Atacar sistema eleitoral é tática comum para minar confiança nas democracias
Em sua cruzada pelo voto impresso, Bolsonaro mira um dos pilares democráticos e repete postura de Trump
Daniel Giovanaz, Brasil de Fato
O Brasil demorou a comprar vacinas contra a covid19, está de volta aos patamares do Mapa da Fome e atingiu uma taxa de desemprego recorde. Essas três situações impactam a vida de milhões de famílias na pandemia, mas passam longe dos discursos de Jair Bolsonaro (sem partido). Há uma semana, o presidente só fala em supostos problemas no sistema eleitoral.
A próxima disputa presidencial no Brasil será em 2022, e Bolsonaro aparece em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto – atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que recuperou seus direitos políticos em março.
O Planalto apostou todas as fichas na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do voto impresso, que acabou derrotada na Câmara dos Deputados na última terça-feira (10). Mesmo assim, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) continua sendo alvo dos discursos do capitão.
“Não tenho provas”, ele ressaltou pelo menos três vezes na quarta-feira (11), ao insinuar que o TSE “poderia saber” de uma suposta tentativa de fraude contra sua candidatura em 2018.
Segundo pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato, tirar o foco dos problemas reais do país é apenas um dos objetivos do ataque de Bolsonaro às urnas eletrônicas.
O cientista político Vitor Marchetti observa que o presidente brasileiro segue uma cartilha que vem sendo adotada por candidatos conservadores em outros países, como Donald Trump, nos Estados Unidos, em 2020, representantes da direita boliviana em 2019, e Keiko Fujimori, no Peru, este ano.
“A lógica é a mesma, de produzir instabilidade para o cenário eleitoral. Porque é por meio do caos, da formação de disrupturas, que essas figuras conseguem se colocar como ‘antissistema’. Tudo isso é parte de um sistema desestabilizador, que é uma estratégia para favorecer seu grupo na concentração e centralização do poder”, analisa.
O passo a passo é simples, mas arriscado. Se conseguirem minar a confiança pública na eleição, esses políticos colocam em xeque as bases da democracia liberal e abrem caminho para governar sem o respaldo das urnas.
“São figuras [nos EUA, na Bolívia, no Peru e no Brasil] que fogem aos scripts esperados de disputas eleitorais em regimes democráticos. Essa é a grande onda: a ruptura com a lógica das instituições democráticas e eleitorais”, acrescenta Marchetti, que é professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
O discurso precisa ser direto e agressivo, para que as bases de apoio se sintam convocadas a defender esses políticos a qualquer custo. Na pior das hipóteses, o adversário que vencer as eleições assumirá sob desconfiança de parte da população.
Contradições
Nos últimos oito anos, países como Israel, Alemanha e Venezuela viveram experiências semelhantes. O próprio Brasil, já em 2014, com Aécio Neves (PSDB), voltou a se deparar com acusações infundadas de fraude eleitoral. Dilma Rousseff (PT) tomou posse sob pressão, e o tucano levou meses para admitir o resultado.
“Mesmo após a vitória [em 2018], Bolsonaro já fazia um questionamento às urnas. Durante a campanha também houve essas falas, embora menos contundentes e organizadas do que agora”, observa Marchetti.
“O bolsonarismo hoje tem capacidade de mobilizar uma base armada, nas polícias militares, nas milícias, nos clubes de atiradores. E ele vai tentar alimentar esses grupos para tentar produzir instabilidade. Afinal de contas, esse é um governo militar, conduzido estrategicamente por militares”, completa.
Doutora em Ciências Sociais com pós-doutorado em Comunicação Política, Rosemary Segurado enfatiza que o objetivo dos líderes que vêm atacando os sistemas eleitorais não é aprimorá-los ou torná-los mais transparentes.
“A escolha dos representantes pela vida direta é um dos pilares básicos da democracia. Então, quando Bolsonaro diz que se não tiver voto ‘auditável’ a eleição será roubada, é como se ele dissesse que não precisa ter eleição, porque se ele não ganhar, é fraude. Então, o que ele não reconhece é a democracia em si.”
“Essa estratégia da extrema direita, em âmbito global, acaba até ficando contraditória. Trump questionava o voto pelo correio e a forma de contagem; Bolsonaro pede o voto impresso. Então, cada um olha para a especificidade do sistema em seu país e busca algum questionamento”, analisa.
A especialista lembra que não é a primeira vez que se especula a possibilidade de fraude eleitoral no Brasil. A própria demanda por urnas eletrônicas surgiu nos anos 1990 como resposta a essa desconfiança.
“Isso sempre existiu. Sempre tivemos muita teoria da conspiração em torno de eleições. O que é novo é a intensidade desse discurso, a ponto de virar um movimento”, diz.
“E vale lembrar que isso entrou fortemente na agenda de Bolsonaro entre março e abril, depois que Lula recuperou seus direitos políticos.”
Inviável
Bolsonaro não fala em substituir a urna eletrônica, mas em torná-la híbrida: cada voto geraria uma cédula impressa, o que supostamente diminuiria a chance de erros e fraude na apuração.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vem ressaltando que o atual modelo já é auditável e que a urna híbrida teria alto custo operacional, além de não aumentar a segurança e a confiabilidade.
As urnas são monitoradas e submetidas ao controle público em todas as etapas antes de serem lacradas. Ao final da votação, é emitido um boletim, a partir do qual qualquer cidadão tem acesso ao resultado das zonas eleitorais.
Ao denunciarem supostas fraudes eleitorais, Bolsonaro e outros representantes da direita radical assumem o papel de vítimas.
“A ideia que eles vendem é a de romper com o que chamam de globalismo. É como se existisse uma orquestração mundial de funcionamento das instituições para uma única direção, que romperia com certos valores culturais e agendas conservadoras, e eles precisariam produzir uma ruptura para defender princípios calcados no que eles entendem por moral e bons costumes”, descreve Vitor Marchetti.
“Nesse pacote, entram até elementos religiosos.”
A observação final de Marchetti remete às articulações de Bolsonaro com igrejas neopentecostais no Brasil, mas também ao golpe de 2019 na Bolívia. Lá, o candidato mais votado, Evo Morales, foi impedido de tomar posse após setores da direita alegarem fraude eleitoral.
Com a Bíblia em mãos, a parlamentar de direita Jeanine Áñez assumiu o cargo interinamente e ordenou a retirada de símbolos indígenas da sede do governo.
Para o cientista político, a hipótese de que Bolsonaro era controlável ou “moderável” mostrou-se incorreta. O presidente mantém seu discurso violento contra adversários e só aceita recuar quando sua sobrevivência está em jogo. Um dos exemplos seria a aliança com o chamado “centrão”.
“Bolsonaro tenta surfar na ideia do voto impresso, que ele passou a chamar de ‘voto auditável’, mas aqui temos um sistema robusto, uma capacidade de coordenação nacional. A articulação do TSE com o Supremo dá muita força e respaldo, e nosso sistema de urnas eletrônicas é legitimado internacionalmente. Então, o Brasil tem remédios, do ponto de vista institucional, para lidar com essas tensões. O que não significa que elas serão pequenas”, analisa Marchetti.
“Em resumo, se por um lado temos instituições capazes de realizar eleições em 2022, o cenário ainda é uma incógnita. Temos passado por processos conturbados em termos de organização política e institucional, e as instituições estão na UTI respirando por aparelhos. Se elas vão ter capacidade de reagir, essa será a grande questão”, diz.
Rosemary Segurado chama atenção para a base de apoio de Bolsonaro no interior das Forças Armadas e das polícias militares, que poderia produzir resultados mais desastrosos do que em outros países onde houve ataques pontuais ao sistema eleitoral.
Para a cientista social, os 229 votos favoráveis à PEC do voto impresso na Câmara indicam um cenário preocupante.
“Esse número de votos [na Câmara] dá um combustível para Bolsonaro continuar sua cruzada de deslegitimação das urnas. Ele não vai abandonar essa narrativa”, finaliza.