Comida ou aluguel: pandemia obriga mais famílias a morar em ocupações
O problema causado pela dificuldade de acesso aos benefícios assistenciais se reflete, principalmente, nas áreas mais pobres
Jaqueline Deister e Eduardo Miranda, Brasil de Fato
“Não existe um salário mínimo, existe diária. Se você trabalha, você tem. Se você não trabalha, você não tem”. A fala de Josilene Costa, 46 anos, é a realidade de muitos brasileiros e brasileiras que perderam o emprego, não podem pagar aluguel e vivem em situação de vulnerabilidade agravada pela crise econômica e sanitária causada pela pandemia.
Josilene trabalhava como empregada doméstica no bairro de Santa Teresa, na região central do Rio de Janeiro. Logo após o início das medidas de proteção para combater a covid-19 no ano passado, ela perdeu o emprego e passou a viver com o dinheiro do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Com dois filhos, Brian, de 26 anos, e Lara, de 5 anos, além do marido também desempregado, a vida ficou ainda mais apertada. Vivendo há quase 20 anos em um cômodo localizado em um prédio ocupado na rua do Livramento, no centro da cidade, Josilene sofreu outro baque em março deste ano: ela saiu de casa com a filha e quando voltou foi surpreendida por um incêndio que havia destruído tudo.
“Quando voltamos tudo já estava em cinzas. Como você absorve isso? Você sai para comprar uma batata para jantar e quando volta nem fogão mais tem? Perdemos tudo. Não sobrou nada. Graças a Deus nossas vidas foram preservadas”, conta.
Ao todo, 27 famílias que moravam no prédio perderam seus pertences. Um idoso cadeirante não conseguiu se salvar e morreu no local. Na época, uma rede de solidariedade foi formada para apoiar as vítimas do incêndio com alimentos e roupas.
Josilene ficou hospedada com a família na casa de amigas até que conseguiu uma oportunidade de moradia na ocupação Vito Gianotti, no bairro de Santo Cristo. Tudo o que está hoje no apartamento em que vive há dois meses é fruto de doações arrecadadas pela União por Moradia Popular (UMP), que junto com a Central de Movimentos Populares (CMP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), coordena a ocupação que há cinco anos atende a 27 famílias de baixa renda.
Uma ocupação também foi a chance que a assistente social Gorete Gama, de 50 anos, encontrou para enfrentar o déficit habitacional agravado pelo desmantelamento de programas sociais, como o Minha Casa Minha Vida, na modalidade Entidades, desde o governo de Michel Temer (MDB), e intensificado na pandemia.
Há pouco mais de um mês, ela vive com o marido e os dois filhos no Quilombo da Gamboa, na zona portuária do Rio. O local é constituído de quatro terrenos da União e dois da Prefeitura do Rio. Apesar da cessão, faltam recursos para a construção de casas para as 16 famílias que vivem no local.
No Pará, ainda jovem, Gorete começou a militar em movimentos que reivindicam o direito à moradia. Em 2014, ela chegou ao Rio para cursar seu doutorado sobre políticas habitacionais na Universidade do estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com o fim da bolsa de estudos, passou a vivenciar na prática o que foi tema de sua pesquisa.
“A bolsa era minha renda mensal certa, porque meu marido, Márcio, atua na construção civil, onde há muita oscilação de trabalho. Quando cheguei ao Rio, pagava R$ 700 em uma casa de dois quartos. Esse valor dobrou. Quando vimos o risco de não conseguir comprar alimentos básicos, tivemos que entregar a casa”, relata Gorete.
Tanto Gorete quanto a professora de geografia Cida Merces, de 39 anos, lembram que ações organizadas por movimentos populares respondem com solidariedade aos retrocessos do governo federal. Desempregada desde 2020, Cida busca trabalho desde então, milita pelo direito à moradia e encontrou no Quilombo da Gamboa, onde chegou há quatro meses, a possibilidade de ajudar outras famílias. Desde 2012, ela integra a União de Moradia Popular (UMP).
“Em todos esses meses aqui, tivemos cesta básica, kit de higiene e de limpeza. Os movimentos de moradia lutam para sanar a questão do déficit habitacional porque as ocupações são algo emergencial e alternativo. Também buscam recursos para garantir minimamente a alimentação dessas famílias”, conta Cida.
Além da cozinha coletiva onde é preparado de 15 em 15 dias um sopão que é distribuído em outras ocupações do Rio, o Quilombo da Gamboa conta com a colaboração e doação de cestas básicas do Galpão Gamboa, Teto do Brasil, Ação e Cidadania, Mais amor menos capital, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e os movimentos que organizam a ocupação, a UMP e a Central de Movimentos Populares (CMP).
Crescimento das ocupações e disputas urbanas
A procura por moradia em ocupações na cidade do Rio aumentou nos últimos anos. De acordo com Cláudio Pereira, coordenador da UMP no Rio, pessoas desempregadas e que não conseguem se reinserir no mercado de trabalho compõem o principal público que busca morar em ocupações.
No entanto, segundo Cláudio, há limitações para o crescimento das ocupações na capital quando os movimentos esbarram nos territórios das milícias. Por isso, apesar da grande procura de famílias para formar novas ocupações, se tornou quase impossível ocupar prédios e terrenos fora da região central da capital fluminense.
“A milícia sabe o valor da terra. E toda vez que a gente tenta ocupar uma área, um prédio, que não seja no centro do Rio, na zona Norte e na zona Oeste, a milícia vem atrás e exige. No Minha Casa, Minha Vida, eles ocuparam vários condomínios e tomaram a casa das pessoas, literalmente. Não tem como fazermos uma ocupação em que a gente corra o risco de vida”, explica o coordenador da UMP.
Isso não quer dizer que a região central esteja livre de disputas. Fatores históricos mostram que a área central é alvo de conflitos desde a remodelação da cidade, quando o prefeito Pereira Passos expulsou pretos e pobres para as periferias, “onde não há estruturas que atendam a necessidade dos menos favorecidos”, como argumenta o coordenador estadual da CMP e Quilombo da Gamboa, Roberto Gomes dos Santos.
“Morar no centro é uma forma de dar dignidade a seus moradores e moradoras, que ajudaram a construí-lo e hoje não se pode viver no mesmo. O centro do Rio de certa forma está pronto para ser habitado não somente pelos mais abastados, mas também pela classe trabalhadora”, afirma Roberto.
O coordenador da CMP defende que é preciso pressionar os órgãos municipais, estaduais e federais por políticas de habitação de interesse social. “Com isso, haverá mais vida no centro, já que depois de certos horários ele fica esvaziado. Sendo assim, reafirmamos que morar no centro é um direito e não um privilégio da classe média”, completa.
Luta por moradia e luta contra a fome
Professora de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nepuh), que dá assessoria ao coletivo popular Fórum de Luta pela moradia em Niterói e São Gonçalo, na região metropolitana, Regina Bienenstein sinaliza para o fato de que a luta por moradia precisou priorizar nos últimos dois anos a luta contra a fome.
“Temos sentido concretamente o aumento da miséria e os grupos de luta por moradia passaram a fazer ações para montar cestas básicas porque as pessoas estão passando fome. Mas não há um abandono da luta por habitação, e sim, a consciência de que lutar pela comida é dar condições de continuar a luta por moradia adequada”, acrescenta.
A solidariedade e o apoio entre os moradores é uma diretriz das ocupações organizadas por movimentos populares. A engenheira de produção Lívia Cantuário, de 40 anos, mora na Vito Gianotti desde 2019, quando perdeu o emprego e precisou entregar a casa alugada no bairro de Campo Grande, na zona Norte da cidade.
Ela foi para a zona portuária, onde está a ocupação, à procura de oportunidade de trabalho, mas logo veio a pandemia e as possibilidades ficaram escassas. A solução foi buscar trabalho em outra área. Atualmente, Lívia atua como operadora de caixa em um supermercado próximo de onde mora.
Casada e com uma filha de 8 anos, sua renda de pouco mais de um salário-mínimo é usada para manter a casa e ajudar na despesa dos pais. De acordo com Lívia, a solidariedade, o senso de comunidade entre os moradores da Vito Gianotti e as doações de cestas básicas têm sido um diferencial neste período de pandemia.
“Não ficou tão pesado porque estamos sempre nos ajudando, inclusive com doação de roupas. Minha filha foi bem beneficiada. Essas ações foram bem legais e estão ajudando até hoje”, conta Lívia.
No Quilombo da Gamboa, uma das moradoras mais antigas também contou com a ajuda de movimentos populares. Helena Lopes, de 48 anos, chegou à ocupação há sete anos. Mãe solo, ela trabalha como cuidadora de idosos e faxineira, mas, desempregada, ela ficou insegura diante da necessidade de alimentar os sete filhos.
“Fiquei muito abalada porque não consigo trabalho. Perdi quase 10 quilos de tanta preocupação, só de pensar que meus filhos poderiam passar necessidade, não ter o que comer no café da manhã. Felizmente, temos as cestas básicas que chegam aqui”, desabafa.
Políticas públicas escassas e ações de solidariedade
As ações de solidariedade cresceram durante a pandemia, assim como a insegurança alimentar. Dados da ONG Ação da Cidadania, que há 28 anos atua no combate à fome no Brasil, mostram que durante a crise sanitária a procura por cestas básicas quase triplicou na capital fluminense. A organização distribuiu 80 mil cestas básicas durante a pandemia. Se tivesse realizado somente a campanha Natal Sem Fome, seriam 26 mil para todo o estado.
De acordo com Ana Paula Souza, coordenadora da área de advocacia da Ação da Cidadania, a falta de dados estaduais e municipais sobre fome e miséria impedem a elaboração de políticas públicas eficientes para a população afetada.
“Uma das nossas propostas da construção da Agenda Betinho, de combate à fome e insegurança alimentar é a realização de pesquisas e questionários, levantamento de demanda nos estados e municípios, porque só assim podemos direcionar com mais assertividade as políticas públicas de combate à fome”, detalha.
Segundo Ana Paula, hoje a Ação da Cidadania tem um panorama da gravidade da situação enfrentada pelo estado do Rio por conta dos 260 comitês locais ligados à organização que repassam o aumento da procura por alimentos de necessidade básica.
“Chegamos ao ponto de vermos mães solicitando fubá para botar água para dar para as crianças poderem dormir. No município do Rio, temos uma demanda muito grande na Zona Oeste e na Baixada [Fluminense]”, explica.
Na avaliação da coordenadora, sem o comprometimento da gestão pública, engajamento da população em relação ao combate à fome e o fortalecimento da rede de proteção socioassistencial, que é formado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único da Assistência Social (SUA) e o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), não será possível reverter o quadro de aumento da insegurança alimentar no país.
“Temos que propor soluções e políticas públicas para que possamos resolver esse problema de forma estrutural, para conseguirmos sair da questão emergencial”, aponta.
Em março, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) criou a Comissão Especial de Enfrentamento da Miséria para acompanhar o aumento das pessoas em situação de vulnerabilidade social no estado.
De acordo com o levantamento da Comissão, o Supera Rio, benefício emergencial de R$ 300, não chega para todos que precisam. Segundo dados do próprio governo, apenas 25% dos cadastrados no CAD Único receberam até agora esse benefício. Há uma promessa de fazer chegar essa ajuda a 65 mil por meio de convênios com os municípios, mas ainda assim 10 mil famílias ficam sem qualquer previsão de acesso ao Supera Rio.
O Brasil de Fato procurou o governo do estado do Rio e a prefeitura da capital para saber o que está sendo feito para combater a fome e a miséria.
A Secretaria estadual de desenvolvimento social e direitos humanos informou que desde agosto de 2020 distribui 6 mil refeições diariamente e sem necessidade de cadastramento pelo programa RJ Alimenta. Na área de moradia, o governo estadual afirmou que atende a 5.769 famílias via Aluguel Social.
Já a Secretaria municipal de Assistência Social da capital afirmou que de janeiro a junho deste ano aumentou em 26% o número de atendimentos (foram mais de meio milhão de atendimentos nesse período) realizados tanto para as famílias com dificuldades em suas casas quanto para pessoas em situação de rua e que estão em abrigos da Prefeitura.
Ainda segundo a Prefeitura, “quando ocorrem ocupações irregulares, a tarefa da Assistência Social é cadastrar esses ocupantes e oferecer-lhes abrigo na rede municipal”.
O problema causado pela dificuldade de acesso aos benefícios assistenciais se reflete, principalmente, nas áreas mais pobres da capital e do estado. As visitas da presidenta da Comissão, a deputada estadual Renata Souza (Psol), aos municípios têm mostrado um agravamento da fome, desemprego, falta de moradia, água potável, saneamento básico e de recolhimento de lixo. Além disso, as visitas também apontam como a violência do estado está associada à miséria no Rio.
“Nosso projeto é de cruzar os dados obtidos nas visitas com outros dados oficiais para, a partir de sua análise, provocar o debate público e construir coletivamente com as comunidades e movimentos propostas de políticas públicas estruturais para a superação de fato da miséria no nosso estado. Não faltam recursos. Falta vontade política e direcionamento“, ressalta a parlamentar.