT a condição de extremistas, falseiam um enfretamento inexistente e criam o conceito de que a única alternativa para se amenizar isso, seria uma aliança com o centro (no caso à direita). Assim, quem já não é tão de esquerda será ainda mais próximo da direita.
Claro que tirar do poder quem ameaça a democracia é justificativa para uma coalisão ampla, mas isso não pode significar que todos os caminhos desaguam na direita e que partidos mais à esquerda devem ser eliminados. Esse pode ser um erro difícil de reparar.
A eleição de Lula em 2002 foi também a de muitos deputados dentro do campo progressista. Mesmo assim, ainda tivemos um Congresso majoritariamente de direita e conservador. Na perspectiva que se tem, em 2022 se produzirá algo pior.
Entre as possibilidades de oposição com verniz progressista, temos Lula como a principal opção e Ciro Gomes, que destina toda sua energia a convencer as viúvas do bolsonarismo, que é o melhor caminho para o antipetismo.
Acredita que a defesa do voto impresso e levantar a Bíblia, além de justificar sua fuga para Paris como um ato contra a corrupção, serão instrumentos para capitanear os arrependidos que votaram em Bolsonaro, mas ainda nutrem ódio pelo PT.
Leia: Ciro Gomes, o socialista de direita
Por outro lado, Lula faz movimentos que podem lhe render bons apoios do ponto de vista eleitoral. Mas na hora que opera para que lideranças de esquerda como Marcelo Freixo e Flávio Dino deixem seus partidos e ingressem em outro mais ao centro, com a justificativa de que isso possibilitará ampliar a base eleitoral, reforça o discurso que é necessário pender à direita para derrotar Bolsonaro, ao mesmo tempo retira ainda mais dos poucos espaços que a esquerda tem.
O pragmatismo eleitoral de Lula não pode servir de mecanismo para exclusão da esquerda. A lógica de que os palatáveis fiquem do seu lado e quem parecer radical demais passe longe pode até derrotar Bolsonaro, mas custará a exclusão de minorias e da pluralidade já tão limitada na política brasileira.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.