Universidade Federal do Sul da Bahia e suas cotas
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Conceituar cota é interessante antes de tratar dela. Darei alguns exemplos.
O mais imediato, claro, diz respeito às reservas de vagas, ações afirmativas do governo. Mas existem variações que merecem marcar presença aqui. Lugar militarmente protegido construído para defender um território. Porção determinada de algo, parceria com que cada pessoa contribui para determinado fim. Quinhão.
Há um aspecto de associado ao cotista e é exatamente esse aspecto que quero destacar. Pois normalmente se exalta a cota como justiça, seja histórica ou socialmente induzida.
Mas estamos num mundo neoliberal e isso tem lá seu peso e valor. Não chegamos até esse ponto do capitalismo tardio sem tropeços. E em cada tropeço, em cada trupicão, conservamos cicatrizes desumanas. E assim o corpo foi sendo retalhado sem que a gente tenha se dado conta.
Fazer parte do todo é um desejo e um comprometimento. E as cotas convidam a essa união. Com ética, justiça e valores.
A universidade em que sirvo está na vanguarda das cotas sociais. Até o momento, dedica 75% a 85% de suas vagas para cotas (o percentual varia dependendo do curso). Reserva vagas para negros, pardos, indígenas, quilombolas, ciganos, pessoas com deficiência, mulheres, transexuais, travestis e transgêneros, além de comunidades identitárias tradicionais.
Agora insere nesse mesmo arcabouço político cotas para detentos, ex-presidiários e refugiados.
Precisamos compreender as cotas na dinâmica em que se inserem. A ética, a justiça e os valores que ela pactua.
Usamos o termo ético de modo apressado e nada reflexivo. O termo tem origem e ethos, que é a forma com que grupos e sociedades se organizam. Vivemos uma sociedade capitalista e o ethos é desigual. Portanto a ética é a ética da desigualdade, fundamentada por hierarquias entre os seres. Nesse sentido, a justiça é um privilégio e um poder cuja origem é a do proprietário. Dizer que é um privilégio não é pouca coisa. Pois cada um que demanda justiça como direito está demandando um lugar de privilégio num sistema desigual. As justificativas pra isso são inúmeras, claro.
Fazer parte do conglomerado capitalista como sócio também altera profundamente os valores que serão, doravante, ensinados aos filhos, aos amigos, exaltados como parte do que é bom, certo e justo.
Dentre esses valores, os mais importantes são aqueles que compõem o ideário liberal. Competitividade como ação, egoísmo como função, teleologia como ideação, emulação como inspiração, subserviência como titulação e empoderamento como opressão.
Na semana em que a universidade anunciou as novas cotas para detentos, ex-presidiários e refugiados lancei numa aula a questão pra saber a percepção dos estudantes, acolhidos numa universidade que se quer social, responsável por dirimir os degraus capitalistas. Não me surpreendi quando exatamente os estudantes cotistas se mostraram veementemente contra essas cotas.
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A injustiça, segundo eles, é que tais sujeitos sociais ocupariam lugares de quem não matou, não roubou, não traficou nem estuprou. Todos concordavam que o governo deva ampliar as cotas e só depois que todos forem beneficiados essa escala pode alcançar os presídios.
O governo é a instância dadivosa para resolver os problemas educacionais. Nenhum dos estudantes, nenhum, pensou em usar o privilégio para voltar seus esforços ao seu lugar de origem e, como professor, como médico ou como psicólogo, mudar as condições da comunidade de origem. Nenhum deles operou coletivamente, nem imaginou uma política resolutiva no âmbito da sua própria subjetividade.
Assim funciona o privilégio. Ele atomiza o sujeito num bólido de heteronomia permanente. Sua autonomia, se já existiu antes da cota, foi erradicada em nome do lugar novo que ocupa. Que o governo disponha de mais cotas, pois a dele já foi ocupada. Agora está livre pra progredir, pra evoluir, pra desenvolver.
Desenvolvimento é uma palavra política fundamental pra essa discussão. Significa acabar com o envolvimento, ela isola, separa e anula qualquer possibilidade de humanização. Ela desumaniza completamente seu ocupante.
Se antes ele demandava por justiça, e devia haver ali um sentimento coletivo, uma vez que se torna sócio do sistema com sua cota, o sentimento será de privilégio e nada mais pode ocupar o lugar perdido de sua desumanização.
Pode haver uma cota de culpa, mas isso é irrelevante no mundo neoliberal.
O sistema capitalista, colonial, se instaurou pela destruição das terras comunais, eliminando territórios de sobrevivência das comunidades e obrigando seus membros a se submeterem a formas de trabalho totalmente estranhas. A essas novas formas eles denominavam tripalium, tão ruins que pareciam um instrumento de tortura inquisitorial. Daí se origina a palavra trabalho.
As cotas cumprem esse papel, uma cunha no coração das comunidades. Cada um que entra é rapidamente assimilado nos valores da desigualdade e se torna também um novo colonizador disposto a levar a ideologia do império cognitivo a novas fronteiras.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor