"Orgias" com crianças dentro da sede das Casas Bahia ocorreram até 2013
Três décadas de crimes sexuais: novas informações do caso Klein revelam detalhes ainda mais sórdidos do fundador das Casas Bahia
Ciro Barros, Clarissa Levy, Thiago Domenici, Andrea DiP, Agência Pública
“Depois do almoço a gente sentava e ele mandava colocar o filme. Era uma reportagem que conta a história dele, de como fugiu da guerra. Era sempre o mesmo [filme] e quando acabava todo mundo aplaudia”, relata Malu* sobre as últimas vezes em que diz ter frequentado, entre 2009 e 2013, o escritório de Samuel Klein, na sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul (SP).
Aos 43 anos, ela contou à Agência Pública como teria sido abusada pela primeira vez aos nove anos de idade, em 1987, em uma residência de veraneio do empresário em Santos (SP).
Além de Malu, mais quatro novas denunciantes — Paula, Joice, Roberta e Monique* — fizeram relatos sob anonimato, por medo de represálias. Paula relata que teria sofrido o primeiro abuso sexual com 13 anos de idade, em 1983 — depoimento que eleva para três décadas o período das acusações de crimes sexuais denunciados à reportagem publicada no dia 15 de abril.
Além dos abusos na infância e adolescência, as fontes relataram que perto do final da vida o rei do varejo — falecido em 2014 — recebia frequentemente mais de uma dezena de mulheres ou meninas na sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul. “Quanto mais velho, mais dinheiro ele tava dando. Aí atraia muito mais gente”, relatou Malu.
Saiba mais: Fundador das Casas Bahia estuprou menores durante 21 anos dentro da empresa
Entre 2009 e 2013, Malu diz ter visitado regularmente o andar da presidência das Casas Bahia onde teria participado o que classifica de “orgias” que preenchiam a rotina do empresário. No entorno de seus 90 anos, Samuel passava boa parte do seu tempo na sede da empresa, em uma espécie de loft adaptado para ele ao lado do escritório pessoal e das salas de reuniões, relatou. Segundo Malu, era ali que aconteciam as sessões de abuso: “É até chato falar disso”, desabafa. “Nessa época, entrava pro quarto 20, 30 meninas com ele”, revela.
Outra fonte, que não mantém contato com Malu, confirma o relato. Roberta conta que entre 2012 e 2013 era comum passarem dezenas de mulheres e meninas pelo escritório do empresário. “Algumas nem faziam nada com ele e pegavam o vale para trocar na loja [Casas Bahia] ou por dinheiro ou por mercadoria. Geralmente eram mil reais ou quinhentos que ele dava”, recorda.
Além dos novos depoimentos, a reportagem da Pública teve acesso a fotografias em que o empresário aparece cercado de adolescentes e mulheres — entre elas, Kathia Lemos, indicada como agenciadora de meninas por ao menos oito fontes.
Paula contou que esteve presente no dia do registro acima, em 2009, e que as meninas que foram ao encontro de Klein sofreram situações de abuso sexual. “Não tinha inocência nenhuma ali, ele recebia as meninas lá por um motivo”, diz ao descrever como elas, após o café, seriam levadas para o quarto anexo à sala de reuniões, onde ocorreriam os abusos.
Leia mais: Recrutada na escola, favorita do dono das Casas Bahia morreu aos 22 anos
Segundo as fontes entrevistadas, em ocasiões como a da foto, Klein teria oferecido refeições para as meninas e dado dinheiro para quem comparecesse. Tanto as imagens quanto as entrevistadas indicam que havia meninas adolescentes nos encontros com Klein. “Ele dava 500 reais para cada uma e escolhia as que iriam junto com ele para Angra [dos Reis], que já pegavam o helicóptero lá mesmo”, conta Malu.
Em dezembro de 2009, Samuel também aparece em fotografias junto com meninas jovens embarcando, desembarcando e no interior de dois helicópteros Agusta, modelo A109, com as marcas PP-HRK e PR-KCB. Segundo documentação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), naquele ano as aeronaves eram propriedade da Casas Bahia.
“Quem fala que não tinha menor de idade é mentira. Mente porque não quer prejudicar ele”, afirma Malu. Segundo ela e outras testemunhas, as meninas chegavam na sede da empresa ou pela garagem, à bordo de táxis já acostumados a prestar o serviço para o empresário, ou pela porta de entrada da loja, localizada andares abaixo do escritório de Klein.
Nessas visitas que Malu acompanhou até 2013, ela conta que além de altas somas em dinheiro, Klein teria oferecido também produtos da empresa. “Toda hora as mulheradas desciam pra pegar o que quisessem na loja. Um ar condicionado, uma lava roupa. A Lúcia confirmava lá de cima”.
Malu é mais uma denunciante que se refere a Lúcia Amélia Inácio, apontada também por outras mulheres e ex-funcionários como a secretária pessoal de Samuel, que seria a responsável pelos pagamentos das garotas. Procurada pela reportagem, Lúcia não retornou até a publicação.
Malu, Paula e Roberta reiteram ainda que o fluxo de meninas e mulheres subindo para o escritório de Klein era tratado com normalidade no entorno da empresa. “Uma coisa dessa não tem como esconder. Por mais que entrasse pela garagem, pelo estacionamento da loja, não tinha como esconder. Era muita gente, muito movimento de mulher. Todo mundo via”. Outras fontes ouvidas anteriormente apontaram a mesma dinâmica na sede da empresa em São Caetano do Sul.
Enquanto isso, no mundo dos negócios
As Casas Bahia passavam por uma reestruturação empresarial em 2009 — mesmo ano de algumas das imagens obtidas com exclusividade pela Pública. Três mulheres entrevistadas, que frequentavam o escritório de Klein na época, contam que se lembram do período de reorganização empresarial porque chamava atenção delas a frustração de Samuel em relação aos rumos do negócio.
Malu relata que foi marcante o dia em que Samuel soube pela primeira vez que “o filho [Michael] fez uma sociedade”, diz. “Eu tava lá no dia. Ele [Samuel] virou uma fera. Ele falou que nunca na vida precisou de sócio”. Malu diz que na ocasião, em 2009, Samuel teria ficado muito nervoso com a possibilidade de fusão da empresa e mandou a maior parte das meninas embora. “Até o médico teve que ir lá. A pressão dele subiu, ele passou mal”, relembra.
Em 4 de dezembro de 2009, foi anunciado publicamente um fato relevante aos acionistas. Nele, a família Klein consolidava um Acordo de Associação com o grupo Pão de Açúcar, que havia anteriormente incorporado o Ponto Frio para formar a Globex Utilidades S/A.
Em seu comunicado ao mercado, o texto do acordo explica que “para a Casas Bahia e seus controladores, essa operação proporcionará a oportunidade de perpetuidade da empresa criada por Samuel Klein há 57 anos. A união com o Grupo Pão de Açúcar irá promover acesso a avançadas práticas de governança corporativa, o que dará ainda mais transparência à nova empresa. E, nesse contexto, dentro dos padrões mais modernos de gestão, a família Klein terá um papel fundamental, contribuindo com seu conhecimento e experiência no mercado especializado”. Entre 2009 e 2010, Samuel foi um dos maiores acionistas da Globex Utilidades S/A.
Segundo uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, o período de estruturação do novo formato empresarial foi conturbado e, alguns meses após a assinatura do acordo das empresas, o patriarca Samuel, então com 86 anos, teria assumido as negociações ao lado do filho Michael Klein em busca de melhorias para a família Klein nos termos com o Pão de Açúcar — situação oficialmente comunicada aos investidores em abril de 2010.
Sobre este período, um dos ex-funcionário da família relata que os filhos teriam comprado um novo helicóptero maior, com 12 assentos, para agradar o patriarca Klein. Segundo documentos da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), um helicóptero Agusta Aw139, com capacidade para 11 passageiros, foi adquirido pela Casas Bahia em janeiro de 2010. Em entrevista, o ex-funcionário disse que o helicóptero teria sido comprado para Samuel levar mais meninas para Angra e, assim, ficar longe dos negócios.
Três meses depois, em julho de 2010, foi firmado um novo acordo entre os acionistas majoritários da Globex (Grupo Pão de Açúcar e Casas Bahia), repactuando os termos da negociação conflituosa — em outubro daquele ano, a incorporação de fato da Nova Casa Bahia foi concluída, o que criou na época o maior grupo de varejo de eletrodomésticos no país, com mais de R$ 18,5 bilhões em faturamento bruto anual.
Malu e Roberta, que dizem ter frequentado regularmente o escritório de Klein no período, contam que ele teria se frustrado após a fusão. “Samuel não estava de acordo”, diz Roberta. Segundo Malu, após conflitos no negócio, o fluxo de meninas teria ficado pior. “Aí o fluxo de meninas ficou mais forte. Porque aí parecia que ele queria gastar todo dinheiro do mundo. Começou a ir mais mulher e ele dar mais dinheiro pra todo mundo”, diz.
Surge a Via Varejo
Constituída em 2011, somente em fevereiro de 2012 o nome Via Varejo passou a existir oficialmente aos acionistas — holding que até hoje engloba todas as operações da Casas Bahia. Quatro meses depois do anúncio oficial do nome Via Varejo, o empresário Abílio Diniz anunciava que o grupo francês Casino assumiria o controle do Grupo Pão de Açúcar (GPA).
Em outubro, foi acertada a saída de Raphael Klein, neto de Samuel, como CEO da Via Varejo. Segundo reportagem do Valor Econômico, pairava um desconforto em relação à dimensão dos gastos da família Klein e Abílio Diniz, sócio do GPA, teria chamado os gastos dos Klein de “despesas ultrajantes”, em uma reunião do conselho administrativo.
Luiza*, que trabalhava na sede das Casas Bahia em São Caetano em 2012, quando a Via Varejo estava constituída, conta que presenciou os últimos anos de Samuel Klein na empresa, onde Luiza permaneceu até 2016: “A gente dividia os elevadores com as mulheres todos os dias, tinha ascensorista para controlar, tinha seguranças no quinto andar onde Samuel ficava e nós funcionárias mulheres tínhamos que andar com o crachá à vista, mesmo quando íamos ao banheiro, para não sermos confundidas”. Luiza lembra ainda de um protesto supostamente realizado por garotas de programa em frente à sede, em 2012. “Sendo empresa de capital aberto, elas não podiam mais descer na loja e pegar produtos ou dinheiro do caixa. As mulheres gritavam ‘Samuel, paga a gente!’ e o Raphael Klein, neto de Samuel que na época era o presidente do grupo, teria sido acionado para resolver a situação. Foi bem na hora do almoço, hora de maior movimento em São Caetano”. Ela diz que Raphael teria mandado uma pessoa para pagar as mulheres e dispersar a manifestação.
Mauro*, um antigo diretor da Casas Bahia, que diz ter trabalhado na empresa na época da criação da Via Varejo, contou à reportagem que frequentemente cruzava com as meninas nos corredores. “Algumas vezes era aquilo: o elevador parava, aí você entra, tinha um segurança e quatro meninas. Você não podia nem olhar para a cara delas, tinha que baixar a cabeça e olhar pro chão, essa era a ordem que se tinha”, diz. Segundo ele, a ordem era informal e corria no boca a boca entre os funcionários. “Elas iam pro prédio, pegavam o elevador, iam até o heliponto e iam pra Angra dos Reis, Guarujá, Alphaville”, relata.
Bernardo*, que também foi diretor nas Casas Bahia, afirmou à reportagem que em 2012 a pedido de Michael Klein teria feito acordos de demissão com seguranças que “sabiam muito” sobre as atividades de Samuel. Esses acordos, segundo ele, incluiram ao menos uma dezena de nomes “sensíveis” de seguranças que estavam ganhando valores altos com horas extras. “O maior problema foi que na hora que comecei a negociar com esses funcionários de segurança fui descobrir que a maioria deles dizia que não ia ser demitido. Se eles fossem demitidos, eles iam falar tudo que sabiam”.
Essas ameaças, segundo Bernardo, estavam relacionadas às reclamações que recebeu de outros seguranças que teriam de acompanhar garotas em helicópteros e carros. “Pra mim foi uma coisa totalmente absurda. Eu procurei na época o Michael e ele falou que o pai dele tinha um problema, tinha um desvio e que, infelizmente, ele não conseguia administrar isso”.
Dez anos após a fusão e cinco após a morte do rei do varejo, a família Klein se mantém nos negócios que envolvem as Casas Bahia. Em 2019, as ações do Grupo Pão de Açúcar foram vendidas e o filho mais velho do fundador, Michael Klein, tornou-se um dos maiores acionistas individuais da Via Varejo. Segundo informações públicas no site da companhia, Michael Klein tem, ao menos, 2,26% das ações e também é vinculado ao fundo TWINSF, que possui outros 7,52% da empresa. Outros herdeiros do patriarca, como a filha Eva Klein, também detém porções da empresa.
Em abril de 2021, a empresa passou a se chamar “Via” e anunciou um novo escritório em São Paulo, na região do bairro de Pinheiros. Atualmente, o CEO da Via, Roberto Fulcherberguer, não possui sobrenome Klein, mas é apontado na imprensa especializada como um executivo de confiança da família. O presidente do conselho administrativo é Raphael Oscar Klein, neto de Samuel citado anteriormente, e que possui mandato até abril de 2022.
Infância e adolescência roubadas
Malu e Paula contam ter frequentado a sede da empresa no período marcado pela fusão que criou a Via Varejo. Mas ambas afirmam que somente ficaram sabendo sobre a turbulência nos negócios porque eram muito próximas do circuito que frequentava há anos as ‘festas’ de Samuel. As duas mulheres, hoje com mais de 40 anos, conheceram o empresário ainda meninas e contam que acabaram convivendo com o suposto esquema de exploração sexual por décadas.
Com 13 anos de idade, Paula vivia em situação de rua e soube por uma amiga que o empresário dava comida de graça para quem fosse visitá-lo em seu apartamento no edifício Universo Palace, em Santos, no litoral de São Paulo. No caso dela, a visita foi em 1983.
Como a reportagem da Agência Pública já havia revelado, o Universo Palace é apontado também por outras entrevistadas como um dos locais dos supostos abusos sexuais. No caso de Paula, ela diz que não demorou para perceber que junto com os lanches o empresário oferecia presentes e mais dinheiro àquelas que o acompanhassem até o quarto. Era a porta de entrada para o suposto esquema de exploração sexual, ela diz. “Era tudo uma ilusão, as meninas achavam que teriam um futuro, uma casa. Comigo foi assim”, conta.
Também foi no apartamento do Universo Palace que Malu diz ter sofrido aos nove anos os primeiros abusos sexuais perpetrados por Samuel. Ela relata que era induzida por Kathia Lemos, a ir ao apartamento do empresário. “Ele dava umas palmadinhas na minha cara, algumas vezes pegou assim no meu corpo e no peito. Ele falava: ‘Nem teta tem ainda, não tem tetinha’. Aí pegava dinheiro do bolso. Dava 50 pra mim, 50 pro meu irmão e mandava a gente embora”.
Malu conta que era induzida a levar o irmão menor junto para ganhar mais dinheiro — o empresário dava notas para as duas crianças “mas só passava a mão em mim”, lembra.
Malu afirma com tristeza que teve a infância e adolescência roubadas por Káthia Lemos, que, de acordo com seu relato, a induzia a visitar o empresário. Segundo ela, a responsável pela entrada dela no suposto esquema de Samuel foi Kathia — apontada por oito pessoas como a principal agenciadora de meninas para Samuel na baixada santista.
Ela afirma que Kathia deu dinheiro para que a menina fugisse da casa em que vivia e a acolheu. “Aí comecei a morar com ela [Káthia] e ela começou a me levar todo final de semana pra ver o Samuel. Ela viu que eu era uma menina que dava dinheiro porque eu era novinha, bonitinha”.
Com 14 anos, Malu conta que se viu imersa em uma rotina de abusos sexuais que envolvia penetração vaginal em quartos reservados dos imóveis do empresário no entorno de Santos. Ela conta que estava presente na festa de aniversário de Samuel, em 1994, em vídeo revelado pela Pública onde o empresário aparece rodeado por dezenas de adolescentes.
“Ela tentou vender a minha própria filha pro Samuel”
Joice*, outra mulher ouvida sob anonimato pela Pública, indica que era Kathia que organizava todas as comemorações e finais de semana do empresário com a presença de garotas. “Ela tentou vender a minha própria filha pro Samuel”, diz a mulher que afirma ter testemunhado adolescentes sendo levadas ao rei do varejo.
Segundo as denunciantes, Kathia foi uma das peças centrais para o funcionamento do esquema de exploração sexual. “Assim como de mim, ela se aproveitou de muita gente. Muita, muita”, aponta Malu ao explicar que Kathia ficava com metade ou mais de todo dinheiro que Samuel entregava às meninas. Segundo ela, Kathia permaneceria levando garotas e frequentando os imóveis do empresário até 2013 — informação confirmada também por outras fontes.
“Ela viu que ele tinha mania de falar que queria garotas virgens. Então ela mandava muitas garotas inventarem que eram virgens para tirar mais dinheiro dele”, relata Malu. Além do dinheiro, documentos obtidos pela reportagem indicam que Kathia teria recebido imóveis do empresário.
Samuel vendeu os direitos de dois apartamentos a Kathia
Documentos a que a Pública teve acesso registram que Kathia teria adquirido, com valor abaixo do mercado, direitos de dois apartamentos de Samuel Klein. Os direitos do imóveis foram transferidos a ela por meio de contratos de promessa de venda firmados em um cartório no município de Cajamar (SP) e que posteriormente foram registrados nas matrículas dos apartamentos no 3º Cartório de Registro de Imóveis de Santos.
Conforme os documentos, Klein vendeu a Kathia os apartamentos 1204 e 1206, situados no 12º andar do Universo Palace, um prédio à beira-mar localizado no bairro de José Menino, em Santos. Segundo os contratos e os registros na matrícula dos imóveis, a venda dos dois apartamentos foi realizada em junho de 1998 pelo valor de R$ 15 mil reais por cada unidade. O valor pago por Kathia equivale a aproximadamente um quarto do valor venal dos imóveis à época, que possuem 110 metros quadrados, segundo as matrículas.
O valor venal é uma estimativa de valor feita pelas prefeituras para o cálculo de impostos como o IPTU e costuma ficar abaixo do valor de mercado atribuído pelas imobiliárias. Em valores atualizados até maio deste ano, Kathia teria pago pelo imóvel, segundo os documentos, cerca de R$ 108 mil por cada apartamento. Em anúncios na internet, apartamentos no mesmo edifício com as mesmas dimensões dos vendidos à Kathia estão à venda por aproximadamente R$ 400 mil.
Procurado pela Pública, o presidente do Creci-SP (Conselho Regional de Corretores de Imóveis de São Paulo), José Viana Neto, afirma que não é incomum esse tipo de transação. “Quanto ao valor, ele pode ser acima, abaixo, ou o próprio valor venal”, disse Viana, sem ter acesso aos documentos. Segundo ele, transações deste tipo justificam-se quando o imóvel tem custos de manutenção elevados, como condomínio ou IPTU. Os documentos, porém, mostram que as transações não geraram lucro financeiro a Samuel.
Segundo Joice, os apartamentos teriam sido cedidos em troca dos serviços de agenciamento de meninas feitos por Kathia Lemos. “Ela ganhou muito dinheiro com as meninas que ela levava pra ele [Samuel]. O Samuel deixou ela bem, deu pra ela os apartamentos [no Universo Palace]”, diz.
Aos 13, levada pela mãe ao apartamento 1206
Monique* morava no sétimo andar do Universo Palace no final dos anos 1980. Em 1987, ela veio da região sul do país com a mãe e o irmão para morar em Santos após o falecimento do avô alguns anos antes. “Minha mãe achava que conseguiria emprego fácil porque era uma cidade turística”, relembra. A expectativa não se cumpriu da maneira como a família imaginava. Viúva e com a responsabilidade de criar os dois filhos sozinha, a mãe dela só conseguiu emprego em um bingo longe da praia, na área mais central da cidade. Com o dinheiro que recebia, conseguiu alugar um kitnet no Universo Palace. “O dinheiro dela mal dava pro aluguel. A gente vivia muita dificuldade”, diz Monique.
Foi no ano de 1989, quando Monique tinha 13 anos, que sua mãe veio com a proposta de ir aos “cafés da manhã” que Samuel promovia no 12º andar. Segundo ela, a mãe soube que Samuel distribuía dinheiro e cestas básicas nessas ocasiões e tentou comparecer a uma delas, mas não foi autorizada a entrar. “Ela ficou sabendo que ele [Samuel] não aceitava mulheres, ele só aceitava meninas. A gente tinha a vantagem de ter livre acesso lá, né, porque a gente morava no prédio e lá tinha sempre muita fila, muita gente tentando entrar. Um belo dia ela [a mãe] me chamou, falou que ia me apresentar pra uma pessoa. A gente subiu no 12º andar, ela mandou chamar um segurança no corredor e falou que queria me apresentar pra ele [Samuel]. Ele falou que tudo bem, que era pra eu entrar e fazer um lanchinho. Como eu era uma menina, eu não tinha noção do que estava acontecendo”, relata.
Quando entrou, Monique conta que Samuel a cumprimentou com um selinho, colocou a mão em seus seios e perguntou se ela era virgem. Ela diz que esse primeiro episódio ocorreu justamente no apartamento 1206 do Universo Palace, o mesmo que pertenceu a Samuel e que foi vendido a Kathia cerca de dez anos depois. Segundo ela, havia várias outras meninas na mesma ocasião. Ao fim do café, ela saiu de lá levando uma quantia em dinheiro e uma cesta básica.
“A minha mãe impôs pra mim que eu tinha que continuar indo [aos eventos e festas de Samuel], porque além do dinheiro, ele dava cesta básica, dava presentes. Nós estávamos passando por um momento bem difícil”, reforça Monique.
A partir de então, ela passou a frequentar semanalmente os eventos no apartamento de Samuel. Segundo ela, frequentemente ele chegava ao prédio às quintas-feiras e ficava até o domingo recebendo as meninas e distribuindo presentes, dinheiro e cestas básicas. “Todo mundo sabia o que acontecia, todo mundo via e ninguém falava nada. Era uma coisa considerada normal”, diz. Foi em um desses eventos que ela foi chamada por Samuel para ir a uma festa em sua casa, no Guarujá (SP).
“Naquela semana, ele chegou numa quinta-feira à noite e convidou algumas meninas na casa dele para ir a uma festa no Guarujá. A gente saiu de carro no dia seguinte pra ir pra casa dele no Guarujá, fomos em várias meninas, eu era a única do prédio”. Chegando lá, ela diz que acompanhou outras meninas em um passeio de lancha. Na volta do passeio, sentou-se à mesa para almoçar. Terminada a refeição, Samuel escolheu um grupo de meninas para acompanhá-lo ao quartinho que ficava próximo à piscina da casa. Monique estava entre as escolhidas e conta que foi submetida a relações sexuais com o empresário. “Eu fiquei espantada, era a primeira vez que eu vivia aquilo. Ele dizia pras outras meninas: ‘Vocês têm que ensinar ela, porque ela não sabe de nada ainda’”.
Aquela foi a primeira ocasião em que Monique foi violentada sexualmente pelo empresário, contou. Mas, segundo ela, não foi a última. Ela relata que frequentou os cafés e festas de Samuel em Santos e no Guarujá dos 13 aos 17 anos e que passou pela mesma situação em outras ocasiões. Seguiu frequentando os eventos mesmo quando ficou grávida de um ex-namorado, aos 16 anos, mas ressalta que no período da gravidez não foi submetida aos abusos apesar de continuar sendo convidada para frequentar as festas. O martírio só terminou quando ela retornou ao sul do país para morar com a avó, contou. Assim como outras denunciantes, diz que recebeu de Samuel vales para retirar produtos nas Casas Bahia. O último produto que se recorda de ter pego foi um velotrol, um presente para a filha que retirou com um vale na Casas Bahia do bairro do Gonzaga, em Santos.
Alexandre*, o irmão mais novo de Monique, confirma o relato da irmã. Ele é o único que sabe sobre as experiências da irmã com o empresário. Ele diz que muitas vizinhas do Universo Palace compareciam às festas de Samuel. Afirma que chegou a comparecer a festas que Samuel promovia para crianças de ambos os sexos em datas especiais como a Páscoa, o Carnaval, o Natal e o Dia das Crianças. Relata que ia com os amigos e que comia e bebia à vontade, mas que os presentes eram reservados às meninas. Conta que em outras ocasiões acompanhava a irmã para ajudá-la a carregar as cestas básicas. “Na época, ninguém sabia o que era assédio sexual. Hoje em dia a gente sabe que ele fazia as festas na casa dele para assediar, mas na época todo mundo achava que ele era uma pessoa boa”. “Hoje em dia a gente sabe que ele tava se aproveitando”, relata.
Monique ainda reconheceu a suposta agenciadora Kathia Lemos em uma fotografia. “Era uma moça que sempre estava nos apartamentos dele nesses cafés que ele fazia. Eu pensava que era uma empregada doméstica, porque ela estava sempre arrumando o apartamento, mas eu estranhava porque ela estava sempre muito bem vestida e coberta de joias”, relembra.
Procurada pela reportagem, Kathia Lemos negou as acusações atribuídas a ela. Ela não respondeu a nenhuma das perguntas enviadas pela Pública.
Outro lado
A reportagem também procurou Michael Klein, filho mais velho de Samuel e acionista na Via, que declarou através de sua assessoria que não vai se manifestar sobre o caso.
A reportagem pediu ainda para que o neto de Samuel, Raphael Klein, se posicionasse com relação ao episódio citado por uma entrevistada que se refere a um suposto protesto em frente à sede das Casas Bahia em 2012. Em nota, ele diz: “Em atenção e respeito à Agência Pública, e especialmente a toda e qualquer pessoa que já tenha sofrido algum mal ou violência de gênero, asseguro que repudio qualquer tipo de práticas ilegais ou de abuso ou assédio a menores de idade e mulheres. Objetivamente quanto aos questionamentos recebidos, esclareço que jamais estive gerenciando qualquer protesto em frente à sede das Casas Bahia e desconheço quem eram as pessoas participantes, bem como nunca tive conhecimento quanto à indevida utilização das dependências da Casas Bahia para quaisquer fins espúrios. Por fim, rechaço, veementemente, toda e qualquer vinculação de meu nome a situações com as quais nunca tive nenhum envolvimento”
Procurado, o Grupo Pão de Açúcar afirmou que “não tem como comentar questões as quais não tem conhecimento ou fatos anteriores à sua gestão. O Grupo reitera, ainda, que tem como princípio o respeito às leis, o compromisso com a ética e com a integridade. O Código de Ética da companhia repudia veementemente qualquer ato de violência, discriminação e assédio”
Procurada, a Via Varejo afirmou: “Esclarecemos que nenhum membro da família Klein nunca exerceu qualquer papel de controle na Via, holding que opera a Casas Bahia e foi constituída em 2011 tendo como acionista controlador a Companhia Brasileira de Distribuição (CBD) – empresa que administra o Grupo Pão de Açúcar -, portanto, já sem a família no controle. Cabe esclarecer que no processo de formação da holding, foi realizada a formação de uma nova sociedade, a “Nova Casas Bahia”, que passou a ser administrada pela Via e detinha ativos e passivos relacionados única e exclusivamente ao varejo, como a marca, centros de distribuição, estoque, contratos de locação e contratos de trabalho, por exemplo.
Paralelamente, a antiga Casas Bahia Comercial LTDA — esta sim pertencente a membros da família Klein — ficou com ativos e passivos não relacionados à operação de varejo: imóveis para locação, participação em sociedades exclusivamente patrimoniais (e não operacionais), todas as aeronaves, helicópteros e hangares, determinados passivos e provisões identificados pelas partes. Portanto, a Via não possui e nunca possuiu helicópteros em seus ativos.
É igualmente importante esclarecer que, desde junho de 2019, quando a CBD vendeu a totalidade de sua participação no capital social da Via, a holding passou a ser uma corporação independente, sem acionista controlador, como mostra a nossa estrutura societária: https://ri.viavarejo.com.br/governanca-corporativa/estrutura-societaria/. Dessa forma, não comentamos sobre casos que possam ter ocorrido em período anterior ao da atual gestão da empresa.
A Via é muito clara em seus valores e princípios de conduta. Repudiamos veementemente qualquer conduta que afronte, viole ou desrespeite a dignidade da pessoa humana, a igualdade de gêneros ou os direitos da mulher. Nosso código de ética, distribuído para todos os nossos colaboradores, é o guia que regula todas as ações da empresa, sendo sua aplicação acompanhada por auditorias independentes.
Somos ainda signatários de diversos acordos e compromissos que oferecem parâmetros institucionais para nossas estratégias de responsabilidade corporativa, como, por exemplo: Princípios de Empoderamento das Mulheres, elaborado pela ONU Mulheres; Coalizão Empresarial de Luta pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, liderado pela Avon, ONU Mulheres e Fundação Dom Cabral; Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de Gênero, liderado pelo Instituto Ethos, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e Institute for Human Rights and Business (IHRB), com apoio do Movimento Mulher 360 e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)”.
*os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas ou para proteger nomes de fontes.